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Gênero
Rodrigo Gurgel | Foto: Montagem Revista Oeste/Divulgação
Edição 162

‘O gênero neutro é uma violência contra a língua portuguesa’

Em entrevista a Oeste, o crítico literário e escritor Rodrigo Gurgel fala, entre outros assuntos, sobre a censura à cultura ao longo da história

Vitor Marcolin
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O professor Rodrigo Gurgel é um dos mais proeminentes críticos literários do Brasil contemporâneo. Em seus livros — Esquecidos & Superestimados; Muita Retórica — Pouca Literatura; Crítica, Literatura e Narratofobia; Percevejos, Ideólogos — E Alguns Escritores , Gurgel apresenta ao leitor resenhas, ensaios e análises do panorama literário atual. E, em seus cursos, o professor aborda, entre outros temas, os gêneros conto e crônica. Rodrigo Gurgel foi vencedor do Concurso de Contos Caderno 2, do jornal O Estado de S. Paulo, e, de 2009 a 2012, foi jurado do Prêmio Jabuti. Atualmente, mantém turmas semestrais em sua Oficina de Escrita Criativa.

Em entrevista a Oeste, Gurgel fala sobre a importância do livre debate como principal antídoto à censura. O professor salienta que a proibição de certas palavras ou expressões na literatura prejudica não só a liberdade do autor, mas sobretudo a capacidade do leitor de entender a realidade. Gurgel também analisa o processo de escolha dos livros didáticos pelo Ministério da Educação. “Se a obra não tiver afinidade ideológica com os dirigentes do MEC, ela simplesmente não é aceita”, diz. A censura, como ele explica, é sempre pessoal, sempre subjetiva. E isto é contrário ao propósito da literatura, que é o de elevar e expandir a percepção da realidade. Confira os principais trechos da entrevista.

Rodrigo Gurgel | Foto: Matheus Bazzo/Reprodução
A censura na literatura é algo recente?

A censura é algo antigo. Ela nem sempre esteve presente na história da literatura, mas existia; e existiu sob diferentes formas. Por exemplo: Shakespeare sabia que não deveria escrever a respeito de fatos políticos da sua época, ou citar monarcas ou nobres do seu tempo de maneira jocosa. Mas a censura também ocorreu de forma mais direta e violenta. Veja o caso de Anna Akhmatova, na Rússia Soviética. Não só deixaram de publicar os poemas dela como expurgaram o nome da Anna das enciclopédias e dos livros de literatura. A polícia entrava em seu apartamento todos os dias para verificar se ela havia escrito algo ou não, de maneira que durante um longo tempo a escritora foi obrigada a guardar seus poemas na memória. Para libertar o filho de uma prisão injusta, ela ainda precisou escrever poemas elogiando o próprio Stálin. Um exemplo de censura indireta no Brasil é o Conselho Nacional de Educação , que cria as diretrizes que os livros didáticos precisam seguir. Isso desde o governo FHC. Para que os livros didáticos possam participar das licitações, as editoras precisam cumprir aquilo que está no Plano Nacional de Educação. Então as editoras, há décadas, obrigam os autores a seguir aquelas regras. Isto é uma forma de censura. Assim, todos se submetem alegremente e nós ficamos nesse jogo de uma espécie de censura branca, que ninguém fica sabendo. 

Pintura de Anna Akhmatova, por Kuzma Petrov-Vodkin, 1922 | Foto: Reprodução/Wikimedia Commons
Quem são os maiores prejudicados pela censura na literatura?

Todas as pessoas são prejudicadas, a cultura inteira é prejudicada, porque nós perdemos a voz autêntica de um autor. Ou quando ele é silenciado totalmente, ou quando parte da sua obra é silenciada, ou, como está acontecendo agora, autores já falecidos têm os textos retaliados segundo critérios ideológicos. Quem perde com isso? É a cultura. E perde por quê? Porque acaba a naturalidade do texto, o verdadeiro estilo do autor e o conhecimento de outras épocas em que a cultura era diferente; em que o politicamente correto não existia, em que essas ideologias que querem controlar tudo não tinham poder nenhum. Então a cultura passa a ser uniformizada, a cultura perde as suas características, as suas minúcias, as suas variações de qualidade em nome de quê? De criar uma cultura uniforme que satisfaça esses grupinhos ideológicos.

Recentemente tivemos a tentativa de censura a obras do Monteiro Lobato. Como o senhor viu esse movimento?

