Cristiano Ronaldo, Karim Benzema, Sadio Mané, Riyad Mahrez, Roberto Firmino e Neymar Júnior. Exemplos de jogadores de futebol que disputaram — e venceram — a Liga dos Campeões da Europa nas últimas temporadas. Atletas que, apesar de já terem passado dos 30 anos de idade, poderiam seguir em grandes ligas europeias, mas decidiram migrar para um novo mercado que se abre para estrelas do esporte: a Arábia Saudita. Eles foram atraídos por propostas milionárias — e em alguns casos até bilionárias — do país do Oriente Médio.
Eleito o melhor jogador do mundo em cinco oportunidades pela Federação Internacional de Futebol (Fifa), Cristiano Ronaldo, chamado pelos fãs de CR7, surge como o precursor de astros que optam por disputar a liga saudita e, consequentemente, tentam sucesso em outra Liga dos Campeões, agora a da Ásia. No fim de 2022, então com 37 anos, ele, que havia deixado o inglês Manchester United antes da Copa do Mundo realizada no Catar, resolveu ir para o Al-Nassr.
Como CR7 estava oficialmente sem clube, o acerto com os sauditas não envolveu cifras milionárias com o pagamento de multa. Em termos de salário, porém, o atacante português conseguiu dar um salto, mesmo em reta final de carreira. Segundo informações extraoficiais, o contrato válido até 2025 prevê o pagamento de cerca de € 200 milhões por ano (cerca de R$ 1,084 bilhão).
Camisa 10 da seleção brasileira nas últimas três Copas do Mundo, Neymar foi outro a trocar a Europa pela Arábia Saudita. Em 15 de agosto, o Al-Hilal confirmou o que era cogitado pela mídia esportiva mundo afora: a contratação do atacante de 31 anos. Para isso, o time desembolsou € 90 milhões para pagar o francês Paris Saint-Germain, então clube do “Menino Ney”. De acordo com a imprensa europeia, o jogador vai ganhar por dia o equivalente a R$ 1,19 milhão. E isso pelo decorrer dos próximos três anos.
Vencedor da edição 2022 da “Bola de Ouro”, premiação organizada anualmente pela revista France Football, o atacante franco-argelino Benzema, de 35 anos, foi apresentado em julho pelo Al-Ittihad. Mudança de ares — e de continente — depois de defender o Real Madrid (Espanha) por 14 temporadas. Na conversão para os reais, os vencimentos dele na Arábia Saudita chegam à casa do bilhão por ano. Assim como no caso de CR7, ele vai ganhar € 200 milhões.
Estatização do futebol saudita
Neymar, Benzema e Cristiano Ronaldo puxam a lista de famosos que decidiram seguir a carreira futebolística na Arábia Saudita, mas não são os únicos. Somente nas últimas semanas, o Al-Hilal do “Menino Ney” contratou figuras como Malcom, Rúben Neves, Aleksandar Mitrović, Sergej Milinković-Savić e Kalidou Koulibaly. Para isso, o time desembolsou aproximadamente € 250 milhões em multas para os antigos clubes dos novos reforços.
Para a atual temporada, o Al-Nassr, de Cristiano Ronaldo, não ficou para trás no quesito contratações de jogadores que atuavam nas principais ligas europeias. No decorrer das últimas semanas, o time pagou € 19 milhões para tirar o meia franco-marfinense Seko Fofana do Lens (França) e investiu outros € 18 milhões para fazer com que o croata Marcelo Brozović deixasse a Internazionale de Milão (Itália).
Benzema, por sua vez, terá a companhia de outros três jogadores que resolveram trocar a Europa pelos megassalários na Arábia Saudita. O Al-Ittihad anunciou recentemente as contratações do volante brasileiro Fabinho, do atacante português Jota e do volante francês N’Golo Kanté. Eles estavam no Liverpool (Inglaterra), Celtic (Escócia) e Chelsea (Inglaterra), respectivamente. Ao todo, mais de € 75 milhões foram gastos somente no pagamento de multas para clubes europeus — sendo que Benzema e Kanté chegaram a custo zero.
O Al-Ahli fecha a lista de times sauditas que passaram a investir milhões de euros em contratações de jogadores então atuantes na Europa. Para contratar o meia franco-argelino Riyad Mahrez, o zagueiro brasileiro Roger Ibañez, o atacante francês Allan Saint-Maximin, o goleiro franco-senegalês Édouard Mendy, o volante marfinense Franck Kessié e o atacante brasileiro Roberto Firmino, foram desembolsados, em questão de semanas, cerca de € 130 milhões em multas — e sem contar os salários a serem empenhados a partir de agora.
