“O fato de ‘demônios’ serem predominantemente figuras cômicas na imaginação dos homens modernos será de grande ajuda. Se a menor suspeita da sua existência começar a surgir na mente dele, evoque a imagem de um ser trajando roupa colante vermelha, e convença-o de que, já que ele não pode mesmo acreditar numa coisa dessas, ele não pode, portanto, acreditar na sua existência. Este é um método antigo para confundi-los, tirado de um velho manual.”
(C.S. Lewis, Cartas de um Diabo a seu Aprendiz)
“A tradição ocidental é caracterizada por duas tendências, uma dominante frente à outra recessiva. A dominante, ‘ortodoxa’, pode ser identificada, grosso modo, com o Cristianismo. A recessiva, ‘herege’, pode ser identificada, grosso modo, com o maniqueísmo. A história do pensamento ocidental pode ser encarada como luta intrincada entre estas duas tendências, cabendo, via de regra, aos elementos judeus e latinos a defesa da ortodoxia, e aos elementos germânicos, eslavos e orientais a defesa da heresia. Para a ortodoxia, o Ser transcende as aparências, para a heresia o Ser se resume nas aparências. Como ambas usam a nomenclatura da ortodoxia dominante, podemos dizer que a ortodoxia luta por Deus e a heresia pelo diabo”
(Vilém Flusser, A História do Diabo)
Nefarious, um filme independente recém-lançado, escrito e dirigido por Chuck Konzelman e Cary Solomon, tem movimentado os meios conservadores nos últimos meses. Baseado no romance A Nefarious Plot, do apresentador norte-americano e ativista cristão Steve Deace, o filme tem como trama central o diálogo entre um prisioneiro condenado à morte por homicídios em série e um psiquiatra incumbido de decidir sobre a condição mental do criminoso — que se dizia possuído por um demônio de nome Nefarious (“Nefasto”) — e, portanto, sobre sua elegibilidade para a pena capital.
Na condição de ateu, e sentindo-se muito seguro em sua visão secular, progressista e triunfalista do mundo, de início o psiquiatra rejeita categoricamente a hipótese de possessão demoníaca, concentrando-se apenas na alternativa entre insanidade real ou fingida. À medida que o diálogo avança, contudo, seu ar blasé começa a desvanecer, sobretudo porque o possesso demonstra conhecer fatos íntimos da vida do interlocutor — incluindo pecados mal recalcados por elaboradas racionalizações, como a eutanásia de sua mãe e o aborto realizado por sua namorada — no decorrer do mesmo diálogo, ambos os procedimentos sugeridos pelo próprio psiquiatra, ansioso por se livrar desses incômodos obstáculos à sua liberdade individual. Reconhecendo “pelo cheiro” cada animal do seu rebanho (como diz o diabo de Georges Bernanos em Sob o Sol de Satã), o maligno fareja a fraqueza espiritual da presa. Ciente da impossibilidade de atingir Deus (“o Inimigo”) diretamente, tenta atingi-lo por meio de Suas criaturas mais amadas, levando-as todas para o Inferno. Assim é que, na condição de ghost writer, Nefasto propõe ao psiquiatra que seja autor do seu manifesto, um documento em prol da “liberdade” de todos os homens contra a “escravidão” promovida por Deus.
Entre críticos cristãos e conservadores, o filme Nefarious tem sido elogiado por apresentar com maestria o componente espiritual das disputas políticas no mundo de hoje. Por meio do personagem do psiquiatra ateu — vaidoso da própria superioridade moral, e crédulo, como soam ser os autoproclamados progressistas, na excelência civilizacional de sua própria época histórica —, o filme retrata bem a particular vulnerabilidade da alma contemporânea diante das tentações do Mal absoluto, manifesta, sobretudo, na completa descrença em relação à sua existência, e no consequente desprezo pela graça que a poderia salvar da danação eterna. Nesse sentido, destaca-se no roteiro a breve aparição de um padre esquerdista, do tipo que, como dizia Nelson Rodrigues acerca de Dom Hélder Câmara, “só olha o céu para saber se leva ou não o guarda-chuva”. Trajando uma estola nas cores do arco-íris, porta-voz de uma pretensa “evolução” doutrinal segundo a qual esse papo de Inferno estaria ultrapassado, o sacerdote chancela o ceticismo do cientista e descarta a presença do maligno. Assim, afora um ou outro excesso de didatismo, quando soa programático, o filme tem mesmo o mérito apontado, o de sublinhar a dimensão religiosa da política, notadamente a atuação demoníaca via política.
Mas, se talvez não seja muito comum no cinema, que tende a optar pelo espetaculoso, essa demonologia perspicaz é conhecida nas letras. Na literatura de ficção, para ficarmos apenas num exemplo, poderíamos mencionar o clássico Cartas de um Diabo a seu Aprendiz, de C.S. Lewis, obra que, embora de caráter humorístico e satírico, parece ter inspirado os roteiristas de Nefarious (por exemplo, no modo como o demônio se refere a Deus como “o Inimigo”). No livro de Lewis, para quem a nossa época caracteriza-se por ter posto “Deus no banco dos réus”, temos uma descrição teologicamente perfeita das técnicas satânicas de manipulação e indução àquilo que Albert Camus chamou de “revolta metafísica”.
