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Protestos após Suprema Corte dos Estados Unidos derrubar Roe vs Wade | Foto: Olga Fe/Shutterstock
Edição 119

Uma ode à vida e às leis

A anulação de Roe v. Wade é uma vitória não apenas para aqueles que são contra o aborto, mas para aqueles que têm Constituições como o único norte possível em uma nação

Ana Paula Henkel
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Depois de quase 50 anos, a decisão da Suprema Corte Norte-Americana mais desonesta e destrutiva da história dos Estados Unidos finalmente foi derrubada. O SCOTUS anulou na última sexta-feira Roe v. Wade, a esticadinha ativista da Corte de 1973 e, efetivamente, encerrou o reconhecimento do “direito constitucional” ao aborto, dando aos Estados o poder de permitir, limitar ou proibir completamente a prática. Uma vitória não apenas para aqueles que são contra o aborto, mas para aqueles que têm constituições como o único norte possível em uma nação séria.

Roe v. Wade foi uma daquelas decisões cuja defesa você nunca ouviu em seus próprios termos. Muitas pessoas querem o aborto legal, mas ninguém nunca explicou como exatamente a Constituição garante isso. A lei de 1973 promulgada por militantes na Suprema Corte Norte-Americana nunca passou, na verdade, de um documento político. Não era um parecer jurídico e, por isso, sua existência degradou e minou a legitimidade da SCOTUS, uma das instituições mais importantes do país. O objetivo das supremas cortes é simples: determinar se as leis que os políticos aprovam nas casas legislativas são consistentes com a Constituição. Só isso. Isso é tudo o que um Supremo Tribunal faz. Ou pelo menos deveria fazer, não é Alexandre?

Depois de quase meio século, os eleitores norte-americanos finalmente tiveram seus direitos restaurados

Por 50 anos, a Suprema Corte dos EUA lutou para justificar sua decisão em Roe v. Wade, mas era difícil defender o indefensável. Até a falecida juíza Ruth Bader Ginsburg, uma das juízas mais progressistas da história norte-americana, expressou sérias dúvidas quanto à legalidade da legislação. Em nenhum lugar do texto, estrutura e significado da Constituição pode ser encontrado um “direito de privacidade ao aborto”. Não é explícito nem implícito. Em Roe v. Wade, os juízes simplesmente inventaram um direito que não existe. E este foi um erro lamentável que não apenas tirou dos Estados, através de seus legisladores, o direito e a autonomia para decidir a questão, mas ceifou a vida de milhões de bebês nos ventres de suas mães.

Protestos após a Suprema Corte dos EUA derrubar Roe v. Wade, no dia 24 de junho de 2022 | Foto: Shutterstock

O que uma Suprema Corte não faz, o que não pode e nunca deve fazer é legislar, seja no Brasil, seja nos Estados Unidos. O ato de um tribunal constitucional fazer leis seria, por definição, antidemocrático. Nenhum dos juízes da Suprema Corte no Brasil ou nos Estados Unidos foi eleito por ninguém. Se os autoproclamados “defensores da democracia” se importassem, de fato, com a democracia e quisessem que seus princípios fossem protegidos, eles exigiriam que todas as leis fossem aprovadas apenas por legislaturas eleitas. Sou abertamente contra o aborto por questões éticas, cristãs e científicas, mas o ponto principal aqui é que não importa o que você pensa sobre o aborto ou qualquer outra questão específica: em uma democracia, os eleitores têm a palavra final sobre como são governados. Isso é o que significa democracia.

Depois de quase meio século, os eleitores norte-americanos finalmente tiveram seus direitos restaurados sobre a questão do aborto. Se eles apoiam, podem votar pela sua legalização. Se eles não apoiam, podem votar para proibi-lo. Simples e como o sistema deve funcionar — não sendo uma monarquia ou uma tirania do judiciário. Então, qual é o argumento contra isso? Bem, não há um. A ira previsível dos ativistas que odeiam a vida e as leis é compreensível, mas exagerada. O aborto não é agora proibido em todo o país. Em alguns Estados, o aborto será permitido com poucas ou nenhuma restrição. Em outros lugares, ocorrerá exatamente o oposto. Se os cidadãos não gostarem das regras em seus respectivos Estados, eles são livres para alterá-las, expressando seu descontentamento nas urnas e elegendo novos representantes. É assim que a democracia funciona em uma república constitucional.

Foi preciso coragem para os membros da alta corte se manterem firmes diante das ameaças de violência e assédio que aumentaram de forma alarmante após o vazamento desprezível do documento da possível opinião há algumas semanas. Os protestos em frente às casas dos juízes foram uma tentativa ilegal de influenciá-los indevidamente com intimidação e ameaças. O procurador-geral da administração Biden, Merrick Garland, não tomou nenhuma medida para fazer cumprir a lei que torna crime obstruir um processo judicial em andamento. Os três juízes que se opuseram à decisão nem se preocuparam em apresentar um argumento legal a favor da manutenção de Roe v. Wade. Em vez disso, fizeram uma vergonhosa birra ad hominem. A certa altura, os três indicados pelo Partido Democrata, Kagan, Breyer e Sotomayor, avisaram que o perverso e diabólico Clarence Thomas, juiz conservador e negro, planeja, na verdade, proibir o casamento inter-racial. Clarence Thomas é casado com uma mulher branca.

