Desde que, estimulada por algumas provocações dos globalistas da Otan, a pendenga entre Rússia e Ucrânia culminou na tentativa de ocupação do território ucraniano por tropas russas, os Estados Unidos, a União Europeia, o Reino Unido e o Japão vêm seguidamente anunciando fortes sanções contra a Rússia. Entre elas, o embargo de títulos da dívida pública nos mercados internacionais, a remoção de vários bancos do sistema Swift (sigla para Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication, a plataforma mais importante do mundo para a transferência de valores), proibições de transportes de commodities por terra, mar e ar, congelamentos de ativos de indivíduos, de seus familiares e empresas, além da suspensão ou mesmo o encerramento das operações de grandes companhias globais na Rússia.
Isso implica uma questão importantíssima: quais serão os efeitos econômicos e geopolíticos desse pacote de sanções, o maior de que se tem notícia, em um mundo ainda convalescente da pandemia e contaminado pela inflação de preços? Qualquer resposta precisa ainda é prematura, mas é factível antecipar um cenário — da mesma forma que é possível para um motorista em uma estrada escura e com neblina ver e tentar identificar os vultos que está enxergando metros à frente. É certo, então, que algo está mudando.
Não é preciso ser versado em economia para intuir que toda e qualquer intervenção dos governos na ordem espontânea dos mercados, até mesmo quando bem-intencionada, provoca desvios de rota, porque desencadeia reações, muitas das quais imprevisíveis. Por essa razão, os economistas genuinamente liberais costumam dizer que planejar o futuro é um exercício equivalente à tentativa de agendar datas para o fracasso e a frustração.
O dito “Ocidente” tornou-se estupidamente refém de uma paixão por uma suposta nova ordem mundial globalista
Quem conhece a característica das atividades econômicas sabe dos efeitos benéficos das trocas internacionais, da liberdade de comércio e da movimentação livre de capitais entre indivíduos, empresas e governos de países diferentes, assim como da paz entre as nações. A liberdade econômica e a confiança recíproca são os principais insumos do progresso. Por outro lado, o conhecimento necessário para a escolha de ações econômicas nunca é completo e perfeito e sempre se apresenta distribuído desigualmente entre os bilhões de indivíduos que, em todo o planeta, fazem girar a roda da economia.
O dito “Ocidente”, infelizmente, tornou-se estupidamente refém de uma paixão por uma suposta nova ordem mundial globalista (afirmada em Davos e na Agenda 2030) e, por isso, vem há tempos se afastando de seus princípios, valores e instituições tradicionais, como as liberdades individuais. Ao fomentar mais incertezas naquilo que já é normalmente incerto, agrava a limitação e a dispersão do conhecimento. Ao macular a liberdade econômica e atiçar a desconfiança, a série sem precedentes de sanções praticadas em retaliação à Rússia acarretará efeitos colaterais indesejados para as 193 nações que integram a ONU. Evidentemente, a extensão e a profundidade desses resultados incômodos vão depender do desenrolar da situação, do tempo de duração do conflito, dos óbices à liberdade econômica e, principalmente, das reações dos agentes e dos países.
Um dos resultados indesejados das sanções é que, certamente, desarrumam ainda mais muitos preços importantes que já estavam desarrumados pelos problemas causados pela pandemia e pelas políticas monetárias e fiscais irresponsavelmente expansionistas adotadas pelos governos do Ocidente — especialmente pela administração Biden e pela União Europeia. Basta olhar o comportamento dos preços das commodities. A inflação de preços, que já estava presente antes da ocupação, já dá sinais de ter ganhado força em todo o mundo, exatamente no momento em que os principais bancos centrais, com pelo menos um ano de atraso, começaram a elevar timidamente os juros. A consequência é que, muito provavelmente, terão de promover altas de juros mais enérgicas — a não ser que aceitem a continuação da inflação e a sua aceleração. A própria presidente do Banco Central Europeu, na semana passada, avisou que a Europa vai passar por tempos difíceis. Demorou a perceber isso, não é verdade?
Há outros prováveis impactos, de ordem financeira e geopolítica, a serem ressaltados. Se de um lado sabemos que a exclusão do sistema Swift é péssima no curto prazo para a Rússia, de outro temos de levar em conta que já existem sistemas alternativos: um deles é o SPFS (Sistema para Transferência de Mensagens Financeiras), criado pela Rússia em 2014, após a crise da Crimeia. Outro, criado pela China, é o Cips (Sistema de Pagamento Interbancário Transfronteiriço).