Saindo da literatura de ficção e entrando na filosofia, aliás, é o próprio Camus quem, em seu O Homem Revoltado, oferece-nos o resumo do velho conflito que, embora se nos afigure como eminentemente político, tem origens espirituais demasiado claras. “A história da revolta, no mundo ocidental, é inseparável da história do Cristianismo” — escreve Camus. Uma avaliação compartilhada, entre outros, por estudiosos como o cientista político John Gray: “O declínio do Cristianismo segue pari passu a ascensão do utopianismo revolucionário”. O sociólogo Luciano Pellicani: “O gnosticismo é a tradição de pensamento soteriológico surgida inicialmente no seio do Cristianismo primitivo, e reemergida periodicamente no subsolo da civilização ocidental tal qual um rio subterrâneo”. Ou ainda Kurt Rudolph, especialista em religião comparada: “Pode-se quase dizer que a gnose acompanhou a Igreja como uma sombra”.
De acordo com Camus, a “revolta metafísica” é o movimento pelo qual um homem se insurge contra a sua própria natureza. Ela é metafísica porque contesta os fins do homem e da Criação. Essa revolta, Camus também sublinha, aparece em sua forma mais acabada e coerente no século 18, quando surge, na França revolucionária, o fenômeno do milenarismo secular, que coloca o Homem no lugar da divindade. Como observa Tocqueville em O Antigo Regime e a Revolução: “A revolução francesa é, pois, uma revolução política que operou à maneira, e assumiu o aspecto, das revoluções religiosas. Note-se por quais traços particulares e característicos ela veio a parecer-se com as últimas: ela não apenas se difunde como aquelas, mas, como elas, penetra por meio da pregação e da propaganda. Uma revolução política que inspira o proselitismo”.
O milenarista secular é, fundamentalmente, um revoltado metafísico. Mas, ao contrário do que se pode imaginar, ele não é necessariamente um ateu, mas, antes de tudo, um blasfemo: “Ele blasfema, simplesmente em nome da ordem, denunciando Deus como o pai da morte e o supremo escândalo” — escreve Camus. Não se trata, portanto, de negar Deus pura e simplesmente. Trata-se, essencialmente, de substituí-Lo. “O homem acredita quer num deus, quer num ídolo. Não há uma terceira opção”, dizia Max Scheler.
Karl Marx é um célebre exemplo de adoração à rebeldia de Prometeu e Lúcifer. No prefácio de sua tese de doutorado, Prometeu é caracterizado como “o primeiro dos mártires”
O demiurgo do milenarista secular é Prometeu, que roubou o fogo celestial e o trouxe para a Terra por amor aos homens. E também Lúcifer, o anjo rebelde. Uma espécie de luciferismo cultural aparece de modo constante, por exemplo, na história do Romantismo, quando quase todo dândi gostava de se apresentar como discípulo de Satã. O poema de Milton, Paraíso Perdido, é um símbolo perfeito da veneração romântica ao anjo rebelde. “O que fez com que Milton” — disse certa vez William Blake — “escrevesse constrangedoramente quando falava dos anjos e de Deus, e cheio de audácia quando tratava de demônios e do inferno, é que ele era um verdadeiro poeta e, sem que o soubesse, do partido dos demônios”. Inspirado por Lúcifer, o herói romântico sente-se obrigado a fazer o mal por nostalgia de um bem impossível. O príncipe do Mal teve que escolher esse caminho porque o Bem era uma noção criada por Deus para fins injustos — eis o sentido da revolta faustiana e romântica, que inspirou as ideologias revolucionárias ao longo do século 20.
Karl Marx é um célebre exemplo de adoração à rebeldia de Prometeu e Lúcifer. No prefácio de sua tese de doutorado, Prometeu é caracterizado como “o primeiro dos mártires”. Em um capítulo de seu Rumo à Estação Finlândia, Edmund Wilson comenta: “Durante toda a vida de Karl Marx, a figura de Lúcifer estaria por trás de Prometeu: o lado reverso e malévolo do rebelde benfeitor do homem”. Num de seus poemas de juventude, Marx retratava um violinista louco que dizia: “É o Demônio que marca o tempo para mim, e é a Marcha da Morte a música que tenho de tocar”. Noutro poema, lemos que “por ter descoberto o altíssimo, e por ter encontrado maiores profundezas através da meditação, sou grande como Deus, envolvo-me em trevas como Ele”.
