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São Jorge, um dos santos mais venerados no Catolicismo | Foto: Reprodução
Edição 134

O poder da narrativa

Contamos histórias desde o início da humanidade. O problema é quando a narrativa vira arma política

Dagomir Marquezi
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Somos todos dependentes de histórias. Desde criancinhas. Um dos gestos que nos ligam aos nossos pais é pedir que contem uma história antes que a gente durma. E quando ficamos adultos fazemos o mesmo pelos nossos filhos, que também contarão histórias aos filhos deles.

Tente recordar o número de séries, filmes, romances, contos, histórias em quadrinhos, novelas, desenhos animados que você já viu, ouviu ou leu na vida. Impossível. E hoje mesmo provavelmente essa lista pode aumentar quando você se sentar no sofá para assistir a mais algum episódio da sua série favorita. Ou ler mais algum capítulo daquele romance que está cada vez mais interessante. Tudo é história: um desenho do Patolino ou as 11 horas da trilogia O Senhor dos Anéis. Precisamos de histórias, como precisamos comer e dormir.

A arte da narrativa (ou storytelling) é antiga como a própria humanidade. As pinturas das cavernas contam feitos que talvez nós nunca iremos compreender. A narrativa mais antiga conhecida, o Épico de Gilgamesh, foi registrada em tábuas de argila no sul da Mesopotâmia no terceiro milênio antes de Cristo. Toda a nossa civilização cristã ocidental é baseada num compêndio de histórias chamado Bíblia.

A Crucificação, de Fra Angelico | Foto: Reprodução

O que nos leva a lembrar o que todo mundo de bom senso sabe: história boa tem começo, meio e fim. História sem começo, meio e fim não faz sentido. O espectador/leitor/ouvinte se enche e desiste da narrativa, como o viajante que se entrega para uma jornada com um guia turístico que não o leva para lugar nenhum.

A fórmula começo/meio/fim tem um sentido profundo na psique humana. Esses três movimentos nos levam a três estados emocionais diferentes que se complementam e nos ajudam a manter um equilíbrio emocional. Pense em sexo: preliminares, o ato em si com o orgasmo, o relaxamento. Um, dois, três. Pense numa refeição: entrada, prato principal, sobremesa. Pense numa viagem de avião, com a decolagem, o voo e a aterrissagem. Pense na vida com a infância, a vida adulta e a velhice. O tempo está naturalmente dividido em três partes no nosso subconsciente.

Ordem no caos

Os três atos de qualquer boa história refletem o princípio da dialética, formulado inicialmente pelos grandes pensadores gregos dos tempos de Platão. A dialética, em termos muito gerais, reflete uma transformação. Adaptada para a narrativa, fica assim:

Começo — “Era assim”

Meio — “Aconteceu alguma coisa”

Fim — “Ficou assim”

Quando contamos ou lemos uma história, real ou fictícia, e a dividimos em três partes, o caótico movimento da vida se organiza. Passa a ter um sentido. As coisas acontecem por uma razão. Era assim, aconteceu isso, ficou assim. Precisamos dessa compartimentação para saber que estamos evoluindo, ou que a realidade ao nosso redor segue um rumo.

Existem outros elementos que compõem uma narrativa. Ela precisa de um protagonista e de um antagonista. O protagonista quase sempre inicia a narrativa numa posição de fraqueza e frustração. Steve Rogers era um rapaz corajoso, mas franzino, que queria combater a Alemanha nazista. Mas era sempre rejeitado nos postos de recrutamento pela sua fragilidade. Nós, leitores, nos identificamos com ele e torcemos para que supere suas limitações, como gostaríamos de superar as nossas.

História em quadrinhos do Capitão América | Foto: Reprodução

E então chega o ato 2. (O segundo ato é sempre o mais longo). Rogers aceita participar de um programa experimental para criar “supersoldados”. É um processo arriscado, que pode matá-lo. Mas, como a borboleta sai do casulo, Rogers sai da máquina como o homem mais forte do mundo. Ganha um escudo indestrutível e um uniforme. Vai para a Europa, onde aprende na marra a lutar contra o monstro nazista (o antagonista) conhecido como Caveira. No ato 3 o antigo fracote está transformado no poderoso Capitão América, disponível para combater supervilões onde for que eles apareçam. Nós, seus leitores, continuamos sendo seres comuns, mas uma história como a do Capitão América nos faz sentir vitoriosos, poderosos, cheios de bravura e heroísmo.

Poderia ser Peter Parker/Homem Aranha, Joana d’Arc, Alberto Santos-Dumont, Asterix, Freddy Mercury, Margaret Thatcher. Ou qualquer outra pessoa ou personagem que era limitado, tinha um objetivo na cabeça, sofreu para vencer barreiras e antagonistas e se tornou um herói/heroína conhecido e admirado em todo o mundo.

James Bond e o dragão

Certas histórias muitas vezes parecem uma grande novidade, mas suas raízes se perdem no tempo. Ian Fleming, o criador de James Bond, confessou que se inspirava em histórias medievais e contos de fada para construir as aventuras do agente 007. Uma das fontes de sua inspiração era a lenda do guerreiro Jorge da Capadócia.

