Um dos meus colegas da área médica no pequeno país onde trabalhei por três anos concorreu à eleição para presidente desse país enquanto continuou trabalhando como médico. Naturalmente, ele precisou cair nas graças do eleitorado, mas achou essa tarefa muito difícil. Um dia esse colega foi até a cafeteria do hospital para sua pausa matutina. Um paciente o tinha tirado do sério, e ele tinha perdido a paciência.
“Tento seu simpático com os pacientes”, ele comentou, “mas não consigo”.
Quarenta anos depois, ainda relembro suas palavras. Tento não ficar nem surpreso nem irritado com qualidades dos outros seres humanos, como superficialidade, vulgaridade, trivialidade e insensatez, mas — nas palavras do meu antigo colega — “não consigo”. No fundo do meu coração, acredito eu, sou um esnobe.
Assim, quando leio que no Brasil uma jovem chamada Virginia tem mais de 42 milhões de seguidores (o que quer dizer quase um quinto da população) nas redes sociais, em que ela posta fotos de si mesma, de sua família e faz relatos de sua vida cotidiana, por um breve momento sinto algo parecido com desespero pela humanidade. Tantas pessoas assim podem se interessar por tamanha banalidade? Parece que sim.
Claro, não é só no Brasil que esse tipo de frivolidade existe. Ela nem teve origem no Brasil, parece ser um fenômeno mundial. Virginia é o que chamamos de influenciadora — se ela tira uma foto de si mesma comendo uma banana, milhões de pessoas saem correndo para comprar bananas. Vi recentemente em Paris um filme de ficção polonês sobre a vida de uma influenciadora de boa forma em Varsóvia, que se tornou uma celebridade enquanto divulgava alimentos diet que supostamente ajudavam os consumidores a conquistarem um corpo perfeito. De acordo com o filme, ela tinha comparativamente modestos 600 mil seguidores — o que, mesmo assim, me parece bastante coisa, mas que nesse contexto não é muito. Como consequência de ter vivido quase o tempo todo diante das câmeras, ela não tinha amigos de verdade. A influenciadora havia de fato se tornado uma pessoa virtual, tão parecida com um ser humano real assim quanto os milhões de imagens digitalizadas de um corpo parecem uma pessoa de fato.
Um nome escrito na água
Apesar de deplorar uma cultura em que o fenômeno do influencer pode alçar nulidades à fama e à fortuna, tento controlar meu desdém. Afinal, condenar os gostos e os interesses de muitos milhões de pessoas ao mesmo tempo sem saber nada sobre elas individualmente nem sobre as circunstâncias de suas vidas é muita arrogância.
Com base em que, então, eu condeno o fenômeno da cultura influencer? Tenho alguma razão para fazer isso além de um gosto pessoal visceral?
O influenciador precisa esconder cuidadosamente quaisquer talentos ou qualidades excepcionais, caso contrário, ele pode destruir a ilusão de que o sucesso pode chegar para qualquer pessoa
Talvez a existência de influenciadores de sucesso distorça e corrompa as ambições dos jovens. Isso desvia as pessoas de sonhos alcançáveis e úteis para sonhos de fama e riqueza fáceis, mas muito improváveis. Diz-se que para cada influenciador bem-sucedido existe um número desconhecido de pessoas tentando se tornar influenciadoras. Suas vidas são desperdiçadas na busca dessa utopia.
Mas é o que acontece em áreas, do futebol à filosofia, passando pela pintura e pela poesia. Na lápide do grande poeta inglês John Keats estão gravadas as palavras: Here lies on whose name was writ in water [“Aqui jaz aquele cujo nome estava escrito na água”, em tradução livre]. Por acaso, não foi o que aconteceu com Keats, mas com certeza é o caso da maioria das pessoas que já tentaram levar a caneta ao papel com a esperança de obter algum tipo de imortalidade.
Mesmo assim, fica a sensação de que existe uma diferença entre aqueles que fracassam em ambições dignas e aqueles que buscam a fama como influenciadores. Não é fácil decifrar o talento necessário para tentar ser um influenciador, além de um quê de descaramento e exibicionismo, o que, em todo caso, são características, não talentos. As reais habilidades necessárias para influenciadores de sucesso, retirados da obscuridade e alçados à fama, parecem ser modestas, para dizer o mínimo.
