A pandemia da covid-19 tem imposto aos gestores públicos a necessidade de aumentar investimentos na área de saúde. Se o coronavírus dita “onde” deve ser aplicado o dinheiro do pagador de impostos, pelo menos resta ao gestor definir “como”.
E, nesse aspecto, o Brasil vem falhando com frequência. Não faltam episódios de roubalheira e descaso com o uso dos recursos, denunciados diariamente em todo o país.
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Em 6 de fevereiro deste ano, a Lei nº 13.979/20 autorizou os governos federal, estaduais e municipais a firmar contratos sem licitação para conter a expansão da pandemia. Políticos passaram a decidir como gastar o dinheiro no combate segundo seus próprios critérios e prioridades.
Sobre o assunto, leia a reportagem “O ataque do Covidão”
Em um momento em que decisões precisavam ser tomadas de forma rápida, a ideia de construir hospitais de campanha para ampliar o já deficiente sistema de saúde brasileiro pareceu uma opção acertada. Afinal, “o mundo não estaria construindo vários hospitais de campanha se essa não fosse a melhor alternativa”, justificou o prefeito de Fortaleza, Roberto Cláudio, em recente entrevista ao Diário do Nordeste.
Não se sabe se por inspiração do hospital de campanha construído em dez dias na China, se pela facilidade em realizar contratos sem licitação entregues a instituições duvidosas ou se para posar com tendas portentosas ao fundo, que rapidamente ganham fotos em jornais e espaço no horário nobre das emissoras de TV, mas o fato é que a ideia agradou aos gestores públicos.
Pelo princípio da eficiência, previsto na Constituição Federal, todo bom gestor deveria perseguir o princípio de “fazer mais com menos”. Apenas em São Paulo, Estado governado pelo tucano João Doria, mais de R$ 130 milhões foram gastos na construção de estabelecimentos para o combate à covid-19. Será que esse era o melhor caminho para investir tanto dinheiro do contribuinte?
Havia leitos suficientes na rede privada
Em 2019, São Paulo contava com pouco mais de 91 mil leitos hospitalares, entre públicos e particulares, para atender toda a população. Destes, mais de 52 mil eram ligados ao Sistema Único de Saúde (SUS), segundo dados do próprio governo e do Ministério da Saúde.
Para o médico Wladimir Taborda, consultor em Saúde Pública e especialista em parcerias com organizações sociais, não seria preciso construir novos leitos para atendimento emergencial dos pacientes com covid-19. “Já existe uma capacidade instalada no Brasil que atende ao SUS que está, em muitos casos, ociosa ou sucateada”, defende Taborda.
Até o fechamento desta reportagem, na tarde de 2 de julho, São Paulo contabilizava, em quatro meses, pouco mais de 281 mil casos de coronavírus. Nem todos eles precisaram de internação, da mesma maneira que nem todos os leitos foram disponibilizados para o uso dos doentes com covid-19 durante a pandemia.
Contudo, uma coisa é certa: em boa parte do tempo, os leitos de hospitais particulares permaneceram vazios. Até mesmo as unidades de terapia intensiva, com todos os recursos tecnológicos que tantas vezes se ouviu dizer que faltavam à rede pública, ficaram sem receber pacientes.
Com a pandemia, hospitais suspenderam cirurgias eletivas e muitos pacientes cancelaram exames e consultas por causa do medo de contaminação. No Hospital Albert Einstein, em São Paulo, a taxa de ocupação total caiu abaixo de 50% em alguns momentos, de acordo com Claudia Laselva, diretora de Operações, Enfermagem e Experiência do Paciente da instituição.
Segundo a agência Reuters, os procedimentos eletivos representam até 80% da receita de um hospital. Uma parceria entre as redes pública e privada seria uma estratégia de ganha-ganha para conciliar os interesses de quem perdeu receita e de quem precisa ampliar o atendimento emergencial rapidamente. “Com o dinheiro liberado pelo governo federal, com certeza seria possível comprar as vagas necessárias na rede privada”, destaca Taborda, médico que atende no Hospital Albert Einstein. “Principalmente na rede filantrópica, nas Santas Casas de todo o Brasil, nas entidades privadas que têm hospitais que atendem ao SUS.”
O governo do Estado paulista até realizou iniciativa nesse sentido, ao fechar contrato de aluguel de 4,5 mil vagas em hospitais particulares por R$ 594 milhões, por um prazo de 90 dias. O valor da diária de UTI saiu por R$ 3,2 mil. Para efeito de comparação, no Hospital de Campanha de Mauá, no interior paulista, cada leito administrado pela organização social (OS) Atlantis, investigada em esquemas de corrupção, saiu por R$ 7 mil, num contrato que custou R$ 3,3 milhões durante três meses. O espaço, com 30 leitos, cinco de UTI e 25 de unidade semi-intensiva, levou o prefeito da cidade, Átila Jacomussi, a ser investigado pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP).
