No decorrer da minha vida, meu próprio país — a Inglaterra — se tornou profundamente corrupto. Seus serviços públicos sempre foram ineficientes, uma espécie de poço sem fundo de absurdos, mas agora eles são ineficientes e corruptos.
A forma que essa corrupção assume é muito pior do que apenas financeira. Afinal, a corrupção financeira — que não exalto de maneira nenhuma — pelo menos faz as coisas acontecerem. Se eu subornar alguém, espero que essa pessoa faça algo em troca. Se não fizer, ela vai arruinar o mercado de subornos. E, em teoria, pelo menos a corrupção financeira pode ser contida por ações legais.
Não que eu já tenha subornado alguém na Inglaterra. O único suborno de que consigo me lembrar foi no Aeroporto de Lagos, Nigéria. O funcionário da alfândega me perguntou: “Você trouxe algum presente?” Respondi que não, porque não conhecia ninguém na Nigéria.
“Para mim”, explicou ele. E me senti um idiota.
Paguei uma pequena quantia com uma risada (ele riu também), porque entendi imediatamente que, se eu subisse no meu pedestal moral e denunciasse a corrupção e todos os seus meandros, ainda estaria no Aeroporto de Lagos décadas depois. Ele era mal remunerado, sem dúvida tinha uma família (que continuava crescendo) para alimentar, e meu pequeno suborno, que pude pagar sem dificuldade, me fez conseguir o que eu queria. Nós nos despedimos de forma amigável, rindo alegremente.
Na Inglaterra, nunca paguei um suborno. Nossos burocratas se consideram honestos demais para isso. Sem dúvida os membros das Câmaras Municipais aceitam propinas para autorizar contratos de construção, mas eu nunca precisei dessas autorizações e não conheço ninguém que tenha precisado.
No entanto, como já mencionei, a Inglaterra de fato se tornou um país muito corrupto. Não é o tipo de corrupção em que o dinheiro é passado sorrateiramente por baixo da mesa, mas algo muito, muito pior. Trata-se da corrupção moral e intelectual que permite que as pessoas, de forma dissimulada, façam coisas erradas, atrapalhem ou dificultem as coisas, enquanto ficam satisfeitas consigo mesmas, como se estivessem trabalhando pelo bem do mundo.
O que é uma regulamentação desnecessária ou até prejudicial senão uma forma de corrupção? É um esquema no qual muitas pessoas, com frequência mais formadas do que o necessário para extrair qualquer benefício dele, são empregadas à custa do dinheiro público e, na prática, impedem que outras pessoas pratiquem atividades lucrativas ou prazerosas. Elas não recebem propinas, porque fazê-lo revelaria sua desonestidade para si mesmas. Em vez disso, com seus procedimentos intelectualmente absurdos, elas obstruem, prejudicam, enlouquecem ou atormentam os cidadãos com procedimentos que consideram necessários para a segurança e o bem-estar do público, e sem os quais acreditam que o mundo vai parar de girar.
“Política da casa” é a resposta que qualquer burocrata oferece a qualquer questionamento sobre qualquer formulário que precise ser preenchido
Claro, não sou contra um procedimento em si: mas, na nossa sociedade, em vez de um auxílio para um objetivo digno, esses procedimentos se tornaram uma fonte de emprego, uma espécie de deus incontestável diante do qual se espera que nos curvemos cegamente. “Política da casa” é a resposta que qualquer burocrata (seja no setor público, seja no setor privado) oferece a qualquer questionamento sobre a necessidade de algum procedimento impeditivo, qualquer formulário que precise ser preenchido. E a autoridade final e incontestável para qualquer procedimento ridículo é supostamente ser uma determinação do governo. É impossível para um cidadão médio descobrir se essa determinação de fato existe ou não: apenas os monomaníacos conseguem executar as coisas com a obstinação necessária para encontrar a resposta. O mais fácil é simplesmente aquiescer e seguir em frente.
Certa vez me pediram para investigar uma explosão de assassinatos cometidos pelos pacientes de um hospital psiquiátrico, muito maior do que se esperaria normalmente. Havia algum fator comum que explicasse os assassinatos, alguma deficiência nos cuidados médicos que os estaria causando?
Li milhares de páginas de anotações e afirmei ao diretor do hospital que o único fator comum nos casos era a idiotice extrema da equipe. Longe de ficar incomodado, ele não pareceu nada surpreso. “Esse é o padrão esperado hoje em dia”, respondeu ele.
A estupidez da equipe do hospital era especial. Não era um tipo de deficiência mental, um ato de Deus. Era o tipo de estupidez induzida, uma estupidez induzida pelo procedimento. Por exemplo, a cada contato com um paciente, o funcionário precisava preencher um formulário em que constava a pergunta: “O paciente alguma vez foi violento?”. Às vezes, a resposta era “sim”, às vezes era “não”, mesmo em dias sucessivos com o mesmo paciente, mas a contradição nunca era notada nem comentada. E nenhuma vez, nas muitas centenas de vezes em que a pergunta era feita e a resposta era “sim”, algum funcionário perguntou em que tinha consistido a violência, se a garganta de uma avó tinha sido cortada ou se um garfo tinha sido batido na mesa.
Seria de imaginar que a simples curiosidade, ou a depravação da vasta maioria da humanidade, teria compelido alguém a fazer as óbvias perguntas subsequentes, mas, não, isso nunca aconteceu. A partir daí, concluí que eles tinham passado a considerar suas anotações no formulário o verdadeiro trabalho, e não importava em nada se o que tinham registrado tinha qualquer relação com a realidade externa. Assim que preenchiam o formulário, sua tarefa estava cumprida. E o fato é que, quando alguma coisa dá errado, a primeira — e em geral a última — coisa que alguém faz é olhar os formulários, quer eles tenham sido preenchidos como reza o procedimento; quer o que tenha sido registrado tenha qualquer relação com a verdade não tem nenhuma importância para determinar o que aconteceu. Um formulário preenchido “corretamente”, como exigido pelo procedimento implementado, é uma espécie de indulgência papal: ela inocenta você para sempre.
