“Filhas de Boston,
Dai preferência ao nosso chá Souchong.
Comprai grande quantidade.
Pois se assim não fizerdes, encantadoras meninas,
Degolaremos vós todas, e incendiaremos a cidade.”
Propaganda inglesa de chá aos súditos rebeldes − Século 18
O chá disputa com o café a fama de ser a bebida mais consumida no mundo, depois da água. Dada a população da China, Índia e Ásia, o chá deve liderar. O Viaduto do Chá, em São Paulo, o Casarão do Chá, em Mogi das Cruzes, o KKKK (Kaigai Kogyo Kabushiki Kaisha), em Registro, e a Vista Chinesa, no Rio de Janeiro, são marcos na história do chá no Brasil. Após a fase de ouro no século passado, o cultivo e o consumo do chá diminuíram. Agora, voltaram a crescer produção, consumo, qualidade e sofisticação dos produtos. A bebida, de várias raízes culturais, oferece diversidade de aromas, sabores, preparos, louças e um objeto cujo nome evoca sua função: a chaleira. O serviço do chá é símbolo de acolhida e partilha. Take your time. Participe desta história, escrita aqui por portugueses, brasileiros, chineses e japoneses.
O chá ou chá-da-Índia (Camellia sinensis), Theaceae, é nativo das florestas do nordeste da Índia, confins da China, Birmânia e Vietnã. Após hibernar, com a elevação da temperatura na primavera, surgem os brotos. As folhas tenras são colhidas para a produção de chá. Elas contêm enzimas oxidantes. Colhidas, adquirem cor escura. O chá preto resulta desse processo. No chá verde, as folhas são submetidas ao calor (desativa as enzimas, conserva a cor da clorofila e os componentes ativos) por torrefação (forno) ou cozimento (vapor), método peculiar do Japão.
A origem da palavra chá é chinesa. Seu sinograma é 茶, vocalizado como tza ou tzai. As duas denominações, chá e tê, derivam do mesmo sinograma e existem em várias em línguas. Chá, em português, russo (tchai), grego (tshai), japonês (ochá), árabe (chai), hindu (chai), thai (cha), romeno (cai), ucraniano (chaj), croata (caj), checo (caj), turco (cay), somali (shaah) e, sobretudo, em mandarim (chá) e cantonês (chá). Te, em espanhol, francês (thé), italiano (te), alemão (der tee), holandês (thee), dinamarquês (te), sueco (te), finlandês (tee), norueguês (te), islandês (te), armênio (te), húngaro (tea), hebraico (teh), tamil (tea), indonésio (teh), zulu (itiyé) e, sobretudo, em singalês (thê). Em filipino, as palavras tê e chá se encontram (tsaa) e em polonês, nunca se viram: herbata. Nossa Senhora de Czestochowa!
Existem três lendas sobre a origem do chá. Na versão chinesa, milhares de anos atrás, o lendário imperador Shennong fervia água sob o abrigo de uma árvore para saciar sua sede. Uma brisa agitou os galhos, soltou algumas folhas. Misturadas à água, deram-lhe cor e fragrância. O imperador provou e aprovou: nasceu o chá, 2737 a.C. Na versão indiana, o monge persa BodhiDharma decidiu pregar os preceitos de Buda na China. Para ser digno da missão, jurou não dormir durante nove anos. Só isso. Três anos sem dormir, ficou sonolento. Ia sucumbir ao sono quando colheu folhas de chá selvagem e as mordeu. As virtudes revigorantes fizeram efeito: Dharma animou-se. Viveu acordado os últimos seis anos da missão. Haja teína! Já na versão japonesa, BodhiDharma, exausto, dormiu durante suas devoções. Furioso com sua fraqueza, cortou suas pálpebras e as jogou no chão. Harakiri de pálpebras. Anos depois, suas pálpebras deram à luz um arbusto desconhecido. Ele provou as folhas e percebeu sua propriedade de manter seus olhos abertos. Daí o hábito de cultivar o chá por onde ele andou.