É plausível, então, cogitar que se esteja configurando um novo desenho para o sistema financeiro e geopolítico mundial, com a diminuição da importância do dólar como moeda forte e a sua substituição por outra moeda; ou, mais provavelmente, por uma cesta com algumas moedas, além do ouro.
Um primeiro passo nessa recomposição é a criação de protocolos alternativos ao Swift. E isso já vem sendo tentado por Rússia e Índia, que, para contornar o regime de sanções, estão pondo em prática um acordo bilateral para executar “swaps de moeda” (currency swaps) para financiar o comércio em rublos e rúpias. É a primeira tentativa aberta de saída do sistema de financiamento internacional, baseado no dólar. Como se sabe, as sanções contra a Rússia não se estenderam até o momento aos embarques de petróleo e gás para a Europa e a Ásia, cujo valor ascende a mais de US$ 1 bilhão por dia.
A política norte-americana de tentar expulsar a Rússia dos mercados financeiros e de commodities incentivou a busca por caminhos alternativos
Nos últimos dias de março, em resposta à nova rodada de sanções impostas pelos globalistas, a Rússia anunciou que a partir de abril só iria aceitar que os países europeus pagassem as suas importações de gás em rublos, sob pena de interrupção do fornecimento, com exceção da Alemanha, a quem deu prazo maior (um aviso que está cumprindo).
Ainda no âmbito dos Brics, ressalte-se que o governo da Índia convidou o ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, então em visita ao Paquistão, para uma visita de “cortesia” a Nova Delhi. O objetivo era normalizar o diálogo entre os dois países. Essa foi a primeira visita de um alto funcionário do governo chinês à Índia desde 2019, quando as relações entre os dois países ficaram estremecidas por causa de algumas altercações nas fronteiras.
É preciso considerar outros três acontecimentos: primeiro, desde dezembro de 2021, quando as exportações chinesas para a Índia aumentaram para mais de US$ 120 bilhões, a China passou a ser o maior fornecedor comercial da Índia — embora o destino mais importante das exportações indianas continue sendo os Estados Unidos. Segundo, a Rússia é o maior fornecedor de equipamentos militares para a Índia, que recentemente encomendou um sistema de defesa antiaérea e antimísseis russos estimado em mais de US$ 5 bilhões. Terceiro, várias empresas exportadoras indianas, vislumbrando boas oportunidades, também estão se preparando para entrar na Rússia, para substituir as norte-americanas e europeias que abandonaram o país em um protesto birrento contra Putin.
Outro fato é que a Arábia Saudita, tradicional aliada dos Estados Unidos, já considera aceitar a moeda da China como pagamento por suas exportações de petróleo para a ditadura comunista. Motivo: a desastrosa política externa de Biden. Não se sabe ainda se os demais países do Golfo farão o mesmo. O que já se pode afirmar é que a política norte-americana de tentar expulsar a Rússia dos mercados financeiros e de commodities incentivou os russos e alguns de seus aliados a buscarem outras opções.
Considerando tudo isso, parece evidente que está se iniciando um processo de “saída do dólar” por parte de Rússia, China e Índia, cuja consolidação ainda não se pode assegurar, mas que também não pode ser descartada.
É oportuno, portanto, formular uma pergunta: como membro importante dos Brics, o Brasil deve ter interesse em participar — pelo menos parcialmente — desse processo?
Na pior das hipóteses, deve ser uma possibilidade a ser considerada, porque pode diminuir a nossa dependência exclusiva de uma moeda que vem sendo pessimamente gerida e que vem se desvalorizando flagrantemente. Não se trata, obviamente, de abandonar a moeda norte-americana, mas de abdicar do hábito de colocar todos os ovos na mesma cesta, e de inserir nosso país em uma nova ordem “do bem”, multipolar e livre das imposições limitadoras da liberdade do globalismo.
Sanções são canetadas que indivíduos com cabeças coletivistas e, portanto, intervencionistas praticam em nome de seus países, geralmente por motivos alheios ao patriotismo genuíno. Com boas ou más intenções, ao interferirem no processo de mercado, provocam reações que escapam ao controle, são invariavelmente diferentes do planejado e quase sempre produzem consequências opostas às imaginadas. Parece que, como o bíblico Sansão, uma sanção sempre tem uma Dalila para arruiná-la. Desta vez a moça pode surgir na forma de um mundo multipolarizado e com muitos acordos bilaterais. O Brasil pode ganhar com isso.
Ubiratan Jorge Iorio é economista, professor e escritor. Instagram: @ubiratanjorgeiorio
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O globalismo é o maior inimigo das liberdades individuais.
Nota dez para esse texto. Parabéns. Gostei muito do posicionamento do autor. Que venham novos tempos.