Mas a visão de Prometeu como mártir e patrono do humanismo consiste, antes de tudo, numa distorção do sentido original conferido por Ésquilo em Prometeu Acorrentado. Levada adiante não apenas por Marx, mas por vários outros intérpretes do mito, essa interpretação consiste na ênfase exclusiva nas famosas palavras do herói — “odeio todos os deuses” —, como se se tratasse de um monólogo, quando, na verdade, a fala se dá no contexto de um diálogo com os deuses. Omite-se aí a resposta de Mercúrio: “Tens a razão conturbada, bem se vê; o mal é violento”.
Como mostra Eric Voegelin, Ésquilo utiliza o termo grego nosos, empregado como sinônimo de nosema, com o sentido de uma doença espiritual que pode significar tanto “ódio aos deuses” como “estar sob o domínio das paixões”. A omissão de Marx e de tantos outros prometeístas impede-nos, assim, de apreciar o fato de que o dramaturgo grego pretendeu representar o ódio aos deuses como uma forma de loucura. Ou seja, a interpretação revolucionária/secularista do mito simplesmente inverte-lhe o sentido original. Antes da vitória de Prometeu e do destronamento dos deuses, tratava-se, ao contrário, de sua derrota, causada por um acesso de insanidade. O herói terminaria acorrentado, tendo ignorado a advertência do deus Mercúrio, que se dirige então às ninfas do mar, porta-vozes e cúmplices de Prometeu: “Se a calamidade que se aproxima vos atingir, não acuseis a sorte… nem digais que Júpiter vos feriu com imprevistos golpes de violência. De vós, tão somente, será a culpa. Fostes em tempo avisadas! Não será, pois, por falta de luzes, ou de tempo, que sereis imprudentemente arrastadas pela rede das desgraças”.
O orgulho de Prometeu é o pecado de Lúcifer, que, desde o Éden, ele procura — e consegue — incitar nos homens. Não é uma simples coincidência o fato de que, ao longo da história, o Cristianismo tenha sido o principal inimigo de qualquer variedade de messianismo político e, por isso, venha sendo alvo de ataques constantes por parte desses movimentos. Isso se dá, entre outros motivos, porque a antropologia cristã afirma precisamente o contrário da antropologia gnóstica: a incapacidade humana de obter a salvação por seu próprio esforço. Como diz J. L. Talmon, exímio conhecedor dos messianismos políticos contemporâneos:
“Todas as tendências messiânicas consideraram o Cristianismo, e por vezes a religião como tal, mas sempre a forma histórica do Cristianismo, como seu arqui-inimigo. De fato, elas sempre se proclamaram seus substitutos. Suas próprias mensagens de salvação eram agudamente incompatíveis com a doutrina básica cristã, a do Pecado Original, com sua visão da história como a história da Queda e a negação do poder humano de obter salvação por seu próprio esforço.”
Essa negação é o ponto fraco do espírito orgulhoso, que, escandalizado com a realidade atual, busca criar uma segunda realidade, para isso rivalizando com Deus. A Queda do Homem espelha a Queda de Satanás. É esse seu pecado original que Lúcifer — ou Nefasto, ou quaisquer que sejam os outros nomes dos de sua legião — procura instigar os homens a reproduzir incessantemente: imitatio satanae. E não há contexto mais propício para esse mimetismo demoníaco do que a política revolucionária, ou — como o diabo gosta de eufemismos! — “progressista”. Eis, talvez, a lição mais útil de Nefarious.
Leia também “Capazes são, mas serão?”
Maravilha de artigo! Parabéns!
Muito bom, um texto para ler e reler.
…”o fato de “demonios” serem predominantemente figuras comicas na imaginacao dos “homens modernos” sera de grande ajuda. Se a menor suspeita da sua existencia comecar a surgir na mente “dele”… Dele quem? se considerarmos que “demonios” e “homens modernos” estao no plural, concluiremos que esta faltando alguem nesse pedaco do artigo.
Do homem a ser influenciado pelo demônio aprendiz.
Eu era ateu, porque a doutrinação mominalista era imperiosa e por mais que me esforçasse não conseguia compreender, não tinha uma cronologia pra mim dá uma paz nas observações simétricas. Tive mais paciência e disciplina e tornei-me agnóstico, observando com mais aplicabilidade e voltado para reflexões filosóficas, estou num processo de decantação declinando por acreditar que o natural não está na essência por si só e sim criado pelo sobrenatural. Alguns raríssimos como esse colunista, proclamou essa minha diretriz.
É realmente impressionante como a Oeste conseguiu conciliar Jornalismo, História, Filosofia, Ciência e Religião (filosofia da religião) de forma tão competente. Parabéns a todos, mas de forma particular a quem soube “descobrir” este novo caminho e selecionar tão esplêndidos colaboradores.
Meus parabéns pelo artigo; texto impecável. Nossa, como fiz bem em assinar a Revista Oeste . Sou um entusiasta da filosofia e, aprendo muito com você.
Caro Pedro, concordo muitíssimo com você. O “Nossa” em seu comentário, vale por um tratado.