É simbólico que tudo tenha começado com um incêndio. Na quinta-feira 24 de novembro, um edifício pegou fogo na cidade de Urumqi, ao norte da China. Dez pessoas morreram, nove ficaram feridas. Os habitantes de Urumqi decidiram que aquele era o ponto final. Centenas saíram às ruas protestando pelo fato de que o socorro às vítimas havia sido atrapalhado pelas inúmeras barreiras instaladas na cidade por conta da política de covid zero imposta por Xi Jinping, líder máximo do Partido Comunista.
No sábado, o fogo do protesto se alastrou para Xangai, onde os habitantes criaram um memorial às vítimas numa rua chamada Urumqi. No domingo 27, as ruas das principais cidades chinesas estavam tomadas por pessoas gritando “Renuncia, Xi Jinping”, “Fora, Partido Comunista da China”, “Chega de lockdown” e “Queremos liberdade e uma imprensa livre”. Os manifestantes erguiam folhas de papel em branco como um símbolo da luta contra o controle de pensamento. Dezessete cidades foram sacudidas por manifestações, na maior onda de protestos por liberdade desde 1989.
“Eu posso recuperar minha fé na sociedade e em uma geração de jovens”, escreveu o jornalista chinês Chen Min durante os protestos. “Agora encontrei motivos para minha fé: a lavagem cerebral pode ter sucesso, mas, em última análise, seu sucesso tem limites”.
A ditadura chinesa não reconheceu a existência das manifestações de rua, mas sentiu o golpe. Culpou vagamente “forças estrangeiras” por “atividades e infiltração e sabotagem”. “Qualquer que seja o resultado dessas manifestações, escreveu Orville Schell, diretor do Centro Sobre as Relações EUA China, “elas mostram que Xi não descobriu o molho secreto para o sucesso totalitário mais do que Adolf Hitler, Benito Mussolini, Joseph Stalin, Fidel Castro — ou o próprio Mao. Os protestos nos lembram, em vez disso, que o povo governado por Xi, como as pessoas em todos os lugares, não vive só de pão, shoppings, videogames e viagens de lazer, e que muitos não querem ser confinados, censurados, intimidados, detidos ou presos”.
“A névoa da incerteza é espessa, mas não há dúvida de que este é um momento importante na história chinesa do século 21”, publicou Yuen Yuen Ang, na revista Foreing Affairs. “Esta é talvez a primeira vez que os cidadãos chineses se uniram para resistir a uma política nacional — e parece, até agora, ter feito as autoridades mudarem de rumo”.
Still many questions surrounding the terrible fire that broke out in Urumqi, Xinjiang, yesterday. The fire, that killed 10, broke out at 19.54 and wasn’t extinguished until 22.35. Cause was a multi plug power board in a bedroom located on 15th floor of the apartment building. pic.twitter.com/ZrGsHbGd7Z
— Manya Koetse (@manyapan) November 25, 2022
540 milhões de câmeras
A China já era uma das mais fechadas ditaduras do mundo, mas Xi Jinping aperfeiçoou os métodos de vigilância e repressão a um nível inédito na história. Para isso, contou com um setor no qual os chineses são muito competentes — a tecnologia.
O jornal britânico The Times publicou no fim da semana passada um retrato do alcance desse tecnototalitarismo. “A polícia de Xangai desceu brutalmente no serviço de metrô”, começa o artigo, “exigindo que os passageiros entreguem seus celulares destravados e procura por imagens de protestos e aplicativos proibidos. Eles se movimentam metodicamente entre as filas dos nervosos passageiros, como agentes de um estado orwelliano de vigilância”.
E 540 milhões de câmeras vigiam hoje os chineses, que podem ser reconhecidos até pela forma como andam. A ditadura do Partido Comunista está trabalhando para conseguir identificar 54 expressões sutis da face de modo a saber se a pessoa está feliz, desgostosa, raivosa ou com medo. Essa rede de controle não se limita mais às grandes cidades, e já se espalha pelas regiões rurais.
Os manifestantes sabem que o regime sob o comando de Xi Jinping não é adepto da repressão espetaculosa. Prefere acertar as contas buscando os que se destacaram nos protestos em casa, um por um
Segundo a reportagem do Times, essa é a fase um do projeto de controle via internet. Usa o poder dos algoritmos e 2 milhões de censores humanos para bloquear sites não desejados, imagens proibidas e palavras-chave. E depois vem a fase dois, que se confunde com a ficção de uma série tipo Black Mirror: o comportamento de cada cidadão será avaliado de acordo com sua obediência ao regime. Cidadãos servis terão suas vidas facilitadas. Os rebeldes terão acesso limitado a bens, serviços, viagens, empréstimos, educação e empregos.
A fúria totalitária não para aí. Quem dirige um carro elétrico tem as informações sobre sua localização, velocidade e direção enviadas a cada 30 segundos para o aparelho estatal de repressão. A pandemia de covid-19 (que surgiu na própria China) é outro instrumento de controle levado às últimas consequências. Cada cidadão obrigado a constantes (e muitas vezes violentos) exames obrigatórios tem seu DNA e seus dados biométricos enviados ao aparelho repressivo.
