Shamima Begum, noiva do Estado Islâmico, não vai voltar para o Reino Unido. Um tribunal de imigração decidiu que a decisão de privá-la da cidadania britânica era legal.
O principal argumento do recurso legal de Begum era não ter entrado para o Estado Islâmico por vontade própria. Na verdade, quando fugiu de Londres para a Síria, em 2015, ela supostamente foi vítima de “grooming” (aliciamento de menores) e “tráfico humano”. Os juízes foram solidários a ela. Mas, no fim das contas, aceitaram que, em 2019, o então ministro do Interior, Sajid Javid, havia buscado os devidos pareceres em questões de segurança nacional antes de rescindir a cidadania dela e teve motivos para considerá-la uma ameaça.
A decisão parece ter surpreendido muitas figuras da mídia, em especial os veículos que, em grande parte, aceitaram os argumentos dos defensores de Begum. Basta abrir qualquer grande jornal ou sintonizar um canal mainstream de notícias, e ninguém vai estranhar se você esquecer por que ela se tornou uma figura tão odiada no Reino Unido. Hoje existe um consenso na elite de que Begum não é uma vilã, mas uma vítima. É um consenso baseado em uma cegueira aparentemente deliberada em relação ao seu passado no Estado Islâmico.
Apenas nas últimas semanas, a noiva do EI agraciou a primeira página da revista de sábado do Times e foi o tema de um documentário apresentado no horário nobre da BBC e de uma série veiculada em podcast de destaque também da BBC. Cada uma dessas aparições tinha um viés indubitavelmente solidário.
Como parte do batalhão policial feminino, ela teria podido impor castigos — de chicotadas e encarceramentos a execuções e amputações de mão — a qualquer pessoa que considerasse ter transgredido a lei islâmica
Enquanto isso, a questão de segurança nacional se Begum é uma ameaça ao Reino Unido parece ter sido retocada no debate nacional. O tema é tratado como uma mísera nota de rodapé em boa parte da cobertura da mídia. A reportagem da BBC sobre o recurso negado faz apenas uma menção ao ingresso dela no Isis. Em nenhum momento o texto explica quaisquer implicações de segurança nacional que levaram à decisão do governo. Também não aparecem detalhes sobre o que ela pode ter feito na Síria.
Grande parte da repercussão da mídia simplesmente deixa de citar os supostos crimes de Shamima — considerando-os irrelevantes. Ressalvas como “Sim, ela entrou para o Estado Islâmico, mas…” ou “Ela não fez nada errado, além de se juntar ao Estado Islâmico” aparecem com uma frequência chocante.
Por exemplo, o único crime real de Begum, como descobrimos na edição de hoje do Evening Standard, foi “aparecer da forma errada” na televisão quando foi encontrada pela primeira vez num campo de refugiados sírios, em 2019. Na época, o jornal The Times seguiu uma linha similar. De acordo com a colunista Caitlin Moran: “Shamima se tornou apátrida, porque pareceu ser uma cretina na TV. Foi isso. Ela deu uma entrevista em que se comportou como uma idiota”.
Claro, essas foram as entrevistas em que Begum não demonstrou nenhum arrependimento por se juntar ao Estado Islâmico. Em que ela não pareceu chocada ao ver cabeças decapitadas em latas de lixo, uma vez que provavelmente pertenciam a “inimigos do Islã”. E em que chegou até a manifestar apoio ao massacre dos adolescentes britânicos pelo Estado Islâmico no bombardeio do Manchester Arena, em 2017. Não foram gafes desajeitadas, foram divagações do membro de um grupo terrorista bárbaro.
Shamima insiste que não fez nada de errado durante todos os anos que passou na Síria, desde sua chegada, em 2015, até a queda do califado do EI, em 2019. E afirma que era apenas uma dona de casa, na maior parte do tempo confinada em um apartamento em Raqqa. Ela admite ter se juntado ao EI, mas declara nunca ter sido uma participante ativa.
Boa parte da mídia reproduziu essas declarações, muitas vezes de forma acrítica. Mas existem diversas alegações bem fundamentadas, provenientes de fontes de boa procedência, que contam outra história.
