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Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock/Divulgação
Edição 166

O mundo dos negócios entra em campo

Clubes-empresas deixam para trás modelos de gestão ultrapassados e começam a tratar o futebol brasileiro como business

Anderson Scardoelli
Edilson Salgueiro
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Torcedores de um tradicional time de futebol vão ao aeroporto para recepcionar o novo ídolo. O herói é ovacionado, recebe gritos de incentivo e posa para fotos segurando a bandeira do clube. A cena, que ocorreu no Brasil no início do ano passado, não tinha como protagonista um craque da bola. Em vez de um goleador recém-contratado, o alvo dos holofotes era o empresário norte-americano John Textor, que desembarcou no Rio de Janeiro para assinar um acordo de Sociedade Anônima do Futebol (SAF) com o Botafogo.

John Textor | Foto: Vítor Silva/Botafogo

A história envolvendo Textor e o Botafogo não é a única relacionada às SAFs, sigla pela qual é conhecido o modelo de clube-empresa que ganha cada vez mais espaço no futebol brasileiro. De 2022 para cá, outros clubes de tradição — com conquistas internacionais e milhões de torcedores — recorreram ao novo modelo de gestão esportiva. O Cruzeiro é exemplo disso. Em abril do ano passado, o formato de sociedade da equipe mineira saiu de campo e foi substituído pela SAF liderada pelo ex-atacante Ronaldo Nazário, o Fenômeno.

Em setembro do ano passado foi a vez de o fundo de investimentos 777 Partners, com sede em Miami, assumir o controle do Vasco da Gama. Neste ano, Bahia e Coritiba trilharam o mesmo caminho. Há ainda outros cases de sucesso: fundado há mais de 20 anos como clube-empresa, o Cuiabá, de Mato Grosso, virou SAF em 2021. Já o RB Bragantino, em atividade no país desde 2008 e instalado em Bragança Paulista há dois anos, é parte de um projeto global da companhia austríaca de energéticos Red Bull.

A profissionalização dos clubes permitiu que antigos dirigentes fossem escanteados e abrissem espaço para executivos modernos. Antes de ser comprado por Ronaldo, por exemplo, o Cruzeiro enfrentava tempos difíceis: estava na segunda divisão havia três anos, tinha mais de R$ 1 bilhão em dívidas e sofria punições da Federação Internacional de Futebol (Fifa). A equipe não conseguia honrar compromissos fundamentais, como pagar pela compra de jogadores. No Vasco da Gama, por sua vez, os investidores assumiram uma dívida de aproximadamente R$ 700 milhões.

Ronaldo Fenômeno | Foto: Reprodução redes sociais

Mas quais são as diferenças entre os modelos antigos de administração e as SAFs? Os primeiros, conhecidos como associações civis, não têm fins lucrativos e permitem que cada clube tenha seu conjunto de regras, chamados de estatutos. Por meio deles são definidas as eleições para a presidência, para a diretoria e para os conselhos. Nesse sistema há uma espécie de “politização” da administração dos clubes. Interessados em benesses, conselheiros e diretores podem barganhar com o presidente. Este último tem como recompensa sucessivas vitórias nas eleições, fruto do apoio daqueles que receberam os “benefícios”. Pouco importam os resultados esportivos e o lucro.

As SAFs, por sua vez, transformam as associações civis sem fins lucrativos em empresas que buscam retorno financeiro. A Lei 14.193, promulgada em 2021, abre espaço para que investidores comprem de forma total ou parcial as ações de um clube de futebol — como ocorreu com o Cruzeiro e o Vasco, por exemplo. Assim como no mercado de capitais, os investidores das SAFs podem receber dividendos em caso de lucro. Mas também há regras. Uma delas é que o acionista-controlador de SAF não pode ter participação em dois clubes-empresas do Brasil. Para as SAFs que tiverem receita anual superior a R$ 78 milhões, tornam-se obrigatórias as publicações de “convocações, atas e demonstrações financeiras” dos clubes, que devem ser mantidas em seus respectivos sites por dez anos. Nesse modelo de gestão não há a possibilidade de barganha entre acionistas e executivos, porque ambos os grupos buscam os mesmos objetivos: resultado esportivo e lucro.

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As vantagens desse modelo de gestão também são visíveis dentro das quatro linhas do campo. A principal delas é a meritocracia. Sem dinheiro em caixa nem bons resultados esportivos, o Cruzeiro descartou jogadores com altos salários. O técnico Vanderlei Luxemburgo, por exemplo, que havia treinado o Fenômeno na Seleção Brasileira e no Real Madrid, da Espanha, foi demitido em meio à transição da SAF. Nem os principais ídolos da equipe foram poupados. Atleta que mais atuou com a camisa cruzeirense na história, com mais de 900 jogos, o goleiro Fábio não teve o contrato renovado por causa do salário.

