O coronel Fernando Montenegro, 57 anos, tem um currículo invejável. É presidente da Associação Brasileira de Estudos de Inteligência e Contrainteligência (Abeic), mestre em Ciências Militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e auditor do Curso de Defesa do Ministério da Defesa de Portugal.
Sua carreira também é marcada por conquistas na vida prática. Ele foi comandante da pacificação do Complexo do Alemão e da Penha, em 2011 e 2012; comandante de tropas de Operações Especiais; e instrutor-chefe do Centro de Instrução de Guerra na Selva (Cigs).
Essas credenciais o levaram para o outro lado do Atlântico. Montenegro é professor convidado da Força Aérea de Portugal, onde trabalha atualmente, e analista político da CNN Portugal. Sua mais recente missão pela emissora foi acompanhar in loco a invasão da Ucrânia pela Rússia.
Testemunha ocular do conflito mais importante deste milênio, o coronel descreve as mazelas vividas pela população ucraniana. “Poucos dias antes de o confronto irromper, essas pessoas estavam em suas casas”, observou. “E, de repente, estavam apenas com a roupa do corpo. É muito sofrível.”
A seguir, os principais trechos da entrevista.
Qual foi sua percepção dos ucranianos?
A população estava estressada. Nas primeiras semanas de conflito, notei que as prateleiras dos supermercados estavam vazias. Em Lviv, uma cidade desenvolvida e europeizada em sua arquitetura, as lojas estavam fechadas. Poucos cidadãos andavam pelas ruas à noite, em razão do toque de recolher. Os ucranianos estavam desconfiados e traumatizados, porque vários espiões russos foram presos no país. Às vezes, enquanto estava participando ao vivo de transmissões da CNN Portugal, os cidadãos me abordavam e pediam minha identificação. O Exército da Ucrânia analisava os dados dos profissionais antes de conceder a credencial para trabalhar como jornalista. Era proibido fazer qualquer tipo de filmagem de instalações militares ou policiais.
De que forma os ucranianos se mobilizaram?
Muitos cidadãos se apresentaram para atuar em grupos de autodefesa. Essas pessoas ficavam duas semanas em um treinamento de serviço militar, para depois ocupar checkpoints nos postos de controle e pontos sensíveis. Isso permitiu que os militares pudessem se empenhar em ações de combate. Diversas instalações públicas, como teatros, viraram áreas de apoio às Forças Armadas. As pessoas transformavam redes de pesca em camuflagem, preparavam coquetéis molotov e organizavam os mantimentos e os suprimentos. Depois, os enviavam para a linha de frente. Grande parte desse transporte logístico era realizado por pessoas comuns, em seus carros particulares. Os cidadãos tiraram os bancos dos próprios veículos, para que houvesse mais espaço para armazenar alimentos e, possivelmente, munições e armas. Na área de retaguarda, havia muitas mulheres trabalhando. Elas tinham de apoiar os tios, os irmãos e os maridos, que estavam lutando na linha de frente. Então, ocupavam-se de atividades mais burocráticas, como na identificação de pessoas e na conferência de passaportes.
Em dois anos (1932/1933), os russos mataram de fome na Ucrânia mais cidadãos do que os nazistas eliminaram nos campos de concentração
Na avaliação do senhor, qual é o principal motivo da guerra?
É difícil dizer apenas uma razão. De certa forma, o conflito interessa aos norte-americanos. Pela primeira vez, estamos vivenciando um mundo com três potências militares. Os Estados Unidos querem tirar a Rússia do páreo, para depois se preocupar com sua grande ameaça: a China. A aproximação da Europa com a Rússia não é interessante para Washington. Isso porque os europeus passariam a comprar o gás natural russo. Nesse sentido, haveria uma baixa no preço desse insumo, que muitos empresários norte-americanos exploram no Texas. Outro fator que precisa ser levado em conta é o seguinte: a indústria bélica norte-americana precisa estar sempre vendendo armas. Se há um segmento que lucra com guerra, é a indústria bélica dos Estados Unidos. Não interessa se os norte-americanos vencerão ou perderão as guerras, interessa que exista uma guerra para ser vendida. Houve a Guerra do Vietnã, por exemplo, em que os norte-americanos perderam. Morreram cerca de 50 mil homens, mas os fabricantes de armas ficaram mais ricos. A expansão da Otan para o leste da Rússia também não pode ser desconsiderada. Os russos sentem que estão perdendo uma área de influência e ficando encurralados.