A história do chá é documentada na China. Bebida terapêutica na dinastia Han do Oeste (206 a.C. a 24 d.C.), no fim dos Han do Leste (25-220 d.C.) começou a ser consumida por prazer. Na dinastia Tang (618-907), o chá deixou de ser planta medicinal e se tornou uma bebida popular. Artistas, pintores, ceramistas e poetas criaram um ambiente simbólico sofisticado para o chá. Lu Yu (723-804) redigiu o primeiro tratado, Clássico do Chá (Chá Jing). Nessa obra poética, em dez capítulos, ele descreveu a planta e codificou a forma de preparar e beber o chá. O chá era comprimido em tijolos, assados, pulverizados e misturados à água fervente. Agregavam-se ingredientes: sal, especiarias e manteiga rança. No Tibete, o chá ainda é consumido assim.
A dinastia Song (960-1279) ampliou produção, consumo e comercialização das folhas a granel. A poesia, a cerâmica associada e as regras das cerimônias do chá se tornaram mais sofisticadas. Sob a dinastia Ming (1368-1644), um decreto proibiu a fabricação do chá compactado. O consumo assumiu a forma atual: infusão num recipiente, dando origem a serviços e diversos objetos associados de porcelana. O chá se tornou uma atividade econômica crescente graças à exportação, iniciada na China já no século 10.
No Japão, o chá surgiu no século 7. Monges budistas trouxeram sementes da China. Só no século 15, o chá se difundiu amplamente pelo arquipélago. Sen no Rikyû (1522-1591) foi o primeiro grande mestre do chá, fazendo dele arte e filosofia. A cerimônia do chá (Chá No Yu), complexa e codificada, revela a grandeza existente em cada um dos menores atos da vida cotidiana.
Com a expansão do cultivo, na década de 1930, o Vale do Ribeira chegou a cerca de 600 produtores, 5.000 hectares, 40 indústrias, com 90% da produção exportada
Os portugueses foram os primeiros europeus a chegar ao Extremo Oriente pela via marítima (1498). Logo introduziram o chá na Europa. Estabeleceram por três séculos um rentável comércio para a Coroa Portuguesa, a partir de Macau. Foi uma portuguesa, Catarina de Bragança, esposa do rei Carlos II da Inglaterra (o atual é Carlos III), quem tornou o chá a bebida da aristocracia inglesa. Além da instituição do chá, essa lusitana refinada, filha de D. João IV, Rainha Consorte dos Reinos da Inglaterra, Escócia e Irlanda, de 1662 a 1685, levou aos britânicos a marmelada, a geleia de laranja, o tabaco e o uso dos talheres! Primeiro entre damas da Corte, depois à nobreza e à população. Com as casas de chá, no século 18 ele era a bebida nacional da Inglaterra.
O chá está associado a guerras e disputas. Emigrantes ingleses e holandeses levaram o hábito do chá aos Estados Unidos. O produto foi submetido a pesadas taxas pela Inglaterra. Em 1773, os colonos de Boston decidiram boicotar as importações e lançaram ao mar o carregamento de chá de um barco ancorado no porto (Boston tea party). As represálias inglesas contra a população de Massachusetts levaram à Guerra da Independência dos EUA.
Os chineses, únicos produtores no século 19, impuseram regras rígidas, preços proibitivos, acesso limitado ao Porto de Cantão e recusaram trocar chá contra tecidos ingleses. Na disputa comercial, os ingleses introduziram o ópio na China e o vício. A nova moeda no comércio do chá levou à Guerra do Ópio e culminou com a anexação de Hong Kong pelos ingleses, em 1842.
No século 19, a China não conseguia atender à demanda mundial. Os ingleses criam plantações em 1830 na Índia e no Ceilão em 1857. Quando uma praga destruiu o café do Ceilão, em 1869, o chá tornou-se a fonte de riqueza da ilha. No Brasil, a aventura do chá começou em 1808, com a vinda da Família Real portuguesa e a criação do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
Em 1812, Raphael Bottado de Almeida, senador de Macau, enviou as primeiras sementes para plantio no Botânico. As plantas se aclimataram. O terreno era úmido e inundável (até hoje!), pouco adequado ao cultivo. Em 1814, o conde de Linhares trouxe de Macau cem lavradores chineses, experientes na cultura do chá, para dar dimensão comercial ao plantio. Eles deslocaram o cultivo e o expandiram nas encostas, em direção a Boa Vista. O local mais alto, de onde vigiavam as plantações, ficou conhecido como a Vista dos Chineses ou Vista Chinesa. Em 1844, um mapa da área registrava uma edificação denominada Casa dos Chinas.