Segundo a lenda, Jorge conheceu uma cidade cujo castelo real era dominado por um dragão. Para aplacar a fúria do dragão, duas ovelhas eram entregues por dia a ele pela população da cidade. Um dia as ovelhas acabaram, e os habitantes passaram a oferecer humanos. Quando chegou a vez da filha do rei ser sacrificada, Jorge enfrentou o dragão e o matou com sua lança.

As histórias de James Bond estão cheias de intriga internacional, armas, gadgets, carros velozes, siglas de organizações criminosas, vilões exóticos, planos apocalípticos. Mas — segundo o próprio criador — na sua raiz repetiam a lenda de São Jorge. Bond partia para uma missão contra o inimigo (o “dragão”), conhecia uma linda mulher (a “princesa”). A mulher era raptada pelo inimigo (da SPECTRE ou SMERSH) e levada para sua base secreta (o “castelo”). Com esforço e sofrimento, Bond matava o “dragão” e salvava a “princesa”. A gente saía de um filme querendo ver o próximo — que contaria basicamente a mesma história, mudando os detalhes.

São Jorge e o Dragão, por Georgios Klontzas | Foto: Domínio Público/Wikimedia Commons

A narrativa como instrumento de poder

Infelizmente a narrativa pode se tornar um instrumento de manipulação e poder quando substitui os fatos reais. Adolf Hitler sabia do poder da narrativa quando lançou seu livro Mein Kampf, em 1925. Sua ascensão foi baseada nessa narrativa do mártir que quer vingar a humilhação que seu país sofreu (na Primeira Guerra) e cumpre sua jornada — mesmo que ela acabe em genocídio e no suicídio do “herói”. Esses líderes convidam a população a ser coadjuvante de suas gloriosas histórias redentoras — votando neles e lutando para que nunca mais deixem o poder.

Adolf Hitler deixando a sede do Partido Nazista (Munique, 1931) | Foto: Reprodução

Picanha e avião

E aí chegamos ao senhor que nos assombra a cada eleição presidencial desde 1989. Não importa mais o que ele diz. Hoje Lula não é, como ele se julga, “uma ideia”. Tornou-se uma narrativa.

Ato 1 — Era uma vez um menino pobre de Pernambuco que se revoltava com a miséria e queria deixar seu país menos injusto. Para cumprir seu ideal, foi para São Bernardo, onde virou sindicalista e partiu para a carreira política, chegando à Presidência da República.

Ato 2 — Graças a ele, todos os pobres passaram a comer picanha, tomar cerveja, entrar em faculdades e viajar de avião. Surge o antagonista — as “elites brancas de olhos azuis”. Segundo essa narrativa, essas elites inventaram calúnias contra o grande líder popular, que foi perseguido, julgado e encarcerado. Sem Lula na disputa, a elite colocou no seu lugar um monstro genocida. Os mais poderosos juízes desse país (e “a ONU”) tiraram o mártir da cadeia, reconhecendo que ele era completamente inocente. Agora o herói de Garanhuns volta para matar o cruel dragão que ocupou ilegalmente o Castelo da Alvorada na sua ausência. Ele precisa libertar a princesa (o “povo pobre e preto”), que quer voltar a comer picanha e viajar de avião.

O ato 3 começa no dia 30 de outubro. Resta saber se tudo acabará bem. Ou como uma história de terror.

Leia também “Os melhores do (Terceiro) mundo” 

9 comentários
  1. Daniel BG
    Daniel BG

    Senti uma narrativa própria em um detalhe da estória; mais precisamente nesta parte: “Os mais poderosos juízes desse país…”.
    Pois pois mais poderosos juízes do país estão protagonizando o dragão onde a população ciente ou não, é a princesa em perigo. Precisa a princesa ser resgatada desse dragão que usa de um boneco, no caso o próprio candidato favorito desses juízes para a presidência da República.
    Nessa minha versão, a vitória do boneco representa a vitória do dragão.
    E Jorge há de derrotar esse dragão e seu boneco bobo! 🇧🇷

  2. Andreia Rodrigues Gomes
    Andreia Rodrigues Gomes

    Brilhante!! Parabéns pelo artigo.

  3. Marcus Matos
    Marcus Matos

    Excelente! Parabéns e obrigado

  4. MARIA CHRISTINA GARMS
    MARIA CHRISTINA GARMS

    Texto muito bem elaborado e a analogia é sensacional! Parabéns

  5. Jorge Apolonio Martins
    Jorge Apolonio Martins

    Magistral. Aplauso.

  6. Antonia Marilda Ribeiro Alborgheti
    Antonia Marilda Ribeiro Alborgheti

    simplesmente genial

  7. Rute Moraes
    Rute Moraes

    Excelente texto, Dagô! Uma bela construção! 👏👏👏

  8. Maria Anna Cajado
    Maria Anna Cajado

    Parabéns pelo Editorial!

  9. Mauro Maretto
    Mauro Maretto

    Parabéns, Dagomir! Excelente texto, como sempre! Que Deus nos livre do dragão vermelho…

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