Pular para o conteúdo
publicidade
Geraldo Alckmin e Luiz Inácio Lula da Silva, durante cerimônia de diplomação no TSE | Foto:
Edição 144

A cena do crime

A eleição de Lula é a retomada do Brasil pelas forças que sempre mandaram no país e que não admitiam um Estado que não fosse controlado de ponta a ponta pela corrupção

J. R. Guzzo
-

A Honeywell, colosso industrial americano na área de energia, acaba de fechar na justiça dos Estados Unidos um acordo para pagar US$ 160 milhões como compensação por atos de corrupção praticados na Petrobras entre 2010 e 2014. É um caso-padrão, dentro da roubalheira alucinada que quase levou a empresa à falência nos governos de Lula e de Dilma Rousseff: a Honeywell pagou US$ 4 milhões a um diretor da Petrobras, ao longo daqueles quatro anos, para obter um contrato de US$ 425 milhões na construção de uma refinaria de petróleo. O negócio foi fechado e os americanos saíram, ao final da tramoia, com um lucro pouco acima dos US$ 105 milhões. Mas a história foi parar na justiça dos Estados Unidos, que trata como crime a corrupção praticada por empresas e cidadãos americanos em território estrangeiro. A propina foi provada, a Honeywell confessou suas culpas e agora, quase dez anos depois da ladroagem, concordou em pagar os 160 milhões para encerrar o processo. “A Honeywell conspirou para subornar um alto funcionário da Petrobras e ganhar um contrato com a companhia”, disse Michael Glasheen, diretor do FBI que trabalhou no caso. “Esquemas de corrupção como esses transcendem fronteiras.”

Não há nenhuma dúvida possível, mais uma vez, de que houve corrupção na Petrobras naquele período — se não tivesse havido, por que raios uma empresa americana iria tirar do bolso US$ 160 milhões, por sua livre e espontânea vontade, como punição por um crime que não cometeu? Isso não existe. É exatamente a mesma história que houve com a Odebrecht e outras grandes empreiteiras de obras públicas brasileiras: corromperam diretores da Petrobras, confessaram os crimes e devolveram parte do dinheiro roubado. Mas o caso da Honeywell e da sua penitência na justiça americana pode levantar uma pergunta muito interessante, nesses tempos em que o ex-presidente Lula, no Brasil e no mundo, é santificado como um herói da honestidade que só foi para a cadeia, condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, porque o juiz Sergio Moro, perversamente, inventou todas as acusações contra ele. Muito bem: e o que o juiz Sergio Moro mais o resto da justiça brasileira têm a ver com essa história da Honeywell? Será que ele fabricou, também nos Estados Unidos, essa conspiração para mostrar a corrupção na Petrobras de Lula e de Dilma? Será que tem um poder assim tão imenso que manda na polícia e na justiça americanas? É óbvio que não. Não foram Sergio Moro, nem o promotor Deltan Dallagnol e nenhuma outra pessoa que criaram os problemas criminais do ex- e futuro presidente da República. Lula acabou na cadeia porque a Petrobras foi roubada por criminosos do mundo inteiro enquanto ele e a sua sucessora estavam no governo.

Escritório da Honeywell, na Califórnia (EUA) | Foto: Divulgação

A Grande Narrativa Oficial da Esquerda Brasileira e Mundial, aceita de joelhos pelas elites, as classes intelectuais e todo o universo doente do “politicamente correto”, é essa: Lula, coitado, é uma vítima inocente da direita, dos inimigos dos pobres e das forças do mal, um perseguido político que foi jogado na cadeia por sua luta em favor da justiça social, da democracia e de um Brasil feliz. Os banqueiros de investimento de esquerda, os artistas e quase toda a mídia acreditam nisso como no Sol e na Lua, ou fingem que acreditam. Os liberais-equilibrados também — mais os economistas lúcidos, os bilionários socialistas e o senador Renan Calheiros. Até o Papa Francisco acredita; no seu julgamento infalível, Lula é um operário humilde que foi levado à prisão por causa das fake news e da malícia dos seus inimigos, inconformados com o amor que ele desperta nas massas e suas lutas em prol da virtude universal. É a maior mentira de todos os 522 anos de existência do Brasil — e certamente uma das maiores mentiras de toda a história política mundial. É tão falso como a lenda de que Lula é “um de nós”, um “homem do povo” que entrou na política para fazer o bem e outras invenções do mesmo tipo — ele, que há mais de 40 anos não trabalha, não viaja 100 metros sem tomar um jatinho e leva uma vida de paxá das mil e uma noites. E é tão falso, acima de tudo, quanto a monumental miragem vivida hoje no Brasil e aceita pelo mundo inteiro: a de que Lula volta ao governo como resultado de um movimento de “resistência” ao “totalitarismo”, à desigualdade, ao avanço da “fome”, à destruição da Amazônia, à perseguição das mulheres, dos gays e dos negros etc. etc. etc. Não é absolutamente nada disso.