Apesar de rivalizarem dentro dos campos da Arábia Saudita, Al-Hilal, Al-Nassr, Al-Ittihad e Al-Ahli passaram a ter o mesmo dono em junho, o Fundo de Investimentos Públicos (PIF, na sigla em inglês). O fundo tornou-se responsável por 75% das ações de cada um dos quatro times, que são os maiores campeões da liga local de futebol.
A Arábia Saudita quer, como cereja do bolo, ser a sede da Copa do Mundo de 2030 — e conta desde já com Cristiano Ronaldo e Neymar como garotos-propaganda informais
Na prática, a sigla PIF é um eufemismo em relação à estatização dos principais times da Arábia Saudita. O fundo nada mais é do que gerenciador dos recursos pertencentes à família real do país do Oriente Médio, que é o maior exportador de petróleo do mundo. Ou seja, o príncipe herdeiro — e ditador — Mohammad bin Salman passou a ser o “patrão” de jogadores como Cristiano Ronaldo e Neymar.
Salman é alvo de críticas de organismos internacionais. É tido como alguém que viola os direitos humanos e é acusado de promover o ataque saudita ao Iêmen. Além disso, em novembro de 2018, a Agência Central de Inteligência (CIA), dos Estados Unidos, concluiu que o príncipe herdeiro mandou matar o jornalista Jamal Khashoggi. Saudita que se tornou crítico do regime local, Khashoggi foi torturado e esquartejado no consulado da Arábia Saudita na Turquia, em outubro de 2018.
Uma ação de marketing
Os investimentos na casa dos bilhões de reais em futebol vão além de querer trocar a imagem do monarca assassino pela de benfeitor desportivo. Trata-se de ação de marketing no médio prazo. Para isso, o país do Oriente Médio tem atraído eventos de alcance mundial. Desde 2021, entrou para o calendário da Fórmula 1, principal competição de automobilismo do planeta. Também passou a ser palco para as “supercopas” de futebol da Espanha e da Itália. Demonstrando poder financeiro e de portas abertas para práticas esportivas, a Arábia Saudita quer, como cereja do bolo, ser a sede da Copa do Mundo de 2030 — e conta desde já com Cristiano Ronaldo e Neymar como garotos-propaganda informais.
Uma ação de marketing que tem dado certo, ao menos para o Al-Hilal. Depois de anunciar a contratação de Neymar, o time viu o número de seguidores disparar no Instagram. De 4,5 milhões no começo do mês para mais de 8 milhões dez dias depois.
Para o especialista em marketing esportivo Amir Somoggi, diretor da consultoria Sports Value, o retorno para o time que contratou Neymar será positivo, mas somente no curto prazo. “Não tenho dúvidas de que logo mais veremos crianças aqui do Brasil com a camisa 10 do Al-Hilal”, diz, ao fazer referência ao número que o atacante brasileiro vai usar no novo clube.
O retorno no curto prazo se reflete na imprensa. Pela primeira vez na história, o Campeonato Saudita de Futebol ganhou vez na televisão aberta do Brasil. Detentora dos direitos de transmissão da competição no país, a Band fez a sua estreia na cobertura do “Sauditão”, na tarde de 19 de agosto. E foi bem na audiência, com média de 2,5 pontos durante o jogo entre Al-Hilal e Al-Feiha, sendo que para a faixa de horário a emissora tinha dificuldade de chegar a 1 ponto no Ibope, com o programa Band Esporte Clube.
Somoggi, que conta com master em marketing esportivo pela Universidade de Barcelona (Espanha), avalia, contudo, que o apelo midiático com as recentes contratações pelos sauditas não fará a liga local rivalizar com as grandes competições da Europa. Nesse ponto, ele chama a atenção para o fato de a maioria das estrelas rumo ao Oriente Médio ter mais de 30 anos.
“As principais estrelas do momento, que são Erling Haaland, Kylian Mbappé e Vinícius Júnior, seguem na Europa”, indica Somoggi, ao citar nominalmente o norueguês do Manchester City, o francês do Paris Saint-Germain e o brasileiro do Real Madrid, que têm 23, 24 e 23 anos, respectivamente. “A Champions League segue como o principal torneio de clubes do mundo.”
