Minha aula inaugural toda vez que dou um curso de Princípios Microeconômicos, o que acontece todo semestre, é sobre o que a historiadora da economia e filósofa liberal Deirdre McCloskey chama de “o grande enriquecimento”. Mostro aos meus alunos (que costumam estar no fim da adolescência) que eles e todo mundo que eles conhecem são materialmente muito mais ricos do que a vasta maioria dos humanos que já viveram. Explico que, milênio após milênio, nossos ancestrais humanos respiraram, trabalharam e morreram em uma pobreza tão massacrante que mal conseguimos imaginá-la hoje.
Esse padrão de existência, quando considerada no tempo histórico, foi subitamente destruído apenas dois séculos atrás. Primeiro na Holanda e, então, mais espetacularmente, na Inglaterra, pessoas comuns obtiveram um acesso mais regular e maior aos bens e aos serviços que no passado estavam disponíveis apenas à realeza, à nobreza e aos membros do alto clero ou — o que era mais comum — não estavam disponíveis para ninguém. Até mesmo Luís XIV, provavelmente o homem mais poderoso do mundo, não podia viajar em veículos motorizados, escapar do calor do verão em salas com ar-condicionado, conversar em tempo real com pessoas que não estivessem a uma curta distância, evitar que seu rosto fosse desfigurado pela varíola, melhorar sua visão com lentes de contato ou uma cirurgia a laser nem tratar sua gonorreia com antibióticos.
Um propósito fundamental da minha disciplina de introdução à economia é ajudar os estudantes a entenderem que e como a cooperação comercial pacífica — que hoje se expande pelo globo e envolve bilhões de pessoas que são quase todas estranhas umas às outras — surge para criar e manter nossa impressionante prosperidade material.
Alguns alunos, mais que outros, resistem à minha explicação de como. Uma dessas alunas — uma primeiranista que vou chamar de “Sarah” — me abordou depois da nossa aula mais recente e perguntou: “Nossa riqueza não é resultado da escravidão?”. Ela continuou: “Meu professor de história do ensino médio nos ensinou que nossa riqueza foi extraída dos escravos”. Sarah parecia convencida com a explicação de seu antigo professor.
Como a colheita do algodão feita pelos escravos na Louisiana em 1860 apareceria 160 anos depois em Michigan, em casas de classe média equipadas com wi-fi
Don para Sarah: Sim, já ouvi essa afirmação, mas não estou convencido. Como você explica o fato de a escravidão nos Estados Unidos ter terminado 157 anos atrás e, desde então, a riqueza dos norte-americanos comuns continuar não apenas aumentando, mas ter chegado a níveis muito mais impressionantes do que quando a escravidão ainda existia? Vamos pensar no que aconteceu no século 20. Os norte-americanos comuns obtiveram acesso fácil à eletricidade, ao rádio, à televisão, ao automóvel, a uma rede continental de rodovias pavimentadas, viagens aéreas, ar-condicionado, supermercados, antibióticos, lentes de contato, laptops e telefones celulares. Todas essas marcas da prosperidade foram criadas muito depois do fim da escravidão.
Sarah para Don: Sim, mas essas coisas se tornaram possíveis por causa da riqueza que os brancos extraíram dos escravos. Sem a riqueza produzida pelos escravos e roubada deles, não teríamos tido a base para produzir o que produzimos depois do fim da escravidão.
Don: Os escravos norte-americanos trabalhavam principalmente na agricultura. Por exemplo: como a colheita do algodão feita pelos escravos na Louisiana em 1860 apareceria 160 anos depois em Michigan, em casas de classe média equipadas com wi-fi, Google Home e geladeiras cheias de suco de laranja da Flórida, abacaxis do Havaí e vinho sauvignon blanc da Nova Zelândia?
Sarah: A riqueza roubada do trabalho escravo acabou sendo investida em fábricas que produziram essas coisas.
Don: Não exatamente. Vamos considerar, por exemplo, Henry Ford. Ele nasceu com meios modestos em uma fazenda em Michigan, em 1863, em uma família sem histórico de posse de escravos. O que o fez ter sucesso em seus negócios?
Sarah: Você está perguntando isso para mim?
Don: Estou.
Sarah: Não tenho certeza. Não conheço os detalhes específicos.
Don: Henry Ford tinha ideias empreendedoras. Ele também teve a iniciativa e a liberdade, como diz a economista Deirdre McCloskey, para “tentar” colocar suas ideias em prática. Ford, como incontáveis outros empreendedores menos conhecidos, geraram riqueza. Ford ficou rico ao aumentar drasticamente a eficácia da produção de automóveis, que as massas compraram avidamente. Seu sucesso profissional não teve nenhuma relação com a escravidão.
Sarah: Eu entendo que ele não tenha usado escravos. Mas acho que o capital para dar início à sua empresa provavelmente foi produzido anteriormente por escravos.
Eu: Primeiro, o capital investido em Ford veio de um homem chamado William H. Murphy. Nascido em 1855, em Maine, Murphy se mudou para Detroit, onde ele e seu pai obtiveram sucesso em uma série de negócios ligados à madeira. Estou bem certo que os madeireiros de Michigan nos pós-Guerra Civil não ganharam dinheiro com a escravidão. Murphy, assim como Ford depois dele, criou sua riqueza ao administrar um negócio com sucesso.