É preciso haver certeza de que a corrupção não vai ser punida, e que todos possam roubar com o mínimo, ou nenhum, risco de ir para a cadeia. O resto é uma colossal conversa fiada

Lula, neste final de 2022, é o resultado de uma coisa só, no mundo das realidades: a retomada do Brasil pelas forças que sempre mandaram no país e que não admitiam, nem por mais cinco minutos, um Estado que não fosse controlado de ponta a ponta pela corrupção. Seu retorno à presidência, depois de ser declarado vencedor da última eleição pelo TSE, não tem nada a ver com direita ou esquerda, “socialismo”, nova política econômica ou qualquer das coisas que se dizem por aí. Trata-se, unicamente, do desfecho vitorioso de uma operação destinada a devolver o Brasil a seus donos de fato — as elites que vivem do Estado, como parasitas eternos, não admitem os riscos da liberdade econômica, do desenvolvimento e da competição — e, mais que tudo, precisam da corrupção como o organismo humano precisa de oxigênio. É essa gente que acaba de ganhar. Concluíram, com sucesso, um golpe de Estado disfarçado de “luta pela democracia”, que jamais teve qualquer coisa a ver com democracia, “mudanças sociais” e nada disso que está dia e noite na mídia. Tem tudo a ver, isso sim, com o controle sobre os R$ 2 trilhões de arrecadação do governo federal (foi quanto se recolheu de imposto em 2022), dos R$ 250 bilhões que as empresas estatais tiveram de lucro este ano e de todas as ilimitadas possibilidades de ganho oferecidas por esse tesouro — desde, naturalmente, que os donos do governo, seus amigos e os amigos dos amigos possam meter a mão à vontade no dinheiro. Mais que tudo: é preciso haver certeza de que a corrupção não vai ser punida, e que todos possam roubar com o mínimo, ou nenhum, risco de ir para a cadeia. O resto, todo o resto, é uma colossal conversa fiada.

A volta de Lula e do mecanismo que lhe dá apoio é a reação de uma camada da sociedade (um “estamento”, como dizem os sociólogos; talvez chegue, no máximo e contando até o cachorro, a 10% da população) que não tolerava mais, pura e simplesmente, o Brasil que tem estado aí até agora. É um país novo, que começou a se formar dez anos atrás, ou algo assim, com as grandes manifestações populares de 2013. Houve, pela primeira vez na história nacional, uma tomada de consciência por parte de milhões de brasileiros que não queriam mais o Brasil velho, mostraram sua força indo para a rua e descobriram que podiam mudar coisas — uma ideia apavorante para os proprietários habituais do Estado brasileiro. Passou-se em 2014 para a Operação Lava Jato, que levou o país a uma situação inédita: a corrupção podia realmente ser punida e os poderosos podiam realmente ir para a cadeia, algo ainda mais insuportável do que o povo na praça pública. Um ex-presidente foi para a prisão; o maior empreiteiro do Brasil também, junto com dezenas de outros magnatas. Devolveram dinheiro roubado e se delataram uns aos outros. O que poderia haver de pior para os que sempre mandaram no Brasil? Veio, em seguida, a deposição de Dilma Rousseff — a sucessora de Lula no comando do governo mais corrupto que este país já conheceu. Por fim, pior que tudo, a população colocou Jair Bolsonaro no governo, em eleições livres — e durante os últimos quatro anos não houve nem um episódio de corrupção remotamente comparável à roubalheira compulsiva da época Lula-Dilma. Os empreiteiros não receberam mais obras pagas a preço cinco vezes superior ao certo. A mídia está há quatro anos sem ver praticamente um tostão em dinheiro do governo. Pararam de cobrar o imposto sindical. As estatais deixaram de ser propriedade privada dos políticos e dos seus patrões, e começaram a dar lucro. O país passou a ser gerido, na maior parte do tempo, em função dos interesses reais do público. Milhões de brasileiros continuaram saindo às ruas para apoiar o governo — e surgiu o risco real e evidente de que, caso houvesse eleições realmente livres, Bolsonaro fosse reeleito e esse estado de coisas continuasse por mais quatro anos. A elite decidiu que não dava para continuar assim.