O cultivo do chá nas encostas bem drenadas atingiu 6.000 pés. Com três safras anuais, ele passou a ser consumido pela população carioca. Após a colheita, as folhas eram colocadas em fornos de barro. O sucesso inicial da cultura do chá levou a uma expansão. Há registros de cultivo do chá pelos chineses em vasta área da Ilha do Governador, na Fazenda Real Santa Cruz.
O príncipe-regente desejava repetir, no Brasil, o comércio exitoso do chá entre Macau e a Europa. Havia certa euforia com o futuro do cultivo do chá. Em 1816, Johann Baptiste von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius declararam ter o chá carioca aroma excelente, menos o sabor. Num registro iconográfico de Rugendas de 1822, veem-se chineses, com longas tranças e trajes típicos, trabalhando no cultivo do chá. Após a Independência, em 1824, D. Pedro I nomeou o primeiro diretor do Jardim Botânico, frei Leandro do Sacramento, carmelita e botânico. Ele deu grande impulso ao local, restaurou as plantações de chá e logo, na capital do Império, só se bebia chá do Jardim Botânico. Em 1856, o Jardim foi ligado ao Alto da Boa Vista por uma estrada carroçável, por influência do Barão do Bom Retiro. A Fazenda do Macaco de Amélia de Leuchtenberg, cuja casa ainda está no Jardim Botânico, teve cultivo de chá até 1890.
A produção interessou a fazendeiros de Minas Gerais e São Paulo. Em 1840, o cultivo do chá chegou a Minas Gerais, na região de Ouro Preto. Os paulistas também importaram lavradores chineses. Em 1825, o tenente-coronel José Arouche de Toledo Rendon começou o cultivo do chá na cidade de São Paulo. Ele foi o primeiro diretor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (1827 a 1833) e diretor do Jardim Botânico de São Paulo, situado no atual Jardim da Luz. Em São Paulo, chegou-se a 44 mil pés. A propriedade de José Arouche, na zona central da cidade de São Paulo, abrangia do atual Largo do Arouche (nomeado em sua homenagem) até a Praça da República e o Vale do Anhangabaú. Ela tornou-se uma extensa plantação de chá e, depois, deu nome ao Viaduto do Chá, no Anhangabaú.
Em 1852, a produção de chá alcançou a marca de mais de 30 toneladas de folhas secas. Dificuldades criadas pela Inglaterra à exportação para a Europa do chá brasileiro, o baixo custo de produção na China e na Índia, a expansão nacional do café (vendido de forma vantajosa e sem concorrentes) e a Abolição da Escravatura, em 1888 (escassez de mão de obra), levaram ao declínio da teicultura no Brasil, no fim do século 19.
Paradoxo: a mesma escassez de mão de obra contribuiu ao ressurgimento do chá no Brasil. Em 1908, teve início a Imigração Japonesa, para suprir a falta de mão de obra nas lavouras de café. Torazo Okamoto, um desses imigrantes, em 1919 reiniciou o cultivo de chá no Vale do Ribeira (SP). O chá preto era produzido com a variedade chinesa Camellia sinensis var. sinensis. Em uma ida ao Japão, Torazo desembarcou no Ceilão, onde havia a variedade indiana Camellia sinensis var. assamica. Ele trouxe sementes. Por ser proibido, ele as escondeu dentro de um pão. E iniciou a primeira plantação da variedade indiana, cujo tamanho e cujo rendimento eram superiores à chinesa. Até hoje, a família Okamoto detém a conhecida e histórica marca Chá Ribeira.
Com a expansão do cultivo, na década de 1930, o Vale do Ribeira chegou a cerca de 600 produtores, 5.000 hectares, 40 indústrias, com 90% da produção exportada. Na Segunda Guerra Mundial, cessou a exportação do chá proveniente da Índia. Mais um impulso à teicultura. O estabelecimento fabril de Torazo deu origem à construção do Casarão do Chá, em Mogi das Cruzes.