De acordo com o Sound and Picture, um grupo ativista anti-EI, cujos membros viveram sob o regime do Estado Islâmico e acompanharam seus recrutas de perto, Begum foi para o acampamento al-Tala’ia, onde supostamente passou três meses em um rigoroso treinamento religioso e militar. O recente documentário da BBC, The Shamina Begum Story, traz uma testemunha que afirma ter visto Shamima no campo de treinamento.
Depois disso, foi relatado que ela se formou e entrou para o Khansaa, um famoso batalhão policial feminino. Begum então supostamente se juntou ao al-Hisba — a conhecida polícia da moralidade do EI. Nesse papel, ela teria podido impor castigos — de chicotadas e encarceramentos a execuções e amputações de mão — a qualquer pessoa que considerasse ter transgredido a lei islâmica. Ela teria podido percorrer as ruas de Raqqa com um rifle Kalashnikov.
Depois de rescindir a cidadania de Begum, Sajid Javid afirmou, numa entrevista para a TV: “Se vocês soubessem o que eu sei, teriam feito exatamente a mesma coisa”. O que sabemos ter sido informado a ele em 2019 foi a alegação de que Shamima costurou coletes de bombas nos terroristas, para que não pudessem ser retirados. Essa alegação veio da CIA ou da Inteligência Militar holandesa.
Também não é verdade que noivas do EI, como Begum, seriam donas de casa subservientes. Muitas foram participantes ativas no genocídio e na tortura do povo yazidi, por exemplo.
Mesmo assim, algumas pessoas ainda vão tentar afirmar que Shamima foi a verdadeira vítima. Ou, mesmo tendo feito algo errado, ela sofreu uma “lavagem cerebral” pela propaganda política do Estado Islâmico ou foi aliciada por recrutadores manipuladores.
A desculpa da propaganda política perde a força quando consideramos que vídeos de atos ultraviolentos eram parte fundamental do apelo do EI para futuros islamitas radicais. Begum chegou a admitir ter ouvido falar de um vídeo assustador, em que um piloto jordaniano é queimado vivo por militantes do EI, antes de ir de Londres para a Síria (ela afirma acreditar que o EI estava tentando salvar a vida dele depois da queda de seu avião). Quanto à acusação de “grooming”, a própria Begum afirma ter sido aliciada não por um recrutador profissional, mas por Sharmina, uma colega de escola. Além disso, Begum e as duas garotas com quem viajou para a Síria em 2015, Amira Abase e Kadiza Sultana, eram inteligentes e capazes, e ingênuas e bobas.
Outra desculpa que costuma ser dada em benefício de Shamima é que ela foi “traficada” para a Síria. O que é verdade no sentido mais grosseiro de que ela e as amigas precisaram da ajuda de um famoso traficante de pessoas — um homem chamado Mohammed Rashid — para atravessar a fronteira da Turquia ilegalmente. Sabemos hoje que Rashid estava atuando como informante da Inteligência canadense. Ele não foi infiltrado no campo, mas estava compartilhando informações.
A história de Rashid levou muita gente a afirmar que a viagem de Begum “poderia ter sido evitada” se um “espião ocidental” não tivesse auxiliado sua entrada na Síria. Ou que ela foi “retirada ilegalmente do Reino Unido” por um “agente de segurança da Otan”. Todos esses argumentos parecem sugerir que Rashid é o único com algum poder de decisão, enquanto implica o conhecimento ou até o envolvimento ocidentais na viagem das garotas — ainda que não exista nenhuma evidência disso. Na verdade, Begum e as amigas procuraram a ajuda do traficante pela razão bastante óbvia de que queriam entrar na Síria. As meninas não foram sequestradas nem traficadas até o território do EI contra sua vontade, como muitas vezes é sugerido.
É isso que precisamos lembrar quando consideramos o destino de Shamima. As tentativas de reabilitação contam distorções, meias-verdades e a diminuição de seu passado com o Estado Islâmico. É impressionante que tantas pessoas que defendem a ideia de que Shamima deveria ser recebida pelo Reino Unido e julgada — com frequência sem saber como isso seria difícil — não tenham interesse em seus crimes.
Essas pessoas parecem estar convencidas de que Shamima Begum é uma vítima, não uma criminosa. O que é um insulto às vítimas da barbárie do Estado Islâmico.
Fraser Myers é editor adjunto da Spiked e apresentador do podcast da Spiked.
Ele está no Twitter: @FraserMyers
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