Nos filmes de animação da Disney, trolls são figuras cativantes, apesar da aparência grotesca. Inspirados num personagem do folclore escandinavo, eles conquistaram milhões de crianças pelo mundo com seu corpanzil verde e desajeitado. Já quando empregado em relação às mídias sociais, o termo gera controvérsia. Em plataformas como Twitter e o popularíssimo Tik Tok, site de publicação de vídeos de origem chinesa que virou febre entre adolescentes, ele designa agitadores que se dedicam a ofender ou desmoralizar quem lhes desagrada. Como os adolescentes que ganharam notoriedade, dias atrás, por se mobilizarem de forma inusitada para tentar esvaziar um comício do presidente norte-americano Donald Trump.
A expectativa dos organizadores do evento, realizado na cidade de Tulsa, em Oklahoma, era reunir até 1 milhão de pessoas, estimativa baseada na quantidade de reservas de ingressos feitas por telefone. Para espanto geral, no entanto, o estádio, que comporta 19 mil lugares, nem sequer lotou, e as fileiras de cadeiras vazias registradas pelas câmeras de televisão causaram frustração na Casa Branca. Como explicar tamanho descompasso?
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Para os responsáveis pela campanha, o risco de protestos violentos e o medo de aglomerações em local fechado, num momento em que os surtos da covid-19 recrudescem no país, teriam afastado os partidários do presidente. Mas o revés acabou trazendo a público o estratagema usado por uma insólita combinação de ativistas, trolls adolescentes e fanáticos pelo gênero musical sul-coreano K-pop, que compõem uma das comunidades mais ativas do Tik Tok. Eles alegam ter tirado partido do enorme potencial de viralização de mensagens no site, cuja audiência global supera 800 milhões de usuários, para provocar uma avalanche de falsas reservas de ingresso para o comício.
A “lei das fake news” é um arremedo de legislação articulado às pressas por políticos oportunistas
“Esquerdistas e trolls que comemoram, achando que tiveram algum impacto no comparecimento, não sabem do que estão falando”, ponderou o responsável pela campanha à reeleição de Trump, Brad Pascale. Mas o episódio ilustra até que ponto as mídias sociais se tornaram o novo campo preferencial de combate político. E quanto este ainda é um território relativamente mal conhecido, no qual novas táticas de militância e guerrilha digital despontam a cada momento, tornando obsoleto o marketing político tradicional e impondo desafios inéditos às democracias.
É nesse contexto que convém avaliar as tentativas em curso para censurar e criminalizar manifestações políticas na internet, como a recente investida do Supremo Tribunal Federal contra blogueiros e partidários do presidente Jair Bolsonaro por suas atividades on-line. Além do indecoroso Projeto de Lei nº 2630 — conhecido como “lei das fake news”, um arremedo de legislação articulado às pressas por políticos oportunistas, em plena pandemia, para tentar impedir um debate amplo e qualificado, como requer um tema dessa complexidade.
Para se ter ideia do nível da proposta, que o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, tentou aprovar a toque de caixa nesta quinta-feira, dia 25, um dos artigos previstos no projeto original estipulava multa de até R$ 10 milhões para quem degradasse a imagem de candidatos a cargos eletivos. O disparate pegou tão mal que o relator da proposta, senador Angelo Coronel, do PSD da Bahia, viu-se constrangido a substituir esse artigo, estipulando em seu lugar multa de até R$ 1 milhão para candidatos que ridicularizarem o adversário no programa eleitoral gratuito. O que, convenhamos, em nada melhorou o texto.
A Corte Constitucional da França rejeitou a “lei contra discursos de ódio”
Ninguém com um mínimo de bom senso pode negar a necessidade de punição a crimes cometidos no ambiente digital. Ou de atualizar a legislação para incorporar essas novas modalidades de bandidagem. O perigo, contudo, está nas tentativas de incluir na mesma categoria ilegalidades patentes, já tipificadas no Código Penal, e manifestações políticas passíveis de desagradar aos ocupantes do poder. Sobretudo no caso da censura às fake news, levando-se em conta quanto a conceituação do que é verdade pode ser elástica, dependendo dos interesses e da ideologia de quem decide. E sobretudo os riscos à liberdade de expressão que esse tipo de iniciativa representa.
Foi justamente em defesa da liberdade de expressão, por sinal, que a Corte Constitucional da França, um dos países mais ciosos da inviolabilidade dos direitos civis, rejeitou, na semana passada, uma lei similar recém-aprovada pelo Parlamento e conhecida como “lei contra discursos de ódio”. Como no exemplo brasileiro, a proposta pretendia delegar a “mediadores” contratados por plataformas digitais, como Facebook, Twitter e similares, o poder de excluir informações e postagens consideradas inverídicas ou ofensivas.