People in #Urumqi, #Xinjiang continue to march to city hall demanding justice. Ppl now are saying that the local govt has lied about the death toll. They say more than 100 have died as result of that fire. The word 起义 uprising is used on WeChat. We’ll see how long it stays up. pic.twitter.com/BTunznBywp
— Karen Woods 林爷 🇺🇦🇨🇦🌻 (@KarenWenLin) November 25, 2022
“Nova realidade”
O espantoso é que, com toda essa gigantesca máquina repressora, os protestos na China aconteceram — e tiveram efeito quase imediato. Em 21 cidades (incluindo Xangai e Pequim), o governo liberou os cidadãos de oferecer testes negativos para usar o transporte público. (Mas ainda precisam apresentar o código verde de saúde, checar a temperatura e usar máscara.) Em Guangjou, o lockdown foi suspenso, e os negócios foram reabertos. Em Urumqi, onde tudo começou, shoppings, restaurantes e hotéis foram reabertos.
Sun Chunlan, considerada a face pública da política anticovid do governo, deu uma declaração surpreendentemente moderada no último dia 2. “Devemos priorizar a estabilidade enquanto buscamos o progresso — dê pequenos passos, mas não pare.” Sun, que sempre foi linha-dura, declarou que o país está enfrentando uma “nova realidade” e que que a ameaça do vírus havia diminuído.
Administradores locais entenderam o recado da burocrata como um convite para folgar um pouco no lockdown e levantar as sufocantes restrições. Isso num momento em que, segundo reportagem do Washington Post, os números estão em alta — num único dia, 2 de dezembro, foram registradas 35 mil novas infecções. Um número alto para os padrões chineses, que têm o “zero” como objetivo.
Os manifestantes sabem perfeitamente que o regime sob o comando de Xi Jinping não é adepto da repressão espetaculosa. Ele não coloca tanques nas ruas contra a multidão. Prefere acertar as contas buscando os que se destacaram nos protestos em casa, um por um. Bastava que a triangulação de torres de transmissão registrasse o celular de alguém próximo a alguma manifestação para que ela recebesse a visita de policiais no meio da madrugada. Mesmo assim, chineses arriscaram tudo e foram em massa para as ruas gritar um “basta!”.
O enigma de Xi
Até um ditador como Xi Jinping precisa de algum apoio popular. Segundo artigo de Ian Johnson para o site Foreing Affairs, “vários sinais deixavam claro que Xi era popular entre a população de renda baixa e média”, ainda que não existam pesquisas independentes na China. Mas não há simpatia no mundo que resista a uma vida de ordens insanas e cotonetes sendo enfiados quase diariamente em seu corpo.
O prestígio de Xi está minado também por uma crise econômica sem saída à vista para um dirigente mais preocupado em controlar seus cidadãos do que em melhorar suas vidas. O setor de habitação foi especialmente afetado. (Os preços de apartamentos e casas explodiram nas grandes cidades.) Os níveis de desemprego na faixa dos 16 aos 24 anos de idade aumentaram mais de 18 por cento.
O crescimento do Produto Nacional Bruto, previsto em 5,5% para este ano, já foi revisto para 3,2%. E 460 mil empresas fecharam suas portas no primeiro trimestre de 2022. As exportações anuais em novembro caíram 8,7%, com relação ao mesmo período de 2021. É a maior queda desde fevereiro de 2020.
Os problemas econômicos da China, segundo o artigo de Ian Johnson, exigem uma liderança ousada e visionária. Tudo o que Xi Jinping, um comunista ortodoxo e nostálgico, não tem. Para acentuar as contradições do momento, o antigo líder Jiang Zemin, que realizou as últimas grandes reformas liberalizantes nos anos 1990, morreu no dia 30 de novembro, no meio da crise.
“Este é o enigma de Xi”, conclui o texto de Ian Johnson para a Foreign Affairs. “Mesmo que ele suspenda as restrições de covid zero, é provável que a economia tenha uma recuperação apenas temporária. A não ser que faça uma conversão repentina às reformas, é provável que Xi descubra que seus próximos cinco, dez ou mais anos no poder serão atormentados por um crescente desconforto na população e novas explosões de protesto estimuladas por outras crises que inevitavelmente surgirão. No mês passado, Xi parecia prestes a governar sem qualquer tipo de contestação pelos próximos anos. Mas o desperdício de sua primeira década no poder em medidas de controle, em vez de reformas voltadas para o futuro, significa que os problemas da China se tornaram tangíveis para as pessoas comuns. Este é o verdadeiro significado dos protestos da covid: eles não são simplesmente gritos de liberdade pessoal, mas sinalizam o início de uma era mais turbulenta na política chinesa.”
“O que acontecerá a seguir dependerá se Xi escolherá agir com pragmatismo e moderação ou com obstinação e brutalidade”, escreveu Yuen Yuen Ang, da Universidade de Michigan, também para a Foreing Affairs. “Independentemente disso, Xi conseguiu involuntariamente algo profundo: sua política de covid zero fez com que todos os cidadãos chineses — ricos ou pobres, velhos ou jovens, homens ou mulheres — apreciassem o valor de suas liberdades limitadas, não de uma maneira abstrata e exagerada, mas em um nível profundamente pessoal. Talvez a interpretação mais otimista dos eventos recentes seja que as sementes de uma democracia significativa na China foram espalhadas e não podem ser destruídas.”
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É livre aquele que tem acesso à verdade. Parece que o ditador não está mais conseguindo esconder os fatos do povo.
Essa é a República “Democrática” que a esquerda venera.
Oremos pela China.