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Alexandre de Moraes | Foto: Montagem Revista Oeste
Edição 141

A religião do ódio

No Brasil de hoje a virtude passou a ser a recusa em admitir o ponto de vista do outro. Dia após dia, o ódio vai sendo transformado num atributo moral

J. R. Guzzo
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O Brasil está se tornando um país cada vez mais intolerante — e isso é uma novidade muito ruim. A sociedade brasileira tem tido uma longa história de prudência e de serenidade na gestão dos seus rancores, diferenças e conflitos; chegamos aos 522 anos sem nenhuma guerra de verdade, dessas que deixam mortes, feridos e destruição, por causa de religião, ou de raça, ou de nacionalidade, ou de língua, ou de qualquer outra escolha. Sempre houve, de um modo geral, a disposição de admitir ações, pensamentos, crenças, sentimentos ou hábitos diferentes entre si, qualquer que fosse o ambiente político. O Brasil nunca foi uma democracia de verdade — mas, mesmo nos seus momentos de ditadura aberta e declarada, a inclinação predominante tem sido a de aceitar o princípio de que cada um tem direito à sua própria vida, ao seu modo de pensar e ao seu comportamento pessoal. Não mais. No Brasil de hoje a virtude passou a ser a recusa em admitir o ponto de vista do outro. Há cada vez menos adversários e cada vez mais inimigos. Dia após dia, e de forma mais e mais agressiva, o ódio vai sendo transformado num atributo moral — ou numa exigência para a prática correta da atividade política e social.

É um sinal destes novos tempos escuros, de supressão de liberdades e de repressão à divergência que alguém como o ministro Moraes seja promovido à posição de apóstolo da “democracia”

Em nenhuma outra área da sociedade a intolerância prospera tanto quanto nessa nebulosa frouxa, disforme e sem princípios que é a esquerda nacional de hoje. Os verbos mais usados ali, a propósito de tudo, são proibir, punir reprimir, prender, multar, penalizar, criminalizar, censurar; fala-se cada vez menos em diálogo, e cada vez mais em castigo. Não há nenhuma demonstração tão clara disso quanto o novo herói da esquerda brasileira, o ministro Alexandre de Moraes — que segundo a mídia, as classes intelectuais e a elite meia-boca destes trópicos salva dia após dia a democracia popular no Brasil. Quanto mais ele transforma o país numa delegacia de polícia, e quanto mais utiliza a sua função pública para reprimir, agredir e calar quem pensa de modo diferente, mais excitação provoca na esquerda; vai acabar virando uma espécie de Che Guevara do judiciário. O ministro cassa o passaporte de um jornalista que teve de se exilar nos Estados Unidos para escapar à sua perseguição pessoal. Multa em R$ 23 milhões um partido político cujo crime foi apresentar uma petição à justiça eleitoral, com alegações de que houve irregularidades na última eleição. Quer que a polícia acabe à força com as manifestações diante dos quartéis. Faz dezenas — dezenas, literalmente — de coisas assim, e a cada uma delas se torna mais sublime para artistas de novela, militantes do PT, PSOL e redondezas, advogados de corruptos, milionários de esquerda, jornalistas etc. etc. etc.

É um sinal destes novos tempos escuros, de supressão de liberdades e de repressão à divergência, que alguém como o ministro Moraes seja promovido à posição de apóstolo da “democracia” e de tudo o que hoje é louvado como correção política. Não há precedentes de alguma outra autoridade pública brasileira que tenha, como ele, feito uso tão extensivo do ódio como método de ação política — e que tenha sido tão admirado por fazer isso na porção do Brasil que julga a si própria como “progressista”. Não se trata apenas de usar a suprema corte de justiça do país para violar sistematicamente a Constituição e o restante das leis em vigor, com garantia de impunidade e na execução de objetivos políticos. A agravante para esta conduta é a sua carga de rancor em grau extremo. É a recusa do debate livre e a obsessão em destruir quem não concorda; é o senso moral de quem fica no campo de batalha para executar os feridos. Virou, em suma, uma coisa fanática. Em vez de gerar reprovação, porém, o comportamento de “terra arrasada” de Moraes e de seus colegas de STF gera profundo encantamento na esquerda. O resultado é uma aberração. As mentes virtuosas, que propõem a “justiça social”, a “igualdade” e outras fantasias “progressistas”, aplaudem a repressão policial às manifestações em torno de guarnições militares; é a primeira vez na história mundial que a bomba de gás lacrimogênio se vê elevada à condição de arma em defesa da democracia.