Não há questões locais envolvidas nesse conflito?
Há antigos ressentimentos. Isso ocorre em razão das atrocidades cometidas pelos russos em diversos momentos da História. A Ucrânia fez parte do império russo, depois teve um breve período de independência. Mas logo foi ocupada pelo Exército Vermelho [da extinta União Soviética]. Os ucranianos foram proibidos de falar o próprio idioma. Também houve o Holodomor, que matou entre 7 e 10 milhões de ucranianos pela fome. Em dois anos (1932/1933), os russos mataram de fome na Ucrânia mais cidadãos do que os nazistas eliminaram nos campos de concentração. A Polônia, que também sofreu com a Rússia, está ajudando a Ucrânia. O país forneceu cerca de 25% de sua frota de carros de combate para Kiev.
E os motivos econômicos?
É importante registrar que os territórios de Donbass, a cidade de Mariupol e a Península da Crimeia são as regiões mais ricas e produtivas da Ucrânia. Nesses locais, há parques industriais e siderúrgicos e matrizes energéticas. As terras mais agricultáveis do país ficam nessas regiões. Sem falar nas usinas nucleares. Mais de dois terços da capacidade industrial e energética da Ucrânia estão naqueles locais. Se Kiev perder essas regiões, ficará muito pobre. Também é necessário mencionar os alegados laboratórios de armas químicas e biológicas instalados na Ucrânia, que seriam financiados pelos democratas norte-americanos. Um relatório russo divulgado nesta semana mostrou isso. Alguns dos donos desses laboratórios têm relação com o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e com antigos líderes democratas, como Bill Clinton. As principais empresas envolvidas seriam as fabricantes das vacinas contra a covid-19. Sinceramente, não considero impossível que isso seja verdade.
Qual é o resultado do conflito para os ucranianos?
A guerra está selando um pacto de sangue. Ela confirma a nacionalidade ucraniana, a independência do país. Mas pode haver consequências desastrosas, porque os russos não brincam. A postura do presidente Volodymyr Zelensky, que insiste em entrar na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), foi um dos gatilhos para o confronto. E não adiantou nada, porque a Ucrânia já é um país arrasado pela guerra. Não entrará na Otan nem na União Europeia (UE). Ainda perderá parte de seu território. Isso porque Zelensky delegou as negociações desses acordos para os norte-americanos e para a UE.
De que forma os ucranianos veem os russos?
Antes da guerra, os ucranianos mantinham vínculos históricos, culturais e sociais com os russos. Em muitos aspectos, o relacionamento entre ambos os povos era razoável. No entanto, tendo em vista a postura do presidente da Rússia, Vladimir Putin, isso acabou. Ele proibiu qualquer comentário contra a guerra. O povo russo não sabe exatamente o que está acontecendo. As cidades russas estão quase normais, não sofrem ataques. Há apenas restrições de liberdade. Atualmente, a maioria os ucranianos tem ódio dos russos. Putin é responsável por emitir a ordem, mas os russos apertam o gatilho. Essa fratura de ressentimento vai demorar para cicatrizar.
Qual é a relação do povo russo com o presidente Vladimir Putin?
Ele é benquisto na Rússia, defende os interesses do país. Mas também controla a população com mão de ferro. Muitas pessoas não concordam com a guerra. Entretanto, a população está mais preocupada com a segurança do próprio país. Os russos sabem que não podem contar com ninguém.
Por que razão os países do Leste Europeu querem ingressar na Otan?
O regime comunista foi muito violento e traumático com todos os países ocupados pela Rússia durante o período da União Soviética. Assim que puderam usufruir de liberdade, esses países tentaram se aproximar dos Estados que oferecem às suas populações um estilo de vida que os próprios cidadãos do Leste Europeu gostariam de ter. Isso é representado pela União Europeia e pela Otan.
‘As pessoas passaram a viver em bolhas. É importante dizer que, na guerra, todos mentem’
O senhor imagina que um acordo de paz está próximo?