O procedimento hoje é tratado não como necessário, mas como suficiente. Algum refinamento, ou seja, mais tarefas a serem cumpridas, é sempre necessário, de modo que mais empregos são criados.
Recentemente, por e-mail, meu banco me pediu informações, sem as quais ele talvez precisasse encerrar minha conta. Demorei uma hora para responder. Não era necessário que as informações fossem verdadeiras, claro, só que fossem fornecidas. Havia a implicação de que era uma exigência do governo, para impedir a lavagem de dinheiro. Claro, gastei uma hora (uma das muitas horas em que muitas vezes fico tão irritado a ponto de sofrer apoplexia) fornecendo as informações: sou pequeno, meu banco é grande, e preencher os formulários é uma prevenção ao desemprego. Mas essa burocracia não só torna a vida miserável e gera empregos caros e inúteis de modo corrupto, ela prejudica a atividade econômica real.
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A burocracia subverte a democracia. Os burocratas criam controles próprios para ter o poder de controlar as políticas públicas como se essas fossem de propriedades privadas deles.
A burocracia é autofágica, consome com si mesma os impostos pagos pela sociedade.
Algumas dessas invencionices ganham siglas e também sofisticação suficiente para que você pareça desatualizado e os autores da tolice visionários de um futuro luminoso
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No Brasil chegou-se ao cúmulo de, na época do Governo Sarney, criar-se um absurdo “Ministério da Desburocratização”. Não precisa nem dizer que não resolveu nada, como já seria de se esperar. Criou-se um Ministério, ou seja, uma tremenda estrutura burocrática para “desburocratizar”. Parece piada mas realmente aconteceu.
Enterraram o reconhecimento de firma uma meia dúzia de vezes, mas a prática sempre renasce das cinzas.
Essa burocracia só serve para criar empregos desnecessários, sem os quais provavelmente as coisas andariam melhor.
Pobres brasileiros! Aqui nascemos em meio a tanta burocracia e corrupção que, se tudo isso acabasse de repente, ninguém saberia como agir. A sensação, aí sim, é de que algo estaria errado.
Sou funcionário concursado de um banco público estadual e confirmo 100% das informações do Theodore. Eu tento ao máximo ser útil e dar celeridade às coisas. Só qeu infelizmente eu não posso mudar o mundo, mas tenho a tranquilidade de estar fazendo a minha parte.
Isso acontece geralmente no serviço público onde milhares de funcionários públicos cafetizam os pagadores de impostos.
Ótimo texto. Parabéns. Se o autor vivesse no Brasil já teria morrido. Não aguentaria a nossa burocracia inútil.
Sempre achei que a capacidade de desenvolver tarefas inúteis fosse exclusiva do Brasil, principalmente no setor público, mas vejo que essa praga é universal
Caro jornalista, se conhecesse a Justiça do Trabalho ou Justiça Eleitoral no Brasil, você teria uma extensão exata de seu manicômio inglês.
Excelente artigo. Achava que só no Brasil tínhamos ” especialistas” em desempenhar tarefas inúteis muitas vezes até conflitantes com outras ainda mais inúteis. Mas vejo que essa desgraça é universal. A comunidade dos ” defeca regras” se tornou forte e internacional
Em 2008, fui candidato a vereador. Perdi. Meu partido, sem estrutura e desorganizado, não prestou contas da campanha. Como eu não gastei nada considerável meu nem do partido, também não prestei. A “justiça” eleitoral me julgou e puniu como inelegível por 8 anos. Passados esses anos, precisei transferir o título do TO para PE. Não pude. Só se prestasse conta do que eu não gastei. O funcionário do TRE-TO disse que, segundo a legislação, eu não precisava fazê-lo porque eu ja havia sido punido por não ter feito. O do TRE-PE disse que, mesmo assim, eu teria que que o fazer. Fui obrigado. Prestei conta dos m´seros reias que gastei, tive que contratar um contador para montar uma história contábil. Foi como se o homicida, após cumprir sua pena, tivesse que ressucitar a vítima para ser solto. Eis aí a burocracia.
“Eppur si muove”.
Pessoas que apresentam dificuldade com formulários e outros procedimentos do sistema, como aquele atendimento gravado (por ex.:digite a opção 1,2 ,3, etc ou volte ao menu principal) são, atualmente, classificados como “neurodivergentes” segundo a médica especialista na siênssia! Recebi email do cartão de credito com uma longa e esclarecedora redação a respeito. Logo, logo, imagino, haverá medicação tarja preta pra promover o bem estar e satisfação nessas tarefas. Sorria.
Theodore, bem vindo ao cotidiano brasileiro. Somos assim desde 1500…
Aqui no Brasil a politica da casa é: “Criamos dificuldades para vender facilidades”.
Diminuístes minha solidão Theodore…as vezes penso que só eu percebo todas essas coisas!
Se passarem um pente fino em toda a burocracia estatal e restarem apenas atividades e procedimentos essenciais, e se essas essencialidades forem informatizadas ao máximo, tenho certeza que dá pra enxugar 95% da máquina pública. No mínimo, uns 80% dos aspones (assessores de porra nenhuma) deixam de existir. Se repassarem esse ganho para o pagador de impostos, daria pra cortar pelo menos a metade, o que garantiria o crescimento sustentável do país.
Mas estamos no Brasil, um país bananeira, onde a casta da burocracia estatal e seus asseclas do “capitalismo” de compadrio nadam de braçada.