Dívidas versus investimentos

Das SAFs brasileiras, o Cruzeiro não é o único a pensar em diminuir as dívidas. Segundo levantamento divulgado neste mês pela Sports Value, empresa especializada em marketing esportivo, a dívida total do Botafogo reduziu cerca de 15% de um ano para o outro, recuando para quase R$ 730 milhões. Ainda assim, o time carioca é o sexto do país no ranking dos maiores endividados. O líder nesse quesito é o Atlético Mineiro, com R$ 1,5 bilhão em dívidas. Este último discute a mudança de gestão para SAF e a consequente venda para grupos de investidores.

Também há espaço para investimento nas SAFs. Textor, do Botafogo, comprometeu-se a injetar R$ 400 milhões na equipe carioca. Na gestão futebolística do Vasco, a 777 Partners avisou que pode investir até R$ 700 milhões. Já o Grupo City, responsável pela SAF do Bahia, indicou a pretensão de aportar até R$ 1 bilhão. Mas não para aí. Apenas na soma das contratações de 2020 e 2021, o Red Bull investiu mais de R$ 100 milhões no Bragantino.

“A principal dificuldade enfrentada pelo mercado é a insegurança jurídica”

Apesar das vantagens dos clubes-empresas, o ex-repórter da Rede Globo e criador do projeto Lei em Campo, Andrei Kampff, afirma que somente a profissionalização não basta. “Importante é entender que o caminho indispensável para todos os clubes é o da profissionalização da gestão, investindo em conformidade, governança e integridade”, disse. “Esse caminho pode ser tomado no modelo associativo e no modelo empresarial. O modelo empresarial traz menos freios políticos e, com boa gestão, possibilidades maiores de atrair investidores.”

Josh Wander, Sócio da 777 Partners; Jorge Salgado, presidente do Vasco da Gama, e Juan Arciniegas, diretor de esportes, mídia e entretenimento da 777 Partners | Foto: Divulgação
Um bom produto para o futebol brasileiro

A presença das SAFs também é positiva para o Brasil em termos de mercado, avalia o advogado Gabriel Caputo, especialista em Direito Desportivo e sócio do escritório Caputo, Bastos e Serra Advogados. “Acredito que esse movimento de profissionalização e adoção de gestão empresarial por parte dos clubes é positivo para o futebol brasileiro enquanto produto”, observou. Caputo pondera, entretanto, que o país terá de lidar com a insegurança jurídica sobre o tema. Isso porque as decisões do Judiciário referentes às dívidas dos clubes, registradas ainda nos tempos de associação, podem afastar novos investimentos. É desta maneira que ocorre no mundo dos negócios: em ambientes nos quais as regras são incertas, os investidores preferem segurar os investimentos. “A principal dificuldade enfrentada pelo mercado na transformação das SAFs é a insegurança jurídica, visto que há dificuldade em torná-las responsáveis por dívidas contraídas nos modelos de gestão antigos”, disse. “Até o momento, existem decisões judiciais em ambos os sentidos. Essa insegurança gera críticas e pode desencorajar investidores, especialmente os estrangeiros.” 

A SAF também se apresenta como um bom produto fora de campo. Em artigo publicado em janeiro de 2022, por exemplo, quando as SAFs do Botafogo e do Cruzeiro já estavam encaminhadas, o professor e escritor Fernando Morgado e o pesquisador de marketing e estratégia Fernando Antunes ressaltam que os times do Brasil podem se inspirar em clubes do exterior para ganhar mais projeção — e dinheiro — por meio de ações midiáticas. De quais maneiras? “Venda de direitos de transmissão, de espaço nos uniformes, de nome de estádio, de placas no gramado e de posts nas redes sociais”, respondem Morgado e Antunes. “O conteúdo vem de muitos lugares (das coletivas de imprensa aos jogos), toma distintas formas (de podcasts a vídeos) e distribui-se de múltiplas maneiras (de redes de TV a plataformas de streaming). Isso ocorre tanto por veículos de terceiros, o que envolve a comercialização de direitos, quanto por canais próprios. Benfica, FC Porto, Manchester United e New York Yankees, por exemplo, criaram seus próprios canais de televisão: Benfica TV, Porto Canal, MUTV e YES, respectivamente.”

