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Salman Rushdie | Foto: Wikimedia Commons/ CK
Edição 126

O ataque a Salman Rushdie é um ataque a todos nós

Precisamos parar de ceder a esse mal. É o tempo de lutar pela liberdade de expressão

Tom Slater, da Spiked
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Pensar nisso revira o estômago. Um homem esfaqueado por escrever um livro. E não um homem qualquer, mas Salman Rushdie. O autor cuja cabeça estava a prêmio. O autor de Os Versos Satânicos, o romance queimado por islamistas no mundo todo. O autor cujo ato de “blasfêmia” no fim do século 20 nos mostrou a profundidade do problema da intolerância islâmica — e a profundidade da covardia do Ocidente liberal diante dessa variante mais violenta e descontrolada da cultura do cancelamento.

Estamos todos rezando por Salman Rushdie; até mesmo nós, que não acreditamos em Deus. Ele foi levado por transporte aéreo para o hospital, depois de ser esfaqueado diversas vezes no pescoço e no abdômen no palco de um evento em Nova Iorque. Andrew Wylie, agente de Rushdie, afirmou que ele está respirando por aparelhos e não consegue falar. “É provável que Salman perca um olho; os nervos de um braço foram cortados, e seu fígado foi esfaqueado e danificado”, ele declarou. Aqueles que acreditam em liberdade no mundo todo estão torcendo para que ele sobreviva.

Ainda não sabemos ao certo por que o suspeito — Hadi Matar, 24 anos, de Nova Jersey — avançou no palco e esfaqueou Rushdie de forma enlouquecida, segundo relatos. Mas temos uma suposição fundamentada. Durante mais de 30 anos, Rushdie viveu sob uma sentença de morte. Em 14 de fevereiro de 1989, o aiatolá Khomeini, do Irã, emitiu uma fatwa (decreto baseado nas leis islâmicas) contra ele e contra todos os envolvidos na publicação de seu quarto romance, considerado “blasfemo”. Rushdie passou nove anos escondido. O tradutor do seu livro em japonês foi esfaqueado até a morte, em 1991. O tradutor turco escapou por pouco de um incêndio criminoso causado por islamistas que levou outras 37 vidas, em 1993.

Livro Os Versos Satânicos | Foto: Reprodução

Em anos recentes, Rushdie estava levando uma vida relativamente livre. “Para mim, parece algo que ficou no passado”, ele declarou, sobre a fatwa, em uma entrevista de 2018. Ele afirmou em seguida que estava feliz que Os Versos Satânicos agora pudessem ser apreciados em seus próprios termos. “Agora, depois de todo esse tempo, ele finalmente pode ter a simples existência de um livro.” Mas a ameaça sempre esteve presente. Apesar de o governo iraniano ter se distanciado da fatwa — e estar em silêncio em relação a Rushdie hoje —, ela continuou existindo. A recompensa de US$ 3 milhões foi acrescida de mais US$ 500 mil em 2012 por uma “fundação religiosa iraniana quase oficial”.

Agora — muito provavelmente — Rushdie por fim pagou o preço mais terrível pelo seu direito à liberdade de expressão. Não se pode superestimar o significado disso. A intolerância islâmica se espalhou como um câncer desde 1989. Agora ela pode ter chegado bem perto de uma de suas maiores vitórias simbólicas. O ataque é um lembrete de quanto essa ideologia é bárbara, retrógrada e, no entanto, patética. Um homem de 75 anos foi esfaqueado por um idiota com um terço de sua idade. Por uma ofensa. Por uma mágoa. Por um livro.

Não apenas cedemos às sensibilidades dos islamistas por medo de suas violentas retaliações, nós as internalizamos

Chega. Aturamos esse mal por tempo demais. Primeiro veio a fatwa, depois vieram os quadrinhos dinamarqueses. Então veio o Charlie Hebdo. Então veio Samuel Paty. Mesmo quando armas, facas e bombas não estão envolvidas, vemos a censura islamista sendo infligida em nossas sociedades ocidentais com assustadora eficácia. No Reino Unido, o professor da escola Batley Grammar continua escondido, depois de mostrar quadrinhos muçulmanos para sua classe mais de um ano atrás. Há alguns meses, uma rede de cinemas cancelou as sessões de um filme “blasfemo”, porque um bando de lunáticos fez um protesto do lado de fora de suas salas.

