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Ilustração: Shutterstock
Edição 168

Como a arrogância ameaça a liberdade

A humildade nos coloca em contato mais próximo com a realidade. Enxergamos com mais clareza como dependemos da cooperação para a nossa existência

Barry Brownstein
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Em Capitalismo e Liberdade, seu livro de 1963, Milton Friedman afirmou: “A humildade é a virtude característica de quem acredita na liberdade; e a arrogância, a do paternalista”. 

Hoje, existem muito mais paternalistas arrogantes que nem sempre vestem a camisa socialista ou progressista. Eles criam pouco e exigem muito daqueles que agregam valor à vida dos outros. Como escreveu Friedman, o sistema de crenças no qual vive o arrogante é uma grave ameaça à liberdade.

Em meus muitos anos lecionando liderança, notei como, para algumas pessoas, a humildade não parece ser uma virtude que valha a pena cultivar. Esses indivíduos se preocupam com o risco de que os outros tirem vantagem deles e têm medo de se prejudicar caso sejam humildes. 

Milton Friedman | Foto: Wikimedia Commons

Virtudes são estados da mente que não mapeiam comportamentos específicos, e a humildade não significa se submeter aos outros rotineiramente. Assim como a arrogância, a autodepreciação também é insistir em ser algo que você não é. 

A humildade nos coloca em contato mais próximo com a realidade. Enxergamos com mais clareza como dependemos da cooperação para a nossa existência. Enxergamos como somos ignorantes, como nosso conhecimento útil é limitado. Enxergamos quanto recebemos em comparação com quanto contribuímos. Todos usufruímos do que foi construído pelos outros que viveram antes de nós. Ficamos fascinados com a majestade do que a ordem espontânea criou. Quando estamos em contato com a realidade, é impossível não nos sentirmos gratos. O sofrimento ocorre quando vivemos em desacordo com a realidade. Quando viramos as costas para a realidade, a humildade ajuda a restaurar nossa orientação. 

Quanto mais humildade cultivamos, mais conseguimos despersonalizar nossas interpretações da vida. Essa mudança de ponto de vista facilita o convívio e nos ajuda a defender a liberdade. 

Por Zoom, minha mulher e eu fazemos um clube do livro com nossos filhos adultos. Toda semana analisamos juntos alguns capítulos de obras que vão desde The Road to Serfdom, de F.A. Hayek, até Atomic Habits, de James Clear. Recentemente finalizamos Leave Me Alone and I’ll Make You Rich, de Deirdre McCloskey e Art Carden.

Livro Leave Me Alone and I’ll Make You Rich | Foto: Divulgação

Lendo os últimos capítulos de Leave Me Alone, a ficha caiu para nossa filha. Ela se deu conta de que a “mão invisível não é pessoal”. McCloskey e Carden citam John Stuart Mill em Sobre a Liberdade: “A sociedade não admite nenhum direito, legal ou moral, dos competidores desapontados à imunidade contra esse tipo de sofrimento; e é chamada a interferir apenas quando os meios de sucesso que foram empregados tiverem sido contrários aos que os interesses gerais permitem — a saber, fraude ou deslealdade e força”.

Nenhum indivíduo, nenhuma atividade comercial tem direito a tratamento especial. A mão é invisível, ela não demonstra favoritismo. A ordem espontânea não vai nos favorecer, mas vai nos ajudar a voar. Em “Cosmos and Taxis”, Hayek explica que ordens espontâneas “não têm um propósito específico” e não são criadas por grandes autores intelectuais. No entanto, explica ele, a ordem espontânea “pode ser extremamente importante em nossa busca pelo sucesso” de nossos propósitos.

Recebemos uma ferramenta de valor imenso, mas alguns querem mais. Eles querem ser favorecidos para além dos demais. Querem garantias que a ordem espontânea nunca vai oferecer. 

Friedrich Hayek | Foto: Wikimedia Commons

Entendemos por que algumas pessoas desdenham a ordem espontânea. Elas acreditam em autores intelectuais. E acreditam que seus projetos são especialmente merecedores e, por meio do processo político, desejam obter recompensas que não receberiam de outra forma.

A única maneira de ser reconhecido nos mercados é fornecer um bem ou serviço que os outros valorizam. Explicam McCloskey e Carden: “O inovador burguês obtém lucro, e o próprio jantar, respeitando a dignidade dos demais. Ele trabalha não pela coerção dos demais em violenta “concorrência”, mas fazendo uma oferta para o cliente que ele ou ela possa aceitar ou rejeitar”. 