MUTV, o canal de televisão do Manchester United | Foto: Divulgação
Chance para projetos valiosos

Com esse valor midiático e com a expectativa de altos investimentos, as SAFs podem ajudar a impulsionar o valor de marca dos times brasileiros. Por que não trabalhar para compor a lista dos clubes — ou franquias esportivas — mais valiosos do mundo? No ranking divulgado em março pelo Sportico, site especializado em negócios no esporte, o Flamengo (modelo associativo) foi o único do país no top 50: 46ª posição, avaliado em US$ 540 milhões. Ou seja, o melhor brasileiro é 11 vezes menos valioso que o líder da lista, o Manchester United (Inglaterra), avaliado em US$ 5,95 bilhões. A diferença fica ainda maior quando consideradas as franquias das principais ligas esportivas dos Estados Unidos. Na lista de 2022 da revista Forbes, o Dallas Cowboys, da Liga Norte-Americana de Futebol Americano (NFL), foi avaliado em U$$ 8 bilhões. Esse valor se dá principalmente em razão dos bilionários acordos de direitos de transmissão.

 “No longo prazo, o grande ganho será com a recuperação dos clubes brasileiros”

Público para capitalizar recursos não falta aos times de futebol mais tradicionais do Brasil. Com exceção de Flamengo e Corinthians, que seguem como associações sem fins lucrativos, recentes estudos indicam potencial para aqueles que seguiram o caminho da SAF. De acordo com levantamento realizado em abril pela consultoria Quaest, o Cruzeiro conta com 5% de todos os torcedores do país. O Vasco da Gama, por sua vez, surge com 3%. Já o Bahia aparece com 2%. Ou seja, as torcidas desses três clubes-empresas se aproximam de 11 milhões, 6,5 milhões e 4 milhões, respectivamente. Essa base de adeptos deve fortalecer as SAFs no longo prazo, segundo Caputo. “O benefício imediato e ansiosamente esperado pelo torcedor é a injeção de capital por parte dos investidores para a contratação de grandes jogadores”, salientou. “O objetivo é conquistar títulos. No longo prazo, o grande ganho será a recuperação dos clubes brasileiros, o que só será possível com a adoção de modelos de gestão profissional. Isso pode ser implantado independentemente da natureza jurídica — associação ou SAF.”

Não basta se tornar clube-empresa

Tornar-se SAF pode ser o primeiro passo dos clubes brasileiros rumo à profissionalização. Mas não deve ser o único, ressalta Kampff. “O que não pode é acreditar que basta fazer a migração jurídica, do modelo empresarial para o empresarial, e pronto: seus problemas acabaram”, observou. “Não. A SAF não é ‘pó de pirlimpimpim’. É o caminho jurídico para implementar um novo modelo de clube.” 

Andrei Kampff | Foto: Divulgação

Caputo pensa de forma similar a Kampff. “O que pode fazer o país tornar-se ainda mais atrativo para receber investimento é a reestruturação dos clubes de futebol”, considerou. “Mesmo enquanto associação civil sem fins lucrativos, o que gera a valorização é a maximização do valor de investimento.”

Futuro: era do torcedor-investidor?

Divulgar trimestralmente os balanços financeiros, passar por auditoria externa e ter política de comunicação dos chamados fatos relevantes, como a mudança de presidente e a compra de uma outra empresa. Essas são algumas atribuições legais de companhias de capital aberto, com ações listadas na Bolsa de Valores. Com investimentos e gestão cada vez mais profissional, esse pode ser o futuro dos times de futebol brasileiros. “Recentemente, a Treecorp anunciou a aquisição de 90% das ações da SAF do Coritiba”, disse Caputo, ao lembrar da ascensão das sociedades anônimas no país. “Trata-se de um fundo de investimento que tem empresas como Zee.Dog e Tania Bulhões em seu portfólio. É o primeiro investimento desse grupo no mercado de futebol.”

Foto: Divulgação/Coritiba

O que surge como novidade no Brasil já é comum no exterior. O Manchester United, da Inglaterra, tem papéis negociados na Bolsa de Valores de Nova Iorque. Juventus, Roma e Lazio contam com ações na Bolsa da Itália. O escocês Celtic tem capital aberto na Bolsa de Londres, enquanto o alemão Borussia Dortmund possui ativos na Bolsa de Frankfurt. Benfica, Porto e Sporting têm papéis na Euronext Lisboa.

“Cada vez mais clubes e investidores buscarão alternativas que melhor atendam às suas realidades”, disse Caputo, ao observar que o país tende a se aproximar da era do “torcedor-investidor”. “Dentro dessas opções, é possível que clubes brasileiros sejam listados na Bolsa de Valores. Para tanto, devem cumprir com todas as exigências legais.” Até lá, tem muito jogo pela frente.

Leia também “A política da bola”

1 comentário
  1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Sou consumidor do futebol, e favorável a nova era do torcedor-investidor.

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