Por que o ódio a Neymar? Porque ele apoiou Bolsonaro para presidente, em público. Para a esquerda, isso é crime

A intolerância radical do Brasil de hoje fica evidente, também, na ideia fixa da esquerda em “criminalizar” tudo e todos que a desagradam. Não falam em outra coisa — “criminalizar”. Gente que se diz democrática, equilibrada e “lúcida” vive fascinada com a mania de criminalizar a homofobia, o racismo, o machismo, o “bolsonarismo”, os protestos em frente aos quartéis, a camisa amarela — tudo que vai contra eles tem de ser crime, tem de ser castigado, tem de “dar cadeia”. Deixou de ser uma linha de ação; passou a ser uma neurose. A última manifestação desse tipo de demência penal veio de um pequeno senador que vive em estado de permanente histeria em sua conduta política e se tornou, ele também, um ídolo da mídia que faz o “L” e se abraça nas redações, em transe, quando Lula é declarado vencedor da eleição presidencial pelo TSE de Alexandre Moraes. O senador fala num projeto de lei para punir com cadeia (de um a quatro anos) quem der vaia nele, ou em gente como ele, ou chamar a eles todos de “safado”, “vagabundo” ou coisa que o valha. Ele diz, e a mídia repete, que está preocupado com a “pluralidade” política e o “diálogo republicano”. Não enganam com essa conversa nem uma criança de 10 anos. Toda a esquerda vai continuar chamando Jair Bolsonaro de genocida, fascista e destruidor da Amazônia. Quem protesta nos quartéis continua sendo criminoso, golpista e “antidemocrático”. Estudantes de direita continuarão a ser insultados e agredidos nas universidades, com o aplauso dos reitores, diretores e professores. O “assédio político” é crime que só o adversário pode cometer.

A esquerda festejou a contusão de Neymar na Copa do Mundo — o que pode ser mais intolerante do que uma coisa dessas? Na verdade, é a hora em que o fanatismo atravessa a fronteira do desequilíbrio mental; tirar prazer do sofrimento físico de alguém, seja ele transitório ou permanente, é um dos pontos mais baixos a que pode chegar um ser humano em sua descida rumo ao mal absoluto. Chegou-se a esse ponto, no Brasil de hoje — e a partir daí não há limite para a depravação. Por que o ódio a Neymar? Porque ele apoiou Bolsonaro para presidente, em público. Para a esquerda, isso é crime; não se admite, ali, a noção do voto livre. É um dos fundamentos de qualquer democracia — sem liberdade de votar, simplesmente não pode haver regime democrático. Mas no Brasil do STF, da esquerda e do Google é exatamente o contrário; para haver o seu modelo de democracia, não pode haver o voto livre. É proibido escolher o candidato que você prefere. É proibido manifestar a sua opinião em público. É proibido pensar com a sua própria cabeça. Os próximos passos, por essa lógica de negação da liberdade individual, são o candidato único, o partido único e o jornal único. É o país com que a esquerda brasileira sonha.

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O Google suspendeu a publicação de propaganda programática (os anúncios de outras empresas distribuídos pelo Google) em Oeste; diz que a revista fere a sua coleção de princípios e aponta, entre os motivos, os artigos de quem assina este texto. Quais os princípios, objetivamente, que foram feridos? O Google não informa. Quais, então, os artigos específicos que estariam em desacordo com as regras de conduta da plataforma? Também não se diz nada a respeito; presume-se que sejam todos, incluindo os que ainda não foram escritos. Pelo que deu para entender, o Google não quer que o autor escreva na Revista Oeste; aparentemente, permite que os seus artigos continuem a ser publicados no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo, onde é colunista fixo e regular, pois, tanto quanto se saiba até o momento, não suspendeu a sua publicidade em nenhum destes dois veículos. O que se pode dizer com certeza para o leitor é que a Revista Oeste continuará publicando os textos do autor, exatamente com o mesmo teor de sempre.

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