Enfrentamos uma escolha fundamental sobre como ordenar a sociedade: decidimos que algumas pessoas e empresas são especiais ou respeitam a dignidade de todos. McCloskey e Carden escrevem que “a alternativa ao respeito da dignidade intelectual é decidir questões econômicas coletivamente, por meio do governo; um governo tomado pela ‘concorrência’ política”. Os autores questionam poderes coletivistas, perguntando se “é possível confiar que um governo com tamanhos poderes não vá usá-los para a ‘proteção’ dos mais favorecidos”. 

Deirdre McCloskey | Foto: Wikimedia Commons

A resposta, como sabemos, é “não”. Em um discurso de 1977, Milton Friedman argumentou que os “dois maiores inimigos da livre-iniciativa nos Estados Unidos, na minha opinião, são, de um lado, meus colegas intelectuais e, do outro, as corporações deste país”.

“Todo intelectual”, argumenta Friedman, “é a favor da liberdade para si e contra a liberdade para todos os demais”. Sobre as corporações, Friedman observa: “Toda empresa é a favor da liberdade para todos, mas, quando se trata de si mesmo, a história é outra”. Líderes corporativos argumentam que suas atividades são especiais: “Precisamos ter essa contingência para nos proteger da concorrência vinda de fora. Precisamos ter uma provisão especial no código tributário. Precisamos ter esse subsídio”. 

Com tantas pessoas achando que são especiais, nas palavras de Hayek, existe uma “dificuldade [para] encontrar apoio genuíno e desinteressado para uma política sistemática em defesa da liberdade”. 

Ilustração: Shutterstock

Aqueles que exigem tratamento especial em processos impessoais, anônimos e incontroláveis carecem de humildade. Eles querem crédito por suas conquistas e culpam os outros quando seus objetivos não são alcançados. Com tanta arrogância, a liberdade de fato é impossível. 

Todos temos o poder da escolha, e culpar os outros por não conseguirmos exercer essa liberdade é o ápice da arrogância

Hayek explica que “uma civilização complexa como a nossa se baseia necessariamente no ajuste pessoal do indivíduo às mudanças cujas causas e cuja natureza ele não consegue entender”. Aqueles que carecem de humildade “vão colocar toda a culpa [pelos resultados de que não gostarem] em uma causa imediata e evitável óbvia, enquanto inter-relações mais complexas que determinariam a mudança continuarão inevitavelmente ocultas para eles”.

Um alerta em The Road to Serfdom não deve ser menosprezado. “Uma recusa em se submeter a qualquer coisa que não consigamos entender vai levar à destruição da civilização”, escreve Hayek. A arrogância tem consequências. 

Livro The Road to Serfdom | Foto: Divulgação

Pode parecer que as mesmas pessoas que precisam praticar mais humildade são as menos abertas ao poder de sua virtude. Mas essa é uma ideia equivocada. Todos temos o poder da escolha, e culpar os outros por não conseguirmos exercer essa liberdade é o ápice da arrogância. Podemos praticar enxergar nossas próprias necessidades de tratamento especial. 

Se carecemos de humildade hoje, esse não é um traço permanente de caráter. Como a professora de filosofia Iskra Fileva escreveu, o caráter “não é um conjunto de disposições estáveis e unificadas”. Fileva oferece um poderoso conselho para aqueles que buscam exercitar as virtudes de forma consistente. Ela observa: “A unidade no caráter é uma conquista. E temos mais chance de fazer essa conquista se a tratarmos como um objetivo, em vez de um estado existente das coisas”. Só podemos melhorar “se fizermos um esforço”. Nosso caráter é uma obra em andamento, assim como a sociedade livre que ajudamos a criar.

O coletivismo imbuído no mundo está em conflito com a realidade. Nossa soberba, também em conflito com a realidade, possibilita o coletivismo. No entanto, não estamos impotentes. Podemos parar de nos enganar. Podemos enxergar os limites da nossa mente e sentir gratidão pelo tanto que a ordem faz por nós. Podemos cultivar a curiosidade sobre processos espontâneos e perder como a cooperação humana cria milagres. Se “a humildade é a virtude distinta daquele que acredita na liberdade”, podemos hoje nos tornar mais cientes da nossa arrogância e, com prática, nos voltar para a realidade.


Barry Brownstein é professor emérito de economia e liderança na Universidade de Baltimore. Ele é autor de The Inner-Work of Leadership, e seus artigos apareceram em publicações como Foundation for Economic Education e Intellectual Takeout. Para receber seus textos, visite mindsetshifts.com

Leia também “A América não vai abrir mão de seus ideais”

1 comentário
  1. Luis Ricardo Zimermann
    Luis Ricardo Zimermann

    Impressionante como o artigo parece ter sido desenvolvido para explicar a mediocridade econômica e social brasileira!

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