Pior ainda, não apenas cedemos às sensibilidades dos islamistas por medo de suas violentas retaliações, nós as internalizamos. Nossas elites culturais praticamente as compartilham. Em 2008, a editora Random House desistiu dos planos de publicar The Jewel of Medina, um romance de Sherry Jones que conta a história do relacionamento de Maomé com Aisha, sua esposa de 14 anos. Tudo porque ele “pode ser ofensivo para parte da comunidade muçulmana”. Se você fizer uma crítica ou uma piada muito contundente ao Islã, será acusado de islamofobia — um termo popularizado por islamistas. Um pastor em Belfast foi levado a julgamento em 2015 por um sermão “extremamente ofensivo”. Seu crime? Ele chamou o Islã de “satânico”. Agora somos todos aiatolás.

Nossas novas leis sobre blasfêmia foram escritas com as tintas da covardia liberal. E o caso de Salman Rushdie revelou o tamanho dessa covardia. Na vida pública, gente demais não o defendeu em 1989. As pessoas hesitaram e contiveram sua condenação a Khomeini com sua condenação a Rushdie. O antigo presidente Jimmy Carter chamou Os Versos Satânicos de um “insulto” aos muçulmanos menos de um mês depois que a fatwa foi declarada. Quando Rushdie recebeu o título de cavaleiro em 2007, foi um alvoroço. A finada “liberal democrata” Shirley Williams afirmou que “não era prudente nem muito esperto” dar a um homem que “havia ofendido profundamente os muçulmanos” tamanha honraria.

O escritor Salman Rushdie | Foto: Shutterstock

A censura não é simplesmente uma importação estrangeira, claro. A situação de Rushdie expôs a cultura local do Ocidente de censura e seu distanciamento dos valores liberais, rumo a uma ideologia de multiculturalismo que é condescendente com os mesmos grupos que afirma proteger, que trata os muçulmanos como se fossem fundamentalmente diferentes de nós, incapazes de ser cidadãos livres e tolerantes. No Ocidente, a convicção de que as palavras machucam e que hereges devem ser abandonados promoveu um clima de censura quase absurdo. As pessoas costumam dizer que Os Versos Satânicos não teriam sido publicados hoje. O que é quase com certeza verdade. Mas, se vamos ser honestos, Harry Potter provavelmente também não seria publicado hoje — não por causa do conteúdo ocultista, mas por causa das opiniões indizíveis de sua autora, crítica da política de gênero.

A vingança islamista que Salman Rushdie sofreu nos mostra onde vamos parar quando a liberdade de expressão é abandonada. Quando a ofensa se torna um crime moral. Quando você diz que a fala é uma violência, você termina com violência, irracionalidade e terror. Então, para todos os que olharam para o chão enquanto esse veneno se intensificava, está na hora de escolher um lado. Aqueles que acreditam em liberdade e humanidade precisam se pronunciar em defesa de Salman Rushdie — e de todos os outros hereges. E nem pensem em dizer “mas…”. O ataque a Rushdie é um ataque a todos nós. Vamos tornar a liberdade de expressão a causa da vida dele, a causa do nosso tempo.


Tom Slater é editor da Spiked. Ele está no Twitter: @Tom_Slater_

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4 comentários
  1. Valesca Frois Nassif
    Valesca Frois Nassif

    Toda e qualquer forma de tirania exercida de forma mental ou física merece nosso mais profundo rechaço . Excelente texto!

  2. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Ótimo texto. Parabéns. Já passou da hora de se mudar essa realidade. Quem faz concessões demais, acaba não tendo nada e perdendo o que restava.

  3. Silas Veloso
    Silas Veloso

    Brilhante! O islamismo há muito tempo se tornou chantageador cultural, ameaçando d morte ou ostracismo quem não se submete.

  4. Lenita
    Lenita

    Vejo com preocupação a relação estreita de Maduro com os iranianos, como no caso do avião retido em BsAs, acrescentando envolvimento dos Kirchner com atentados e fatos mais graves.

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