Caso semelhante foi registrado em Jandira, também no interior de São Paulo. A prefeitura gastou R$ 5,2 milhões em apenas dez leitos de emergência e outros dez de enfermaria. De acordo com o MP-SP, a OS Ocean Saúde, contratada para administrar a operação, superfaturava os equipamentos comprados. Assim, por exemplo, uma máscara N95, vendida normalmente por R$ 19, saía por R$ 49.
Enquanto hospitais de campanha foram erguidos com dinheiro do contribuinte e entregues à administração privada, um andar inteiro do Hospital Estadual do Ipiranga, na Zona Sul de São Paulo, foi fechado. O quinto andar, que, segundo fontes de Oeste, está plenamente funcional, foi desativado sem explicações a nenhum dos médicos da instituição.
O “não legado” da pandemia
O gosto pela construção de tendas em locais estratégicos da cidade parece evidenciar ainda uma tentativa de capitanear votos em ano eleitoral. “Os hospitais de campanha acabam sendo um instrumento de marketing muito melhor para os governantes do que se eles apenas fechassem as parcerias para conseguir os leitos necessários”, constata o médico Walter Cintra Ferreira Junior, doutor em administração de empresas e membro do Centro de Estudos em Planejamento e Gestão em Saúde da FGV-SP.
Tanto se falou em legado da Copa, legado da Olimpíada, mas e quanto ao legado da pandemia? “Aqui em São Paulo, até tem uma grande estrutura [para contratações de leitos na rede privada], mas o outro caminho [o dos hospitais de campanha] é mais visível, mais imediato e mostra uma decisão rápida”, resume Taborda. “No fim das contas, percebe-se que não foi a melhor forma de gastar, porque provavelmente o único legado que ficará é o de que temos de nos preparar melhor para a próxima pandemia.”
Alternativas como acelerar obras inacabadas ou mesmo reativar hospitais antigos, em vez de investir em estruturas que serão em breve desmontadas, mostram um caminho possível para aumentar a oferta de leitos no enfrentamento do coronavírus.
O Hospital Sorocabana, na Zona Oeste da capital paulista, ficou dez anos fechado e foi reaberto parcialmente em junho para atender pacientes com covid-19. Foram disponibilizados 60 dos 200 leitos disponíveis, que permanecerão para uso da comunidade após a pandemia.
Com quatro anos de atraso, o Hospital Municipal da Brasilândia, na Zona Norte da capital, começou a funcionar parcialmente em maio. A obra, suspensa por “falta de recursos” em 2016, foi inaugurada com 36 leitos, 20 deles de UTI, mas tem capacidade para 305, quando estiver em plena operação.
Necessidade de gestão com transparência
A escolha dos gestores públicos pela criação de espaços com infraestrutura improvisada — como no caso do Hospital de Campanha do Anhembi, que não resistiu à primeira chuva forte na capital — evidencia também a dificuldade na contratação de parcerias com as OS (organizações sociais) em razão da avalanche de casos de superfaturamento durante a pandemia.
Apesar de já haver dispositivos legais que garantem a implementação de parcerias entre as redes pública e privada, com uma regulamentação clara e efetiva, a desconfiança acaba por impor limites rígidos às contratações.
Para Ferreira Junior, os dois lados temem ter seu nome envolvido em investigações. “Depois de muitos escândalos, tanto o governo quanto os hospitais, as organizações sociais e filantrópicas têm certo receio em entrar nesse tipo de negócio”, constata o médico.
Com isso, criam-se soluções como os hospitais de campanha da capital paulista: menos de 8 mil pacientes atendidos em estruturas que podem custar até R$ 10 milhões mensais cada uma.
Afinal, as licitações até foram dispensadas com o decreto de calamidade, mas a burocracia, esta não vai embora jamais.
Eu não tenho dados pra afirmar que o consultor está certo ou errado mas uma coisa é certo, durante o período mais crítico de internações, eu li reportagens sobre a ociosidade em hospitais privados, inclusive com demissões de profissionais. Não seria o caso de fazer parcerias com esses hospitais e então se avaliar a necessidade de hospitais de campanha? Outra consideração; todo o dinheiro (superfaturado em muitos casos) despendido na montagem desses galpões e mais a fortuna gasta com os caríssimos equipamentos, virarão fumaça! Ainda veremos no futuro reportagens mostrando todos esses equipamentos apodrecendo em algum depósito qualquer.
A corrupção no Brasil é uma tragédia pior que a Covid porque essa têm-se expectativa de prazo para acabar, já a corrupção não existe vacina que a combata.
Ótima matéria e esclarecedora.
Pelo menos vc abordou o tema com mais informações do que normalmente a gente vê na imprensa em geral.
Você está certo Artur!
..com todo respeito, o consultor de saúde – Taborda – esta bem equivocado !
Não me parece que seja um frequentador de hospitais – em hipótese nenhuma o sistema privado de São Paulo garantiria a internação dos milhares de pacientes num espaçõ de tempo tão curto .
Concordo plenamente com os exageros dos gastos …..infelizmente “o mal caratismo” político já esta implantado – mas falar da não necessidade de hospitais de campanhas ….significa desinformação total sobre o assunto !