Dilma Rousseff, então presidente, faz defesa durante sessão de julgamento do impeachment no Senado | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

É bem sabido o que aconteceu para as elites suprimirem este país que julgavam insuportável; não era mais possível, na verdade, a convivência entre elas e o Brasil novo que estava começando a aparecer. A Operação Lava Jato e todas as demais ações contra a corrupção foram eliminadas pelo STF, com o apoio maciço da maioria do mundo político e das forças que exercem o controle sobre ele. As entidades da “sociedade civil”, com a desculpa de defender o “direito de defesa”, aderiram à causa dos corruptos. O mesmo STF tirou Lula da cadeia, rasgando uma lei aprovada pelo Congresso Nacional — que, de passagem, foi extinto pelo Supremo como poder independente. Os ministros anularam os processos contra Lula e sumiram com a ficha suja que o impedia de concorrer a cargos públicos; com isso criaram a sua candidatura à Presidência. Há quatro anos fazem oposição aberta, agressiva e permanente ao governo. Acabaram com direitos individuais e liberdades públicas para prender, multar e calar quem cai na sua lista de inimigos. Por fim, organizaram a eleição mais facciosa, obscura e contestada da história eleitoral brasileira. Não admitiram o mínimo pedido para investigar irregularidades na votação e na apuração; ao contrário, punem com cadeia, censura e multas de R$ 23 milhões quem recorre legalmente à justiça para esclarecer melhor os fatos. Lula, ao cabo de todos esses esforços, foi declarado vencedor da eleição. A operação para entregar o Brasil de novo à casta que manda no Estado há 500 anos estava concluída. O sistema Lula está de volta à cena do crime.

Não existe a mais longínqua possibilidade de Lula, seus ministros ou qualquer mandarim da esquerda brasileira serem processados por qualquer crime de corrupção, mesmo que provado com vídeo, áudio e confissão do criminoso

As demonstrações objetivas de que a corrupção assumiu de novo o comando do país estão por toda a parte. Um advogado da Odebrecht, nada menos que isso, foi nomeado para um alto cargo no novo Ministério da Justiça. Ou seja: seu cliente Marcelo Odebrecht foi condenado a mais de 19 anos de cadeia por corrupção, e só saiu porque fez delação premiada e devolveu dinheiro roubado; ele foi premiado com um emprego no governo. A nova ministra da Cultura esteve envolvida com desvio de dinheiro público e está no Cadastro dos Inadimplentes, por dever mais de R$ 1 milhão em impostos não pagos; num país com 215 milhões de habitantes, Lula não achou ninguém melhor que ela para o cargo. Anuncia-se que a mídia vai receber R$ 20 bilhões em publicidade das empresas estatais; por sinal, a partir de agora políticos que deixaram seus cargos há 30 dias podem assumir lugares na direção das estatais, em vez de três anos. Juízes e promotores da Lava Jato estão sendo perseguidos. O futuro ministro da Justiça ameaça processar quem chamar Lula de “ladrão”. Um futuro diretor da Polícia Rodoviária foi demitido antes de assumir o cargo porque a milícia ideológica do PT descobriu que ele tinha feito, no passado, um elogio à Lava Jato. O ex-governador Sérgio Cabral, condenado a 425 anos por corrupção confessa, foi solto; é um dos heróis de Lula, que afirmou, anos atrás, que era um “dever moral” votar nele. Antes mesmo de assumir a presidência, Lula exigiu, e ganhou, licença para gastar R$ 145 bilhões acima do que a lei permite. Até agora, pelas contas disponíveis, o governo Lula vai ter 37 ministérios diferentes, cada um com o seu potencial de acesso aos 2 trilhões mencionados acima; não ocorreu a ele, nem por dez segundos, a possibilidade de passar para os “pobres” o que o Erário vai gastar com essa manada de novos ministros, ou com o aumento salarial “em cascata” que foi dado ao Congresso e judiciário, com o apoio integral do PT.

Marcelo Odebrecht | Foto: Antônio More/Estadão Conteúdo

É essa a democracia que o consórcio Lula-STF-Brasil da Senzala acaba de salvar, para entregar o país de novo aos seus sócios-proprietários — com a grande diferença de que agora ninguém vai errar de novo e permitir que aconteça outra vez o que aconteceu de 2013 até agora. Não existe mais, já neste momento, a mais longínqua possibilidade de Lula, seus ministros ou qualquer mandarim da esquerda brasileira serem processados, e muitíssimo menos condenados, por qualquer crime de corrupção, mesmo que provado com vídeo, áudio e confissão do criminoso. A corrupção, para todos os efeitos práticos, está liberada no Brasil de hoje; pode-se roubar sem o menor risco. Ou alguém acha que o STF vai permitir que Lula seja preso outra vez? Operação encerrada. Missão dada, missão cumprida. Perdeu, mané.

Leia também “Rumo ao Estado policial”

Anterior:
Raquel Gallinati: ‘Fui a primeira mulher a representar os delegados de São Paulo’
Próximo:
Carta ao Leitor — Edição 248
Newsletter

Seja o primeiro a saber sobre notícias, acontecimentos e eventos semanais no seu e-mail.