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Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock
Edição 111

O resgate do federalismo

Preservar o poder de decisão da maioria das questões mais perto do cidadão é garantir uma espécie de accountability que inexiste quando o poder é exercido por burocratas ou juízes sem votos

Rodrigo Constantino
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O vazamento do rascunho do voto da Suprema Corte norte-americana sobre o polêmico caso Roe vs Wade reacendeu o debate sobre o aborto no país, com a esquerda espalhando a mentira de que sua revogação significaria a proibição do aborto pelo governo federal. Não é disso que se trata, como fica claro no voto vazado do juiz Samuel Alito. A decisão, em 1973, foi calcada em argumentos muito frágeis, como o “direito de privacidade”, e usurpou dos Estados o poder de decidir. O que a revogação faria, quase meio século depois, é simplesmente devolver aos Estados o poder de decisão.

O que realmente deveria estar sendo debatido, portanto, não é o aborto em si, mas, sim, o federalismo. A esquerda democrata, sem conseguir convencer os eleitores de suas pautas radicais, quer centralizar cada vez mais o poder, para governar por meio de poucos “iluminados”. Uma maioria simples na Corte Suprema poderia criar uma legislação, que, na prática, deveria ser função dos parlamentares. Quanto mais perto do povo estiver o poder, melhor. Quanto mais descentralizado ele for, melhor. Os “pais fundadores” compreendiam bem isso.

Aqui cabe resumir o federalismo, para que fique claro o seu papel. Não existe um modelo único e perfeito para as sociedades, e por isso mesmo há grandes vantagens no federalismo, cuja multiplicidade de formatos representa seu ponto forte. Haverá sempre uma tensão entre o que é nacional e o que é local, mas preservar o poder decisório da maioria das questões mais perto do cidadão é garantir uma espécie de accountability que inexiste quando o poder é exercido por burocratas, tecnocratas ou mesmo juízes sem votos e distantes.

Em sua origem, o federalismo nasceu de unidades até então separadas, como Estados ou colônias independentes, que se deram conta de que um grande número de interesses comuns justificava uma configuração federativa. A estrutura federal lhes permitiria preservar boa parte da sua autonomia e, ao mesmo tempo, possibilitar vantagens de uma fusão em uma comunidade maior para certas causas. A lógica seguiria o princípio de subsidiariedade, preservando círculos concêntricos de interesse, com o grosso dos temas sendo decididos pelo poder local, e apenas aquilo que realmente é de interesse comum migrando para a estrutura federal.

Manter essa configuração não é tarefa fácil, pois há uma tendência de avanço do poder nacional sobre os demais. As guerras foram responsáveis por boa parte da concentração de poder na esfera nacional, pelo esforço necessário para defender todo o território. O modelo econômico do “welfare state” também contribuiu bastante para o agigantamento de uma estrutura federal, que se tornou cada vez mais invasiva em nome da “justiça social” e da “guerra contra as desigualdades”.

Quanto mais concentrado o poder e maior a população sob este comando, maior será a tendência de “um tamanho único para todos”

Não há uma resposta teórica, tampouco empírica, para qual o tamanho ideal de uma unidade política. Unidades muito pequenas carecem de capacidade para certas atribuições políticas, enquanto unidades grandes demais se tornam deveras afastadas do controle popular. A Suíça representa um caso interessante de federalismo, com seus vários cantões, três idiomas oficiais, duas religiões predominantes e sem sequer a figura de um presidente nacional.

George Anderson, em seu livro introdutório ao federalismo, explica os benefícios desse modelo: “Frequentemente, divisões étnicas, linguísticas e religiosas se entrelaçam — a Suíça é um caso clássico — e isso pode ajudar a reduzir a polarização social. Costuma ser mais difícil lidar com uma hostilidade marcante, ou mesmo acentuar as distinções existentes entre duas populações muito díspares, do que lidar com várias divisões espalhadas pelos diversos contingentes populacionais”.