Você não pode simplesmente considerar uma obra literária sem contextualizá-la no seu devido tempo. Se nós aceitarmos a modificação das obras de Monteiro Lobato, então precisamos fazer a mesma coisa com, por exemplo, Aluísio Azevedo, que no romance O Cortiço criou um bando de personagens que são todos moralmente corrompidos. Não há uma única pessoa boa em todo o romance. Todos são repletos de vícios, todos representam o que há de pior em termos morais. E então o que faremos? E o que faremos com a cena de Machado de Assis em Memórias Póstumas de Brás Cubas em que ele apresenta o negro Prudêncio, que havia sido o seu escravo — e depois foi alforriado. Prudêncio compra um escravo e o chicoteia no meio da rua, e só para de chicotear quando Brás Cubas intervém. O que faremos com essa cena? O que estou tentando mostrar é que, no fundo, a censura é sempre pessoal, sempre obedece a uma determinada ideologia. Ela sempre é feita sem critérios, a não ser os critérios pessoais.

A linguagem pode ser usada como instrumento ideológico?

Perceba que toda censura interfere na imaginação dos leitores. É evidente. Porque, se você começa a mexer em toda a literatura do passado — tanto do passado recente quanto do passado remoto —, você começa a uniformizar tudo segundo uma única ideologia. E o que acontece? Você destrói a riqueza, a variedade da cultura humana. E se amanhã essa gente decide que Édipo Rei, por exemplo, não pode mais ser reeditada, porque o protagonista da peça é um parricida e um incestuoso que se casou com a própria mãe? Como vamos fazer? Isto é gravíssimo. Que censor controla o censor? E quem disse que essas pessoas que censuram são dignas, isto é, estão capacitadas para fazer isso? Quem deu poder a elas?

Foto: Jorm Sangsorn/Shutterstock
Há meios de reverter essa situação?

Os meios para reverter esse estado de coisas são esses: nós temos de discutir abertamente o problema e insistir que o debate aconteça. Temos de pressionar o Legislativo, o Executivo; temos de criar formas alternativas de nos contrapor ao discurso da mídia que hoje tem a hegemonia; nós temos de bater nessa tecla sempre, constantemente, não aceitando nenhum tipo de censura.

E quanto à “linguagem não binária”, o tal do “gênero neutro”?

Isso é de uma idiotice sem tamanho. É uma violência contra a língua portuguesa. A língua está em constante mudança naturalmente, ela muda por si mesma de acordo com o tempo, com a cultura, com a História, com os acontecimentos sociais. Esse é o desenvolvimento natural de qualquer língua. Mas o que estão tentando fazer é uma imposição ideológica e inaceitável, porque fere a lógica da língua portuguesa, fere os fundamentos do idioma, fere, inclusive, a própria origem da língua. Estão, portanto, descaracterizando o idioma em nome não do seu aperfeiçoamento, mas, mais uma vez, de satisfazer essa sanha, essa fome desses grupos sociais que se pretendem donos da verdade. O que não deixa de ser uma forma de censura, sem dúvida; censura sobre o nosso discurso.  

linguagem neutra
Foto: Juliana Vitória/Freepik

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5 comentários
  1. Deus Carmo
    Deus Carmo

    No meu romance Noite em Paris que publico no blogue de mesmo nome aborda-se este assunto, como censura que castra a liberdade de expressão e aniquila a criatividade. Resta se os corifeus deste pensamento vai exigir também linguagem neutra para a Bíblia, o Bhagava-gîta e outros textos sagrados. Se for assim terão de destruir não só a literatura, mas toda a arte produzida pelo homem ao longo de sua história.

  2. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    Os esquerdopatas identitários estão tentando destruir o nosso idioma, um dos maiores patrimônios que temos.

  3. Leidi
    Leidi

    Excelente reportagem!

  4. Ramon
    Ramon

    Com a ‘desedução’ em andamento no Brasil, essa ideologia nefasta, autoritária e louca é facilmente difundida.
    Não temos cidadãos letrados e capazes de um raciocínio lógico, apenas acéfalos(meio alfabetizados ou alfabetizados segundo a cartilha progressista) que respondem no máximo a palavras gatilho.

    Obrigado pela reportagem. Também gostaria de a integra dessa pela prosa.

  5. Joviana Cavaliere Lorentz
    Joviana Cavaliere Lorentz

    Parabéns! Mas gostaria de ter o prazer de ouvir toda a entrevista.

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