Para os constitucionalistas franceses, a lei legalizaria a censura. Configuraria ainda uma injustificável “terceirização” da aplicação da Justiça, já que a competência de julgar a existência de crimes é prerrogativa do Judiciário. Indo além, os juízes apontaram o óbvio risco de exageros: para que seus empregadores não incorressem nas pesadas multas previstas em caso de descumprimento da lei, os mediadores tenderiam, é claro, a censurar qualquer postagem ligeiramente suscetível de configurar “discurso de ódio”.
O suposto poder do ativismo on-line para desequilibrar disputas políticas ainda não está comprovado
Entende-se que a migração das disputas de poder dos ambientes controlados de comícios e mídias de massa para as redes sociais, espaços por natureza mais democráticos e libertários, cause apreensão. Mas vale lembrar que calúnias, injúrias, manipulação do eleitorado e jogo sujo na política não foram inventados pela internet. Particularmente no Brasil, com nossa longa e notória tradição de compra de votos e cooptação de meios de comunicação para influenciar indevidamente o resultado de eleições.
Cabe considerar também que o suposto poder do ativismo on-line para desequilibrar disputas políticas ainda não está suficientemente comprovado, em que pesem as costumeiras alegações nesse sentido. Como nos esforços para convencer a opinião pública de que o presidente Jair Bolsonaro teria sido eleito por disparos robotizados de mensagens no WhastsApp. Uma hipótese evidentemente facciosa, que ignora o antagonismo de visões políticas em confronto naquele momento e subestima a capacidade do eleitorado de votar segundo suas convicções.
O fato é que esse suposto poder do ativismo on-line de desequilibrar radicalmente a relação de forças políticas vem sendo crescentemente questionado por seguidas pesquisas e estudos. Em parte, devido a dois fenômenos que sugerem que influenciar as pessoas no ambiente digital talvez seja mais difícil do que se supõe. Um deles, o chamado filter bubble (filtro de bolha), leva em conta que, ao acessar informações na internet, a maioria dos indivíduos fica à mercê dos algoritmos dos softwares de busca e aplicativos, os quais sempre oferecem novos conteúdos em consonância com o histórico de busca ou consumo de cada um. Ou seja, reforçando, e não modificando, posições consolidadas.
A tendência dos usuários das redes é interagir com pessoas e organizações que reforcem suas opiniões
Outro fenômeno que relativizaria o poder da militância nas redes, mesmo com o recurso a robôs multiplicadores de mensagens, seria o conhecido como eco chambers, ou câmaras de eco — analogia a ambientes fechados, onde o som reverbera, para se referir à propensão das pessoas a frequentar sites ou aplicativos em que encontram indivíduos com ideias e opiniões semelhantes às suas.
Uma das razões para isso seria a tendência humana de evitar o estresse emocional causado pelo confronto com visões que contrariam crenças estabelecidas — a chamada Teoria da Dissonância Cognitiva. Em decorrência, o impulso predominante seria procurar mensagens que reforcem preconcepções, o chamado viés de confirmação. Nessa perspectiva, a atual polarização política não seria provocada de forma direta pela militância digital ou por fake news. Mas por essa tendência dos usuários das redes a interagir com pessoas e organizações que reforcem suas opiniões.
Finalmente, quando se trata de censura, é bom lembrar que nem alguns dos governos mais assumidamente totalitários da história recente, como o da União Soviética e o da Alemanha nazista, conseguiram suprimir de forma completa vozes divergentes. Os dissidentes soviéticos, como se recorda, sempre encontraram meios para fazer com que seus textos chegassem ao Ocidente. E um dos mais belos registros da resistência ao nazismo é a história do casal de operários Otto e Elise Hampel, relatada pelo escritor Hans Fallada, no livro Morrer Sozinho em Berlim. Sem acesso a outras formas de protesto, eles espalhavam bilhetes anônimos contra o regime em lugares públicos da capital alemã. Acabaram identificados, presos e assassinados pela Gestapo, que não teve dificuldade de seguir sua trilha. Hoje, no ambiente intangível da internet, a perseguição a opositores políticos promete ser bem mais complicada.
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Selma Santa Cruz foi editora e correspondente internacional do jornal O Estado de S. Paulo e da revista Veja, na França e nos Estados Unidos, antes de se dedicar à comunicação corporativa como sócia-diretora da TV1, grupo de agências especializadas em marketing digital, conteúdo, live marketing e relações públicas. É mestre em comunicação pela USP e estudante permanente da História.
