Quando se assiste ao drama em torno da queda da primeira-ministra Liz Truss, é difícil evitar a conclusão de que membros das elites governantes do Reino Unido se tornaram artistas de um circo político sem fim. A imagem do bate-boca mesquinho no Parlamento britânico é deprimente e, para piorar, é a constatação de que o problema não é ela. A liderança autoritária fica visível por sua ausência. Tampouco se trata de um fenômeno unicamente britânico. O mundo ocidental todo está sem líder. Mencione os nomes de Joe Biden, Olaf Scholz ou Emmanuel Macron, e você vai ter dificuldade de encontrar um sinal de inspiração e de liderança efetiva em sua conduta.
Possivelmente a característica que distingue a classe governante ocidental no século 21 é sua ineficiência. Ela parece um grupo de administradores de segunda categoria que está muito mais interessado em fazer os problemas desaparecerem do que em resolvê-los.
A ineficiência da classe governante ocidental fica mais marcadamente evidente no domínio da política externa. A humilhante retirada do Afeganistão destacou sua ausência de visão geopolítica. Sua falta de clareza ficou ainda mais evidente pela maneira constrangedoramente ignorante como os líderes do Ocidente conduziram suas questões geopolíticas. Quando a então secretária de Relações Exteriores, Liz Truss, confundiu os mares Báltico e Negro enquanto se comprometia a apoiar a Ucrânia, ela demonstrou ao mundo que não dominava sua pasta. Gafes semelhantes do presidente norte-americano, Joe Biden — como confundir húngaros com ucranianos —, não são apenas uma expressão de falhas pessoais. Elas são sintomas de uma abordagem arrogante e não profissional em relação à liderança que caracteriza o comportamento das elites da política externa ocidental.
Sem dúvida, as elites de hoje em dia parecem muito menos eficientes do que as dos anos 1950 e 1960. Alguns observadores afirmam que isso ocorre porque as elites estão cada vez mais fragmentadas e carecem de coesão e da capacidade de exercer sua liderança. Essa fragmentação significa que, com frequência, a elite é incapaz de agir com eficiência. Esse desenvolvimento é especialmente impressionante em relação aos Estados Unidos, onde o governo muitas vezes fica paralisado em um autoimposto impasse. Revezes humilhantes no Afeganistão, na Síria, no Iraque e na Líbia sugerem que a chamada elite do poder não consegue exercer seu poder de fato. Como Lachmann comenta: “Os Estados Unidos são um caso único entre os poderes dominantes do mundo nos últimos 500 anos no repetido fracasso em alcançar seus objetivos militares em décadas. Esses fracassos são ainda mais extraordinários porque ocorreram na ausência de um rival militar em ascensão”.
A ausência de liderança efetiva não se restringe aos Estados Unidos. Bret Stephens, colunista do jornal The New York Times, tem razão em se preocupar com “Our Leaderless Free World” [“Nosso Mundo Livre Sem Líder”, em tradução livre]. Ele comentou que o “fator central é que o mundo democrático hoje está sem liderança”.
A nova geração das elites ocidentais tem uma noção frágil de dever e serviço e considera difícil assumir a responsabilidade pelos desafios que a sociedade enfrenta
O cientista político norte-americano Andrew Michta escreveu sobre “uma profunda crise da classe de líderes dos Estados Unidos”, que ele atribui às “lideranças estarem à deriva dos fundamentos da nação e de seu tradicional compromisso com a construção de uma sociedade decente”. Ele acrescenta que, “para muitas pessoas em posição de autoridade, a liderança não é compreendida como algo que implica a responsabilidade fundamental daqueles a quem o cuidado é confiado, mas como um título permanente de governar o que resta das nossas comunidades autoconstituídas”. Não há dúvidas de que a nova geração das elites ocidentais tem uma noção frágil de dever e serviço e considera difícil assumir a responsabilidade pelos desafios que a sociedade enfrenta.
É impressionante como os membros das elites optam por servir a si mesmos e se comportam como indivíduos, e não como membros de um grupo. Alguns observadores afirmam que as elites estão cada vez mais fragmentadas e carecem da capacidade de exercer a liderança. Essa fragmentação significa que ela muitas vezes não consegue agir com eficiência. A perda da coesão da elite foi totalmente exposta pela recente vida pública britânica, em que figuras políticas de destaque se comunicam continuamente com a imprensa para obter vantagens sobre seus colegas. A lealdade partidária está ostensivamente ausente, e os políticos em posição de poder estão tão distraídos com disputas internas e mantendo as aparências para a mídia que priorizam pouco o exercício de sua responsabilidade oficial. São autoridades que não sabem governar.
A maior parte das explicações sobre o enfraquecimento da coesão da elite e sua incapacidade de formular uma perspectiva compartilhada confiável se concentra nas mudanças econômicas e sociais ocorridas durante o fim da década de 1970. Apesar de a desregulamentação, a financialização e a ascensão da tecnologia digital terem contribuído com a ruptura das instituições, a erosão das lealdades institucionais e a perda de memória institucional, houve outros fatores, possivelmente mais importantes. A perda da coesão das elites corre em paralelo com a perda de uma convicção nos valores e na perspectiva em que as elites anteriores foram socializadas. É difícil manter a solidariedade a menos que ela seja firmada por um conjunto de valores às quais os membros das elites adiram.