Sinceramente, não. Se a Rússia explodir uma arma nuclear na Ucrânia, ocorrerá uma mobilização internacional. Os líderes mundiais provavelmente vão querer sentar-se à mesa para conversar. Enquanto isso não ocorrer, sem chance. Os russos poderiam ter finalizado o conflito há muito tempo, mas não o fizeram. Putin tem de prestar contas em casa; ele só vai paralisar as operações militares quando tiver uma vitória militar significativa — na região leste. Isso quer dizer controlar Donbass e construir uma ligação terrestre até a Península da Crimeia. Talvez resolva fazer uma ligação até a Moldávia.
Qual é a importância da propaganda nesta guerra?
Ela faz parte de um dos tabuleiros do conflito. Há também os tabuleiros diplomáticos, dos ciberataques, das guerras cinéticas [confronto praticado em terra, mar e ar], das operações especiais, da guerra irregular e da guerra informacional. Nesse último, entra a questão da propaganda. O centro de gravidade é a opinião pública. Os governos lutam para conquistar a opinião das pessoas. E o convencimento ocorre por meio de todos os vetores de narrativas que chegam à população. Exemplo: todos os veículos de comunicação russos foram desligados da Europa e dos Estados Unidos. Da mesma forma, a imprensa ocidental está fora da Rússia. As pessoas passaram a viver em bolhas. É importante dizer que, na guerra, todos mentem. A Otan sempre busca descredibilizar os russos, enquanto o Kremlin tenta destacar que a Rússia é uma potência militar. O discurso de Putin segundo o qual é necessário ‘desnazificar’ a Ucrânia não corresponde à realidade. O próprio Wagner Group, empresa privada militar que está ajudando a Rússia no conflito, tem como líder um ex-militar russo declaradamente neonazista.
Quais são os efeitos desta guerra no Brasil?
Exigiria uma habilidade no posicionamento diplomático. O Brasil possui uma grande responsabilidade na segurança alimentar do planeta. A cada cinco pratos de comida no mundo, um é fornecido pelo Brasil. Somos o país que mais exporta alimentos. A neutralidade é necessária, porque precisamos continuar a produzir. O Brasil é capaz de minimizar os efeitos da carência de produção de alimentos dos russos e dos ucranianos. Esse conflito acabou sendo oportuno para o agronegócio brasileiro, que usa apenas 7% de seu território e possui grande potencial de expansão. Esse segmento ganhará muito dinheiro com a exportação de comida, como carnes e cereais. Alguns provocadores querem dizer que o presidente Jair Bolsonaro deveria fazer algo além de condenar o conflito. Mas não ganharíamos nada com isso. No momento, é importante para o país manter a estabilidade econômica. Basta ver o estardalhaço que fizeram a Alemanha e a França. Esses países ameaçaram impor sanções à Rússia. Agora, os russos aceitam vender gás natural apenas em rublo [a moeda do país], e os alemães aceitaram pagar. E não se fala mais nisso.
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Excelente entrevista. Bastante esclarecedora, realista e centrada. Parabéns ao entrevistador e entrevistado.
Muito boa a análise, com alguns reparos respeitosos. No meu caso, sou apenas um estudioso da História, Cultura e Genealogia na formação dos povos. Aquela região é secularmente de conflitos entre gupos étnicos, inimigos de morte. Entre outros elementos de prova desta tese é a divisão da antiga Ioguslávia. Quando começaram a definir as novas fronteiras não deu tempo para solidificar a expressão “Nação” com sua integração cultural e até de casamentos entre grupos rivais. Aliás, algúem disse anos atrás que a nova divisão territorial na Ucrânia não daria certo, pois existia muito russo por lá. Concordo plenamente que o comunismo é algo que não desejamos para nós brasileiros miscigenados e com filhos e netos que tem em seu DNA até 5 ou 6 costelinhas ancestrais em 3 ou 4 continentes. Também é claro que o Biden e o Partido Democrata conseguiram um preposto despreparado e que também gosta de demagogia e guerra. A indústria bélica americana está em festa. O Bolsonaro teve uma postura correta. Como se diz aqui no sertão profundo: não se meta em briga de bêbado em baile de chão batido.
Excelente leitura, Luiz.
Obrigado pelo comentário.
Abraço!
Não esqueçamos que a Crimeia se tornou parte da Ucrânia por obra e graça de Khrushev em 1954. E que sua população é majoritariamente russa.
Não é Zelensky que quer entrar para a Otan; é a população da Ucrania, que já se posicionou nesse sentido “n” vezes. A Russia tem direito de definir o que o povo ucraniano tem direito de querer tb??