No futebol, por exemplo, por menos importante que você considere o esporte, e por mais distorção que ele cause às ambições dos jovens, é fácil entender por que Kylian Mbappé é famoso: é indiscutível que ele tem um talento prodigioso para o futebol. Não importa quanto os outros treinem, nunca vão alcançar a proeza de Mbappé. Mas com os influenciadores é difícil entender por que um ficou famoso e o outro, não.
Mil livros, um milhão de sulcos
Talvez esse seja o objetivo: tornar-se um influenciador de sucesso em meio a milhares de concorrentes em potencial é como ganhar na loteria: não é necessário ter nenhuma habilidade. Pode ser qualquer um, e é por isso que esse fenômeno é um combustível tão poderoso para as fantasias de milhões. Na verdade, o influenciador precisa esconder cuidadosamente quaisquer talentos ou qualidades excepcionais, caso contrário, ele pode destruir a ilusão de que o sucesso pode chegar para qualquer pessoa. Nesse linha de raciocínio, eu me lembro de um panfleto que tentava despertar a juventude nigeriana para o fato de que é preciso trabalhar muito para prosperar. Sem comprar um bilhete de loteria, como você espera ganhar o prêmio?
Quando me torno esnobe demais sobre os gostos populares, como acontece com facilidade e frequência, eu me lembro do início do conto The Book-Bag, de Somerset Maugham:
“Algumas pessoas leem para se educar, o que é louvável, e algumas por prazer, o que é inocente, mas não são poucas as que leem por hábito, e acredito que isso não seja nem inocente nem louvável. Sou dessa lamentável companhia. Depois de um tempo as conversas me entediam, os jogos me cansam, e meus próprios pensamentos, que, como nos ensinam, são a fonte infalível de um homem sensato, têm uma tendência a se esgotar. Então corro para o meu livro como um viciado em ópio corre para seu cachimbo… Claro, ler dessa forma é tão repreensível quanto as drogas, e nunca deixo de me impressionar com a impertinência dos grandes leitores que, por serem como são, menosprezam os iletrados. Do ponto de vista do que é a eternidade, é melhor ter lido mil livros do que arar um milhão de sulcos?”
Do ponto de vista do que é a eternidade, é errado que Virginia tenha mais de 42 milhões de seguidores? E, mesmo assim, no fundo do meu coração…
Leia também “A novilíngua como língua nativa”
Confesso meu ceticismo quanto aos 45 milhões de seguidores. É gente demais e além de estar entre os cento e tantos milhões restantes, nunca ouvi falar dessa celebridade virtual. Deve haver algum truque nessa contagem.
Bela citação do grande novelista inglês.
Texto simplesmente perfeito. Vou atrás do livro.
Graças a Deus, não tenho rede social alguma. Não quero seguir ninguém e, também, não quero ser seguido. Não tenho tempo para futilidades. Sou feliz assim.
Impressionante essa quase obrigatoriedade de se tornar conhecido, comentado !
Quanta futilidade!
Cada geração com seus excessos e bizarrices! Reconfortante saber que não sou a única inconformada com esse estado de coisas.
Li o texto sem antes cuidar de verificar o autor, mas só podia ser ele, o Sr. Theodore. Adoro seus textos. Ele fala por mim. Particularmente, tenho o hábito de ver a humanidade como folhas ao vento – algumas voam, outras ficam presas ao chão, ou apenas se movem. Prefiro as que apenas se movem, não quero voar muito menos ficar preso ao chão. A fama não me interessa, pois com ela todo mundo iria querer viver a minha vida, e eu teria que viver a vida de todo mundo. Não quero. Prefiro ficar anônimo e escrever na Revista Oeste.
A única conclusão que consigo chegar é que a imensa maioria das pessoas são fúteis.
Pergunto-me se entendi o que li nesse artigo… Frente a eternidade somos todos efêmeros, de modo que cada um que tenha importância relativa junto à sua tribo, o que, comparado tribo a tribo, nos equipararia afinal. Talvez a diferença seja feita numa hierarquia entre tribos, primeiramente.
Bom dia !!!
Que matéria magnífica; pensamento como.o.meu, expressado por poucos. Graças a uma força superior, somos mais que meros “influenciadores”. Ainda bem!!! e que continuemos assim.