Em contraste com o regime repressivo e totalitário da União Soviético, a capacidade do Ocidente de defender os valores da liberdade e da democracia dava uma sensação de superioridade moral
A fragmentação das elites governantes está anunciada há muito tempo. Até o fim da Guerra Fria, as elites políticas ocidentais foram capazes de gozar de um grau inédito de legitimidade e autoridade política. Durante os anos 1950, 1960 e 1970, a autoridade das elites ocidentais foi sustentada por sua aparente superioridade moral sobre a da União Soviética. O dinamismo econômico do capitalismo ocidental ficou totalmente aparente quando contrastado com as economias estagnadas do Bloco Soviético. Em contraste com o regime repressivo e totalitário da União Soviético, a capacidade do Ocidente de defender os valores da liberdade e da democracia dava uma sensação de superioridade moral. O conflito da Guerra Fria e um contraste muito transparente entre os dois modos de vida serviram para afirmar a autoridade das elites ocidentais.
O anticomunismo foi um importante recurso político com o qual a elite ocidental pôde contar. Ele também lhes conferiu uma ideia de coesão. E, o mais importante, deu a ela legitimidade moral.
Com a desintegração do Bloco Soviético, a ideologia da Guerra Fria perdeu sua influência, forçando as elites a procurarem outras fontes de legitimidade. Desde o fim da Guerra Fria, as classes dominantes encontraram dificuldades de elaborar um conjunto de valores que pudesse lhe trazer o tipo de legitimidade proporcionada pela ideologia anticomunista. Os líderes de todas as principais instituições — empresas, Estado, o serviço público, instituições políticas, educacionais e culturais — estão em uma busca permanente para encontrar uma fonte efetiva de legitimação. Às vezes eles abraçaram a ciência ou a especialização para legitimar suas políticas. E chegaram até a tentar fazer uso do apelo ideológico da política identitária para ajudar a superar a crise de legitimidade com que são confrontados.
A descrição feita por Michta da tentativa das elites de comandarem por meio de uma forma de governança que depende de seu impulso tecnocrático e de políticas identitárias resume o comportamento desse grupo:
“O método predominante de governança da elite de hoje consiste em alimentar as queixas de um grupo e então aplacar a multidão quando as políticas identitárias rompem mais uma barreira nacional que gerações de americanos demoraram para construir. O objetivo é cada vez mais clamar os louros pelo ‘progresso’ que é inevitavelmente uma transição até a próxima crise depois da qual, em algum ponto não especificado no futuro, vamos construir uma ‘sociedade verdadeiramente justa’. Nas últimas três décadas nossas elites repetiram insistentemente essa narrativa, e parecem prontas para aumentar ainda mais o tom”.
A observação do cientista político Alexander Michta sobre a atuação da elite aponta para um importante desenvolvimento no exercício de seu comando. O que ocorre é que a insegurança da classe dominante levou aqueles que estão no controle das instituições políticas e econômicas a dependerem cada vez mais da cultura e da mídia para forjar algum grau de coesão. Por sua vez, isso levou a uma situação em que as elites culturais adquiriram um grau nunca antes visto de influência sobre membros da classe dominante.
Os membros da classe política se tornaram tão obcecados com seus perfis de mídia e com suas mensagens alinhadas que perderam de vista o que precisam fazer para resolver as coisas
Nas décadas recentes, essa classe contou cada vez mais com influenciadores culturais para garantir sua legitimidade. Consequentemente, a política da cultura — incluindo da identidade — se tornou um importante recurso para o exercício do poder. A cultura se tornou seu modo predominante de auto entendimento e autodefinição, em especial diante do aumento de ameaças à base tradicional do poder dessa elite. Nesse contexto, as elites culturais passaram a desempenhar um papel fundamental na constituição da solidariedade em relação à elite. Essas instituições, em particular no caso da mídia, fornecem o roteiro usado pelas elites para desempenharem seu papel. No entanto, a política cultural é inerentemente polêmica. É por isso que tantas disputas no mundo contemporâneo estão relacionadas a conflitos de valor.
A influência inédita das elites culturais sobre as elites que supostamente comandam as instituições econômicas e políticas gera uma distração para sua responsabilidade. Esse é o caso especialmente para membros da classe política que se tornaram tão obcecados com seus perfis de mídia e com suas mensagens alinhadas que perderam de vista o que precisam fazer para resolver as coisas.
A ascensão das elites culturais traz à tona a questão de porque elas ganharam tanta influência hegemônica sobre o comportamento de outros setores de classe dominante. A resposta para essa questão é a perda de da autoconfiança das elites ocidentais.
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Abordagem interessante com um diagnóstico provável sobre o comportamento controverso dos líderes ocidentais.
A resposta para essa questão é a perda de da autoconfiança das elites ocidentais.
Acho que é um pouco mais complexo do que isso. Eu diria que tem dois pontos principais que me chamam a atenção:
1. A elite política nunca dedicou tanto tempo a coisas que estão fora do seu âmbito de atuação e para as quais não possui competência. Para mim, a atuação política nas questões sanitária da COVID é o caso mais emblemático, os políticos foram muito mais ouvidos do que os médicos e pesquisadores, que acabavam sendo acionados para corroborar a crença/direcionamento dos políticos.
2. A influência e articulação de países orientais não democráticos, principalmente da China, no meio político, cultural e econômico do ocidente.
Vou te explicar o segredo desse fenômeno. Há décadas, muitas, são “vaporizadas” todas as lideranças que não sigam a cartilha da esquerda. Ainda bem jovens. Tão bem vaporizadas sobre toneladas de maledicências que não sobra no mundo adulto nem pista do que foi vaporizado.
Fato!
No momento em que pensavam se alinhar ao pensamento dominante, deixaram-se governar por líderes despersonalizados. E na linguagem de ontem, esqueceram de combinar com os russos. E com os árabes. Além de perder, como o artigo diz, a “superioridade moral” da democracia que virou passado.
Obrigado! Excelente artigo. Esclarecedor!!