Em junho deste ano, Matt e Ross Duffer, os criadores da absurdamente popular série Stranger Things, geraram uma comoção quando pareceram sugerir que tinham reeditado episódios retroativamente para consertar furos no roteiro apontados pelos fãs. “Demos uma de George Lucas em coisas […] que as pessoas não sabem que aconteceram”, eles afirmaram para a Variety — em referência ao hábito do diretor de Star Wars de “melhorar” as edições de seus filmes depois do lançamento. Depois de muita discussão, os roteiristas de Stranger Things finalmente garantiram aos fãs que “nenhuma cena das temporadas anteriores foi cortada ou reeditada. E jamais será”.
Claramente, é preciso ser um seguidor bastante dedicado de uma série para notar um pequeno erro no roteiro. E, em retrospectiva, mudar um pequeno detalhe de um drama de ficção não é lá grande coisa. Mas a polêmica de Stranger Things faz surgir algumas questões interessantes sobre a tendência crescente de fazer edições retroativas em resposta à reação do público. No velho mundo analógico dos álbuns de vinil e dos livros de papel, reedições de última hora eram, se não impossíveis, sem dúvida muito difíceis. Quando o conteúdo é consumido em formato digital, ele pode ser “atualizado” assim que as primeiras críticas chegam. No entanto, só porque alguma coisa pode ser feita, não significa que está certo fazê-la.
A tentação dos artistas de apertar o botão da edição tem muito mais probabilidade de ser atiçada em reação aos gritos ofendidos do que a problemas numa trama. O primeiro álbum solo de Beyoncé em seis anos, Renaissance, tinha sido lançado fazia uma semana quando foi “atualizado”. Queen Bey substituiu o verso “spazzin’ on that ass” — a palavra “spaz” faz referência a pessoas com deficiência ou aos espasmos das pessoas com paralisia motora — por “blastin’ on that ass”, na faixa Heated, depois que instituições para pessoas com deficiência afirmaram que a letra era ofensiva. A cantora Lizzo foi igualmente rápida em regravar uma nova versão da canção GRRRLs quando, apenas um mês depois, foi acusada de usar o mesmo “termo capacitista”.
O passado como uma continuação do presente
Podemos discutir as diferentes conotações de “spaz” nos Estados Unidos e no Reino Unido, e podemos debater se fazer edições pós-lançamento pode ser considerado censura. Mas a tendência cada vez maior do “memory hole” — alterar ou fazer desaparecer uma obra tida como inconveniente ou constrangedora no momento em que é considerada “problemática” — faz surgirem questões mais amplas sobre nossa noção coletiva das realidades atuais e até nossa relação com o passado imediato.
No processo de “atualização”, as provas dos erros desse passado também são apagadas
Quando músicas, filmes e livros podem ser alterados com um apertar de botão, e a atualização substitui o original, somos forçados a questionar nossas lembranças do que podemos ter lido ou ouvido dias antes. Esse processo é especialmente preocupante quando se trata de algo editado em reação aos gritos dos ofendidos. Porque significa que não é o autor que determina o conteúdo de seu trabalho, mas as pessoas que gritam mais alto nas redes sociais. Também gera uma tendência de editar a posteriori trabalhos mais antigos, talvez muito depois da morte de seu criador.
Vemos isso em pedidos de “atualização” de obras clássicas de literatura, seja em adaptações modernas, seja simplesmente apagando palavras ofensivas das novas edições. A literatura infantil é um foco especial dessa forma de revisionismo. Alguns livros foram totalmente tirados de circulação (como títulos da coleção Dr. Seuss, por exemplo). Em outros casos, nomes de personagens e palavras foram alterados (como da autora de infantojuvenis Enid Blyton). Também existem casos de livros inteiros que foram reescritos (por exemplo, a atualização dos romances de E. Nesbit, escritos por Jacqueline Wilson).
Os comportamentos sociais mudam com o tempo, e termos que costumavam ser considerados aceitáveis caem em desuso ou são substituídos por alternativas mais razoáveis. Mas editar antigas obras da cultura com base nos valores de hoje é reescrever os registros da história. E sugere que o passado é apenas uma continuação do presente e que, séculos atrás, as pessoas tinham os mesmos valores progressistas que somos encorajados a defender hoje.
Essa eliminação de todos os lembretes de um passado que não refletem as atitudes woke de hoje vai além das artes. Ela está no desejo de remover placas e estátuas de figuras históricas que já foram celebradas, mas hoje são odiadas. Está nas campanhas para alterar o nome de ruas, escolas e edifícios. Todos os aspectos do passado, quer tenham ocorrido muitos séculos atrás ou há dois dias, estão sendo interrogados, expiados e alterados em um processo interminável de purificação moral.
A higienização do passado
Mas os ativistas enfrentam um problema. Esse processo de memory holing faz uma limpeza do passado. Quer seja um roteiro, uma letra de música mal interpretada, quer seja a estátua de um traficante de escravos que se tornou filantropo, pecados passados são removidos do registro histórico para acompanhar preocupações políticas contemporâneas. No entanto, no processo de “atualização”, as provas dos erros desse passado também são apagadas.
É difícil saber quanto a sociedade progrediu quando as evidências de valores ultrapassados deixam de existir. Aqueles que pretendem “descolonizar” a história querem que acreditemos não só que o passado foi impreterivelmente ruim, mas também que seu legado pecaminoso dá forma ao nosso presente. Logo só teremos a palavra deles para saber disso.
Quanto mais editamos objetos culturais para formas politicamente aceitáveis, mais frágil se torna nossa compreensão do passado. Somos deixados nos debatendo em um presente em constante atualização.
Os militantes querem as duas coisas. Eles querem higienizar o passado e, ao mesmo tempo, afirmar que tudo o que aconteceu antes do presente foi terrível. Mas precisam amadurecer. A história é confusa. Ela não está em conformidade com os últimos valores woke, porque ela é feita por pessoas falíveis que são fruto de seu tempo.
Precisamos aprender a deixar o passado como é e resistir a essa nova moda de reescrever tudo.
Joanna Williams é colunista da Spiked e autora de How Woke Won
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e se referiu basicamente a arte, o pior de reescrever a história é como os totalitários fazem, como nosso presidiário eleito pelas urnas que vai obrigar a ex imprensa a confirmar sempre que ele é a alma mais ‘onesta’ do univreso e por isso não ‘deve nada a justiça’ como disse bonner e que dilmanta sofreu ‘gópi’
Excelente observação, apagar a história só prejudica o futuro.
Não fizeram ou tentaram fazer isso com a obra de Monteiro Lobato? Tremenda ridiculice !
Em séries de TV já acompanhei inúmeras reedições, até com “viagem ao passado” em alguns episódios de “Star Trek”, por exemplo, mas sempre houve a escolha da edição preferida e isto não me incomoda.
O que me incomoda particularmente é reeditar-se um trabalho literário com a intenção de suplantar o anterior.
Então, concordando com a matéria, sim, “o passado como é”.
Eta mundinho chato esse que vivemos! Haja paciência!
Ótimo texto. Parabéns. Olha 1984 se tornando cada mais real do que nunca. Tempos sombrios.
Uau. Não tinha visto por esse ângulo.
Belo texto
Perfeito.
Depois do lobo mau vegano, espera-se qualquer coisa.