MUITO BOM O TEXTO….PARABENS
PARABÉNS PELO TEXTO, MUITO ESCLARECEDOR!
Gostei do texto. Obrigada.
Obrigada a você pela leitura!
Já temos leis mais do suficientes, que, na hipótese versada, prevem punições. Falando em Disney, li, há dezenas e dezenas de anos atrás, uma frase do Pato Donald: “Deveria ter uma lei proibindo mais leis” (Era mais ou menos isso).
Boa tua análise. Refleti. 1) 2 ou 3 anos atrás era tudo diferente, houve uma evolução grande nessa área e, assim, se existir uma lei ela deve vigir com data a partir de sua publicação; 2) veja que aqui numa cidadezinha da serra gaúcha a PF pegou um jovem hacker de 19 anos que entrou facilmente em sites de órgãos públicos e até em contas do Bolsonaro; 3) uns 15 anos atrás, um ex-aluno, formado em Direito, resolveu entrar novamente na universidade para fazer “Informática”. Aí, ele me disse que uma das brincadeiras-exercícios dos colegas era ver quem entrava em e-mails de quem eles quisessem… 4) na década de 1980 eu assinava uma revista de informática e lá ensinavam como fazer um programinha com vírus…. Dá para entender que tudo isto evoluiu muito, tanto para o bem, como para o mal.
gostei muito do artigo
Gostei bastante do artigo, muito bem escrito e fundamentado. Parabéns à autora e à revista!
Muito bom resto! parabéns a autora!!!
Belo artigo.
Excelente Sra. Selma…. parabéns à Oeste!
A internet incomoda, e muito, as grandes mídias, tanto escrita como faladas e televisivas. Nestas, a verdade é mascarada pela astúcia do redator enquanto na internet livre a verdade fica as escancaras, independentemente de quem as redige. Acredite quem quiser, ou tiver coragem, pelo menos a liberdade foi expressada. Obrigado Sra. Selma pela brilhante exposição do tema.
O problema não são as “fake news”, mas sim as verdades inconvenientes expostas diariamente pelas redes sociais … isso que incomoda os hipocritas, e são essas vozes que eles querem calar …
Juntemos ao excelente artigo o temor das grandes emissoras de televisão de perderem a exclusividade da informação, por vezes destorcida e manipulada.
Muito bom artigo.
“WHEN THIRANNY BECOMES LAW, REBELLION BECOMES DUTY”. Thomas Jefferson
Na mosca. Falou tudo. Ficaremos presos no “antigo normal” que são os partidos já bem (mal) conhecidos. Por mais pressão como essa reportagem. Parabéns Revista Oeste! Parabéns Selma Santa Cruz!
Quem poderia imaginar que a esta altura da história seríamos ameaçados pela tirania da toga?
Os congressistas temem a internet porque escancara quem comete erros e essa informação é disseminada com muita velocidade e está deixando os políticos assustados. Seu erros, de conhecimento público, certamente trarão reflexos nas eleições seguintes. A PL da Censura é uma proteção para os desonestos.
A verdade é bem simples. Não querem que outros “Bolsonaros” sejam eleitos futuramente. Pessoas sem o apoio da grande mídia, não pode prosperar, segundo a turma da velha política. Esta decretado. Desejam aquela escolha do conluio, da negociata, da trapaça, do faz de conta,do paga minhas contas que eu fecho os olhos e te ajudo a ser eleito. Os discursos são sempre democrático e lindos,mas a prática quase sempre é de cercear, censurar, tolher a liberdade de quem paga seus salários e vida boa. O contribuinte. Esse PL é contra a liberdade de expressão, a liberdade de forma geral do cidadão. Porém,esqueçam. Esse tempo de domínio total sobre o pensamento do povão acabou com as redes sociais. Se aprovarem censura, cairão nas urnas já este ano com o boicote aos partidos políticos que votarem a favos desse PL da mordaça.
Texto excelente.
Poderia fazer um esclarecimento? Ao buscar, na Amazon, o título Morrer Sozinho em Berlim ( Hans Fallada) para aquisição, a resenha da editora descreve o casal de operários com os nomes : Otto e Anna Quangel.
A ditadura da toga jamais vai calar a voz dos brasileiros!
Quem não deve não teme!
Esse STF é aumentar vergonha!
Texto excelente. Parabéns
Que bom que o texto foi útil para você. Ao reconstituir a história do casal em forma de romance, mas a partir de fatos reais, Fallada mudou seus nomes e criou outros personagens fictícios. Os nomes que citei são os verdadeiros .