Em segundo lugar, independentemente da origem do capital que Murphy investiu no novo negócio de Ford, esse investimento não teria valido nada se Ford não tivesse a visão, a energia e a liberdade para usar esses recursos de formas que produziram resultados que as massas quiseram comprar a custos baixos o suficiente para valer a pena para Ford continuar produzindo. É isso que quero dizer quando afirmo que Ford gerou riqueza — para si mesmo, obviamente, mas também para seus clientes, na forma de automóveis que valiam a pena adquirir, e para seus funcionários, na forma de oportunidades de ganhar rendas maiores do que teriam ganhado trabalhando em outro lugar.
Sarah: Mas ainda sinto que o investimento inicial para todas essas empresas que vieram depois, como a Ford, vieram da economia escravagista, que durou séculos neste país.
Don: Sarah, não sinta. Pense! Você não está vendo que Ford gerou riqueza? Você não vê que ele criou um valor que não existia até ele colocar suas ideias empreendedoras em prática? Se Henry Ford conseguiu, sem a escravidão — como você admite — transformar uma quantidade de riqueza em uma quantidade maior de riqueza, por que outras pessoas não poderiam ter feito o mesmo, antes e depois de Ford? Mesmo se – ao contrário do que dizem os fatos – todo esse capital inicial da Ford Motor por acaso tivesse vindo de antigos senhores de escravos, o que gerou a riqueza de Henry Ford e os bens de valor que ele produziu para milhões de norte-americanos foram a visão empreendedora e o esforço que Ford colocou em ação em uma economia que lhe permitiu atuar de forma empreendedora. Nenhuma quantidade de valor de recurso se torna uma quantidade maior de valor de recurso automaticamente. A capacidade de um empreendedor de transformar uma quantidade de valor de recurso em um valor de recurso maior não depende da fonte de financiamento inicial que o empreendedor usou para lançar sua empreitada. O que importa são o empreendedorismo e a liberdade dos mercados, o que não tem absolutamente nada a ver com a escravidão.
Sarah: Não sei. O capitalismo veio depois da escravidão. Isso deve ser significativo.
Eu: Você se lembra da minha aula de umas três semanas atrás, em que fiz um alerta sobre essa falácia post hoc, ergo propter hoc (“depois disso, portanto, por causa disso”)? Você está cometendo essa falácia agora. Você não pode concluir com legitimidade que, se o evento A foi sucedido pelo evento B, A causou B. Talvez isso tenha acontecido, talvez não. Na verdade, é possível que B tenha acontecido apesar — e não por causa — de A. Só porque as pessoas saem de casa de manhã levando guarda-chuva não significa que a chuva que caiu depois tenha sido causada pelas pessoas que levaram guarda-chuva.
A escravidão prevaleceu nas sociedades humanas por milênios. Se a escravidão foi a causadora do capitalismo, você não acha que o capitalismo teria começado pelo menos 7 ou 8 mil anos atrás? Se a escravidão é a origem da nossa prosperidade hoje, por que todos os países do mundo não são tão ricos quanto os Estados Unidos e a Suécia? Você percebe que o Brasil manteve a escravidão até 1888, quase um quarto de século depois dos Estados Unidos? No entanto, os brasileiros sempre foram, e continuam sendo, muito mais pobres que os norte-americanos.
Sarah: Não estou convencida.
Eu: Bem, posso pedir que você mantenha sua mente aberta pelo restante do semestre? Talvez o que está por vir no nosso curso de economia ajude você a entender melhor por que estou certo de que a prosperidade moderna não tem nenhuma relação com a escravidão, exceto pelo fato de que foi o capitalismo — e as ideias que o sustentam — que deu fim à escravidão.
Sarah: Sim, vou me manter aberta. Boa noite, professor.
Eu: Obrigado, Sarah. É só o que peço. Boa noite. Nos vemos na próxima aula.
Donald J. Boudreaux é doutor em economia pela Universidade Auburn e formado em Direito pela Universidade de Virgínia. Autor dos livros The Essential Hayek, Globalization, Hypocrites and Half-Wits, seus artigos apareceram em publicações como Wall Street Journal, New York Times, US News & World Report, bem como em diversas revistas acadêmicas. Ele escreve o blog Cafe Hayek
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Acho que todos nós deveríamos ser gratos por termos nascido em uma era de prosperidade, independente do fato de que nós próprios sejamos prósperos ou não. Já ouvi dizer que tudo aquilo que queremos para nós mesmos serve para os outros também. EX: Se vou construir uma casa, realizo o meu sonho, mas também levo benefícios ao pedreiro, ao dono da loja de material de construção, ao engenheiro, ao pintor, e por aí vai. Um amigo meu, meu padrinho de casamento, cujo filho ficou rico trabalhando no ramo de construção no interior de São Paulo, observou que ‘Deus não permite a riqueza para todo mundo não, só para alguns”. Concordo. A própria Bíblia nos sugere que a bonança não escolhe seus agraciados, tanto serve ao bom e honesto como serve ao ímpio;. E o Brasil é um bom exemplo disso, onde vagabundos carimbados em cartório e vigaristas de toda espécie posam de ricos e esnobes o tempo todo, enquanto os indignados perdem seu tempo tentando entender o porquê. Melhor para os outros.
Donald, essa sua experiência está sendo vivenciada por muitas pessoas que, como nós, defendem o liberalismo. Nossos jovens estão simplesmente impregnados. Foram vítimas de uma cruel e prolongada lavagem cerebral. É preciso multiplicar experiências como essa todos os dias, para muitos jovens, numa batalha terrível para tentar evitar que o Ocidente caminhe para o suicídio coletivo. Vide James Burnham e Jonah Goldberg.