Clarence Thomas
Clarence Thomas, juiz da Suprema Corte norte-americana | Foto: Reprodução/Flickr

Mas o ápice da hipocrisia foi a retórica da “autonomia corporal”, algo que, na verdade, somos fortemente a favor. Embora o contexto não se aplique ao aborto, já que estamos falando de duas vidas e dois corpos, os mesmos juízes que votaram a favor da manutenção do aborto por questões de “privacidade médica” votaram a favor de vacinas experimentais obrigatórias para milhões de norte-americanos, violando assim sua autonomia corporal. Os mesmos políticos e ativistas que hoje esperneiam sobre privacidade entre médicos e pacientes forçaram — durante dois longos anos — a publicidade de prontuários médicos de estudantes, funcionários e milhões de cidadãos norte-americanos durante a pandemia.

Se os norte-americanos querem criar um direito nacional ao aborto, eles podem fazê-lo redigindo, aprovando e ratificando uma emenda constitucional

E, claro, não houve surpresa alguma no fato de que o presidente Joe Biden rapidamente tenha aproveitado a oportunidade para desencadear o frenesi político para obter ganhos partidários. Diante de câmeras e microfones nesta semana, ele afirmou que a reversão de Roe foi culpa do ex-presidente Donald Trump (Yes, indeed! Amem!), que cumpriu sua promessa de campanha e indicou três juízes conservadores e constitucionalistas para a corte, prometendo a volta ao respeito à Constituição norte-americana. Biden pediu a todos que votem nos democratas nas eleições de meio de mandato em novembro, os midterms, em que seu partido está enfrentando uma perda drástica de controle na Câmara e no Senado. Biden, indignado, insistiu que a Suprema Corte “tirou um direito constitucional fundamental”, embora o tribunal tenha determinado que tal direito nunca existiu em nenhum lugar da Constituição. Mas, para um presidente que precisa de instruções escritas em cartões como “primeiro você vai até seu assento; depois você cumprimenta todos…”, explicar que um direito imaginário não pode ser anulado é pedir demais.

O ex-presidente Barack Obama também não perdeu a oportunidade de estar sob os holofotes. Com a retórica inflamada e o narcisismo latente de sempre, declarou com desdém que a decisão da Suprema Corte agora fará com que a lei seja relegada aos “caprichos de políticos e ideólogos” nos Estados. Obama, do alto de seu pedantismo, pode menosprezar o serviço público de pessoas eleitas pelo povo quanto quiser — ignorando que ele próprio foi uma dessas pessoas —, mas é assim que a democracia representativa funciona.

Se os norte-americanos querem criar um direito nacional ao aborto, eles podem fazê-lo redigindo, aprovando e ratificando uma emenda constitucional. Nada os impede, exceto a vontade de agir de acordo com suas convicções, trabalhando em alternativas dentro de seus Estados para aprovar leis que reflitam seus pontos de vista. Até lá, os cidadãos devem respeitar a decisão da Suprema Corte, que finalmente, embora tardiamente, restaurou os princípios constitucionais da nação mais livre do mundo. Home of the free because of the brave (O lar dos livres, por causa dos bravos).

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10 comentários
  1. Jenielson Sousa Lopes
    Jenielson Sousa Lopes

    Liberdade

  2. JOSE TADEU MOURA SERRA
    JOSE TADEU MOURA SERRA

    BRILHANTE ANA PAULA como SEMPRE .

  3. Luiz Wargha
    Luiz Wargha

    Reportagem excelente, simples e didático. Nossos excelentíssimos ministros, em sua maioria, poderiam seguir as dicas citadas acima …… aliais, pagamos para isto, basta trabalhar corretamente!!

  4. Paulo Fernando Vogel
    Paulo Fernando Vogel

    Infelizmente no Brasil de 2022 nem mesmo se pode recorrer à Constituição. Este livreto foi rasgado pelo STF. Estamos em um país sem rumo, pois sem leme!

  5. G. Oliveira
    G. Oliveira

    O absurdo está na moda.
    Ontem enjoei – de fato, não é apenas uma expressão – ouvindo um programa jornalístico no rádio, enquanto dirigia no trajeto do trabalho para casa.
    Uma suposta jornalista abordava a questão do aborto, citando expressões decoradas como: “liberdade de escolha”, “direitos individuais”, “papel da mulher na sociedade”, “conquistas da mulher” e outras baboseiras sem sentido, quando relacionadas a assassinatos de bebês.
    Pasmem, ela incluiu o aborto no rol de “direitos humanos”. Em momento algum falou do direito à vida do bebê.
    O mundo está doente.

  6. Jorge Apolonio Martins
    Jorge Apolonio Martins

    Vi que faltou uma vírgula antes do vocativo “Alexandre”. Ora, quem vai ligar pra isso? Texto brilhante, Ana.

  7. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    A Suprema Côrte de lá tá se recuperando da inutilidade praticada não eleição de Trump

  8. eber alves dutra
    eber alves dutra

    A Ana foi cirúrgica.
    Eu moro nos US, sou cidadão Americano, e sei que o que está resenhado por ela é exatamente os fatos e a verdade.
    Considerando que os US são uma República Federativa, com Estados independentes, cabe a cada um decidir a norma e trâmite que sejam de interesse próprio.
    esse negócio de um orgão judiciário “legislar” verticalmente em favor de um Estado livre e democrático é coisa de Macunaíma…

    1. G. Oliveira
      G. Oliveira

      Há um forte movimento em curso para transformar os Estados Unidos numa república de bananas.
      Macunaíma está por aí, por perto.

  9. Roberto Gomes
    Roberto Gomes

    Parabéns novamente Ana! Excelente artigo. Forte abraço

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