Quanto mais concentrado o poder e maior a população sob este comando, maior será a tendência de “um tamanho único para todos”, ou seja, decisões de cima para baixo serão impostas sem levar em conta todas as nuanças e diversidades populacionais. Já o federalismo permite maior diversidade, descentralização e, acima de tudo, experimentos locais e o famoso “voto com os pés”, a mais poderosa ferramenta individual como protesto contra decisões que se considera equivocadas.

Basta pensar que os californianos, dominados pela mentalidade “progressista”, podem votar pela retirada de recursos da polícia, o impedimento de tratamento compulsório aos doentes mentais, políticas energéticas elitistas que encarecem o combustível, impostos maiores sobre os mais “ricos”, ideologia de gênero em escolas públicas, e um conservador, diante de tanta maluquice, pode simplesmente se mandar para a Flórida — como tantos, de fato, têm feito. O federalismo preserva boa dose da liberdade individual.

“O federalismo funciona melhor onde há amplo respeito pelo Estado de Direito, cultura de tolerância e de aceitação entre diferentes grupos populacionais e significativos traços de identidade comum”, explica Anderson. Na verdade, em alguns países altamente diversificados, o federalismo pode ser a única forma de governança constitucional compatível com a estabilidade democrática. Um divórcio amigável, afinal, parece uma alternativa melhor do que um casamento forçado e sem amor. No limite, a concentração de poder no modelo majoritário “o vencedor leva tudo” pode acarretar até mesmo a secessão de Estados insatisfeitos. Para se preservar uma nação, é crucial manter denominadores comuns mínimos, um tecido social capaz de unir esses indivíduos em torno de propósitos comuns e valores básicos. O modelo utópico globalista, ilustrado na canção Imagine, de John Lennon, de um mundo sem fronteiras, religiões e propriedades, não levaria ao fim das guerras, mas, sim, a uma tirania assustadora.

Após essa breve reflexão sobre o federalismo, fica mais fácil compreender a importância da revogação da Roe vs Wade. Aborto é tema delicado, capaz de dividir muito a população. Abortistas que insistem nos “direitos da mulher”, ignorando se tratar da vida de um terceiro no ventre materno, não estarão impedidos de realizar o aborto, mas terão de convencer a população local de que esse é o melhor caminho. E conservadores que valorizam a vida humana como sagrada desde sua concepção poderão se unir para propor legislação local contrária ao aborto. Cada um poderá, então, escolher viver num Estado de acordo com tais decisões, entre muitas outras. Chama-se liberdade. A esquerda, ao condenar com tanta veemência essa mudança, demonstra seu ódio ao poder de escolha dos indivíduos.

Leia também “Eles não suportam a liberdade”

5 comentários
  1. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Excelente artigo. Parabéns Constantino. Uma aula sobre Federalismo e mais uma vez um alerta de que os esquerdopatas abominam a ideia de liberdade.

  2. José Arnaldo Amaral
    José Arnaldo Amaral

    A ditadura dos senhores governantes do Estado Nacional,eleitos ou não, públicos e/ou privados,tem permanente começo, e nunca fim, no avassalamento dos municípios -poder local- pelos estados ditos federados, e União dita federativa.

  3. Luiz Antônio Alves
    Luiz Antônio Alves

    assisti hoje as opiniões na JP sobre a decisão do economista tributarista Alexandre de Moraes. Tu tem um colega de bancada que pouco conhece federalismo, livre mercado, competência produtiva e drawback. Os incentivos aduaneiros podem prejudicar empresas que estão em outras regiões do país em termos de melhor preço. Mas o assunto é complexo e não pode ser decidido no STF. Aliás, o Conselho Federal de Economia poderia pedir ao Moraes a sua tese sobre o assunto.

  4. Manfred Trennepohl
    Manfred Trennepohl

    Rodrigo, parabéns por essa matéria esclarecedora.

  5. João Paulo
    João Paulo

    Sensacional, mais um brilhante artigo do Consta.

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