Uma pergunta muito razoável que o pagador de impostos brasileiro poderia fazer neste momento, com todo o respeito e sem ofender a ninguém, é a seguinte: por que o ministro Luís Roberto Barroso se ausenta tanto do trabalho para fazer palestras no exterior? Pode, isso? O ministro, assim como os seus colegas de STF, já tem dois meses de férias por ano, mais o “recesso forense” entre dezembro e janeiro, mais os sábados, domingos e feriados — incluindo o dia 11 de agosto, que só é feriado para a máquina judiciária. No tempo que sobra para trabalhar, e que já não é grande coisa, ele não deveria, como servidor do Estado pago pelo público em geral, comparecer ao local de trabalho para dar o seu expediente? Ou pelo menos trabalhar em casa, se ainda quer se esconder da covid? Será que o STF não tem mais nenhum processo a resolver — e está sobrando tempo para os ministros viajarem pelo mundo afora? Prepare-se para continuar com as suas dúvidas, porque ninguém vai responder pergunta nenhuma — e é melhor não insistir, para não ser indiciado criminalmente por “ataques” à suprema corte, “atos antidemocráticos” e outros horrores.
O curioso, nas palestras de Barroso no exterior, é que ele não fica em temas ligados à ciência do Direito — vira e mexe o ministro se lança a comentários esquisitos sobre a política interna do Brasil. Ele já disse, nos Estados Unidos, que o presidente Jair Bolsonaro é o “inimigo”, e que uma de suas missões é “empurrar a história para a frente”. Em outra ocasião, também lá, participou de um seminário cujo tema era “como se livrar de um presidente” — e já chamou o regime hoje vigente no Brasil de “dictatorship”. Agora, num discurso que fez em sua própria homenagem em Londres, discorreu sobre os feitos extraordinários que teria realizado durante a pandemia; um deles, segundo disse, foi vencer “o abominável retrocesso” do voto impresso com “contagem manual”. Como assim? Nunca houve nenhum projeto de lei, ato do governo ou qualquer coisa parecida propondo o voto impresso no Brasil, e muito menos a apuração manual. Pode ser, até, que tenham falado nisso no debate sobre o sistema eleitoral, mas ficou-se por aí, na conversa. O que houve foi um movimento em favor do recibo impresso para o voto eletrônico — o que é claramente outra coisa. Alguns dos presentes chegaram a protestar. Ficou por isso mesmo.
Não há notícia de que juízes da Suprema Corte americana, o modelo universal de excelência quando se fala em fornecer justiça de alta qualidade, venham ao Brasil discutir questões políticas internas dos Estados Unidos. Também não fazem esse tipo de coisa os magistrados de primeira grandeza da França, Itália, Alemanha e outras democracias que se respeitam. O Brasil já foi assim um dia — mas hoje é outra coisa. Por decisão da maioria dos ministros do STF, tomada pouco a pouco ao longo do tempo, não existe mais no Brasil uma corte suprema de justiça. Em seu lugar, em vez de um tribunal dedicado a decidir sobre questões que envolvam a aplicação correta da Constituição, há um Comitê Central, ou uma espécie de Politburo, de militantes políticos que fazem exatamente o contrário do seu dever: desrespeitam abertamente as normas constitucionais para governar o Brasil através de despachos. Ficou assim porque os ministros deram a si próprios o direito e o dever de construir um país e uma sociedade que resultem não da vontade da maioria, expressa nas eleições para o Congresso Nacional e o Poder Executivo, mas num modelo de virtudes que têm dentro das suas próprias cabeças.
Gravíssimas as falas do Barroso durante a ‘Brasil Conference’ em Boston, EUA: “É preciso não supervalorizar o inimigo! Nós somos muito poderosos! Nós somos a democracia! Nós é que somos os poderes do bem! Nós é que ajudamos a empurrar a história na direção certa!”
Inacreditável! pic.twitter.com/qgo5kJWOEf— Lelia Adad (@AdadLelia) April 12, 2022
A maioria erra, acham os ministros. Elegem governos que o STF considera direitistas, populistas, autoritários e conservadores nas questões ligadas a Deus, pátria, família e costumes em geral — algo intolerável para o seu entendimento do mundo e da vida. Estão convencidos de que é sua obrigação corrigir isso, mesmo porque, em seu credo, há eleições e eleições: quando perdem, não é porque o adversário teve mais votos, mas porque “usou” as eleições para subir ao governo e, uma vez ali, agir contra a democracia. É o que eles acham que aconteceu com o Brasil em 2018. É o que não querem que aconteça de novo em 2022.
O problema para esta doutrina é simples e insolúvel: não existe em nenhuma lei brasileira, e nem nos artigos 101, 102 e 103 da Constituição Federal, onde são descritas, uma a uma, as 21 tarefas que o STF está autorizado e obrigado a executar, o mais remoto vestígio de permissão para que os ministros façam o que estão fazendo. Não é permitido a eles, ali, o exercício de nenhuma outra função pública que não seja a de magistrado — não se prevê que governem nada, nem que abram inquéritos criminais para apurar “notícias falsas” ou “atos antidemocráticos” e nem que sejam “empurradores” da história. Não estão autorizados a criar crimes que não existem no Código Penal, como a “homofobia”, nem a proibir a polícia de subir nos morros do Rio de Janeiro e nem a manter na cadeia por nove meses, e depois condenar a quase nove anos de prisão, um deputado federal no pleno exercício de seu mandato, que não cometeu crime inafiançável e nem foi preso em flagrante. Não podem criar a figura jurídica do “flagrante perpétuo”. Não têm licença legal para salvar “a democracia”.
Os ministros do STF vêm fazendo há pelo menos três anos e meio tudo o que lhes dá na telha e ninguém age contra isso
Os ministros do STF sabem ler a Constituição tão bem quanto qualquer brasileiro alfabetizado. Se não cumprem o que está escrito ali, é porque não querem cumprir — e não querem cumprir porque vêm fazendo há pelo menos três anos e meio tudo o que lhes dá na telha e ninguém age contra isso, a começar pelo Congresso Nacional. Ao contrário: embora tenham um índice de aprovação popular de 24%, algo francamente miserável, são apoiados com paixão pela esquerda, as elites, os empresários socialistas, os empreiteiros de obras públicas, os criminalistas que defendem corruptos, a mídia, as classes culturais, o movimento LGBT+ e por aí afora. É quem tem voz; é quem aparece. Todos têm mais ou menos a mesma visão do STF sobre o Brasil ideal. São a favor do aborto; do princípio segundo o qual o criminoso deve ser, acima de tudo, protegido pela lei, e que o policial é o inimigo da sociedade; da pregação nas escolas da noção de que todes são do mesmo sexo até se tornarem adultes, e que menines e menines não se diferenciam por gênero; da crença em que o agronegócio brasileiro destrói a natureza, envenena os alimentos com “agrotóxicos” e mata os índios; do controle sobre a liberdade de expressão nas redes sociais; das prisões políticas de militantes da direita — e por aí se vai, na direção geral que todo mundo sabe.
O que a maioria dos ministros faz nesse momento é desrespeitar a Constituição. Têm um candidato aberto ao cargo de presidente da República. Perseguem os adversários políticos. Eliminam direitos individuais e liberdades públicas. Impedem o trabalho de advogados na defesa dos clientes que foram indiciados em seus inquéritos policiais. Dão ordens ao Congresso. Bloqueiam a ação do Poder Executivo sempre que podem, e interferem o tempo todo em suas decisões administrativas. São os únicos cidadãos brasileiros que não prestam contas a ninguém. Estão governando o Brasil num regime de exceção.
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