As diferenças políticas e culturais são outros fatores que podem afastar grandes estrelas do futebol da Arábia Saudita, avisa Somoggi. No país, que é regido por uma vertente do islamismo, mulheres eram proibidas de dirigir até 2018, e a presença delas em estádios de futebol só foi liberada recentemente. Nesse sentido, Somoggi lembra de algumas leis relacionadas até mesmo ao convívio social. É proibido homem e mulher morarem juntos se não forem casados. Há, ainda, proibição para o consumo de bebidas alcoólicas e aplicação da pena de morte para homossexuais.
Muito dinheiro, pouco futebol
Apesar das questões culturais — e legais —, o CEO da produtora de conteúdo LiveSports, João Palomino, acredita que o sucesso saudita com investimentos futebolísticos ficará restrito ao curto prazo por uma simples razão: falta de qualidade técnica. “O nível de competição é praticamente amador”, ressalta ele. “Não adianta nada você ter o Cristiano Ronaldo e não ter outros jogadores que possam ajudá-lo, não ter uma equipe estruturada.”
Mesmo com o “abismo” entre o nível do que é jogado na Arábia Saudita e na Europa, Palomino, que foi vice-presidente de conteúdo e programação dos canais ESPN no Brasil durante sete anos, acredita que o futebol saudita mudou de patamar, graças aos nomes que por lá estão. Na visão dele, a liga local vai passar a disputar a atenção — e a audiência — com campeonatos como o português, holandês, francês e alemão. “Mas a Premier League, da Inglaterra, seguirá como o maior campeonato nacional, e a Champions League da Europa vai se manter, sem dúvida, como a maior competição de clubes.”
Ciente de questões relacionadas à cultura saudita — e do chamado mundo arábe como um todo —, Palomino critica a hipocrisia que envolve o meio do futebol. Ao criticar violações da Arábia Saudita aos direitos humanos, por exemplo, ele lembra que a Inglaterra não recebe o mesmo tratamento, apesar de ter times bancados pelos Emirados Árabes Unidos (Manchester City) e pelo já mencionado PIF (Newcastle). Também lembrou que o Chelsea, outro inglês, foi por 19 anos controlado pelo magnata russo Roman Abramovich, acusado de desviar dinheiro em seu país de origem. Enquanto isso, o francês Paris Saint-Germain é controlado por um fundo mantido pelo governo do Catar, outro país nada simpático às liberdades individuais.
“A Inglaterra fala em ser correta, mas isso só vale até você chegar com dinheiro”, avalia Palomino. “Por isso, não recrimino jogadores e treinadores que decidem ir para a Arábia Saudita.”
O investimento bilionário do governo saudita no futebol representa oportunidades para treinadores. Ganhador da Libertadores da América em 2019 pelo Flamengo, o português Jorge Jesus é o técnico do Al-Hilal. Outro português, Luís Castro deixou o Botafogo em meio ao Campeonato Brasileiro deste ano para ter a oportunidade de treinar o compatriota Cristiano Ronaldo no Al-Nassr.
Advogado especializado em direito esportivo e atuante no escritório Caputo, Bastos e Serra Advogados, Gabriel Caputo indica que os investimentos sauditas também representam oportunidades para empresários de jogadores de futebol. “A expansão do mercado árabe e as recentes contratações milionárias feitas pelos clubes da Arábia Saudita geram oportunidades financeiras para os jogadores de futebol e, consequentemente, para seus agentes, os quais recebem comissões com base no salário dos jogadores representados ou no valor da transferência entre clubes.”
Caputo alerta, contudo, para o risco de problemas para jogadores e seus empresários. De acordo com ele, a Arábia Saudita teve mais de 50 processos — somente de junho de 2022 a junho deste ano — na Câmara de Resolução de Disputas da Fifa por acusações de violação a direitos trabalhistas de jogadores de futebol. “É preciso atentar para a possibilidade de eventual não cumprimento das obrigações contratuais por parte dos clubes sauditas.”
Enquanto denúncias por parte das grandes estrelas não ocorrem, a Arábia Saudita segue como o mais recente destaque no mundo do futebol. Com Cristiano Ronaldo, Neymar e outros craques atraindo a mídia para a liga local (inclusive com transmissão na TV aberta do Brasil) e muito — mas muito — dinheiro, o governo saudita faz valer a frase dita pelo técnico brasileiro Carlos Alberto Parreira (que já treinou a seleção saudita de futebol, sendo demitido durante a Copa do Mundo de 1998): “O gol é apenas um detalhe”.
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O alagoano Elton, um baixinho que jogou na base do Corinthians, passou a vida toda lá jogando na Arabia Saudita.
Esse tirano teológico e assassino tem dinheiro pra jogar fora