Após a Guerra, com a recuperação dos tradicionais fornecedores asiáticos, fazendas foram vendidas e fábricas fechadas. Aí, o chá de saquinho expandiu o consumo (praticidade), mesmo se as folhas quebradas reduzem a qualidade da bebida. A nova forma de infusão ajudou indústria e exportações até a década de 1990. O acúmulo de problemas econômicos e o pareamento do dólar causaram o declínio da produção. As fábricas no Ribeira encerraram atividades, com exceção da Amaya Chás. Uma década passou, e o chá ressurgiu.
A busca de vida saudável e novos hábitos de consumo contribuíram. Hoje, variedades cultivadas, sistemas de produção, técnicas de colheita e pós-colheita ganharam muita sofisticação. Entre os principais fornecedores de chá estão: Amaya Chás, Sítio Shimada, Sítio Yamamaru e Yamamotoyama. Fundada no Japão, em 1620, a Yamamotoyama trouxe ao Brasil a variedade Yabukita de chá verde (日本), a mais difundida no Japão, e outras como Yutaka Midori e Asatsuyu. Com 200 hectares entre Araucária (PR) e São Miguel Arcanjo (SP), a empresa produz cerca de 800 toneladas (20% orgânicos). A maior parte é exportada ao Japão e aos Estados Unidos.
Para o Sebrae e a Associação Brasileira do Chá, os chás brasileiros são de qualidade: verde, verde em pó, preto, branco, azul (oolong), vermelho (Pu-erh), semi e pós fermentados e blends (laranja, jasmim, chocolate, berries etc.), de produção orgânica, artesanal e industrial, nas mais diversas apresentações. Produtores e locais de cultivo aumentaram. Existem opções de acessórios (bules, canecas e garrafas com infusor, chaleiras, louças…), cursos (Escola de Chá Embahú), webinars, tea tours e livros. Um caminho é o mercado de produtos premium. O chá dividirá cada vez mais a cena com o café e outras bebidas. Pode anotar. De folha em folha, de xícara em xícara.
Leia também “A soja fecha o verão e entra em seu lar”
São sempre interessantes os artigos assinados pelo Dr. Evaristo. Um mestre em todas as áreas do agro.
Além de conhecer, escreve de forma clara.
Obrigado, Mestre.
Excelente seu artigo do chá, bebida que hoje eu aprecio muito, em São Paulo temos o viaduto do Chá.
B
Vontade de tomar um chá agora!
Parabéns pela excelente matéria. Muita informação histórica.
Dr. Evaristo nos brindando com mais uma aula de história.
Já conhecia o episódio do Boston Tea Party e as duas guerras do ópio.
Seu artigo enriqueceu meus conhecimentos.
Mestre Evaristo, com suas inúmeras qualidades, entre as quais destaco a criatividade, supera-se a cada artigo, motivo pelo qual aguardamos, sempre, com ansiedade o próximo número da revista OESTE. Vamos tomar um chá, relendo mais uma obra prima.
Texto MARAVILHOSO!!!!
O conhecimento me traz uma sensaçao maravilhosa de saber de conquista de poder !!
O prof Evaristo me proporciona isso e se supera a cada artigo que publica
Muito obrigada por nos transmitir preciosas informaçoes
Esperando a proxima publicaçao !!!
Mais uma aula extraordinária do Prof. Evaristo, nos apresentando a história do Chá, discorrendo sua trajetória de cultivo na Ásia e Europa, e sua introdução no Brasil. Esta bebida se universalizou, e é um importante produto do Agro, de notáveis propriedades para o consumo humano, e também de convivência social. Todos convidados para o Chá das 5!
Maravilhoso este artigo, eu não sabia a origem do nome “Largo do Arouche” e “Viaduto do Chá” , muito menos sobre o cultivo do chá no Vale do Ribeira.
Obrigado pelas informações.
Texto maravilhoso. Muita história . Japoneses assumiram o trabalho ; amo esses imigrantes e o que fizeram pelo Brasil. Que lindo!
Não perco seus textos. Muito obrigada.
Texto interessantíssimo! Cultura, história e o agro sempre junto ao urbano. Parabéns mais uma vez pela aula que nos proporciona!