As pessoas que comemoram eventos políticos costumam se arrepender rápido deles, enquanto aquelas que os lamentam desde o início em geral acabam demonstrando estar certas, embora muitas vezes também pelas razões erradas. Uma regra geral é que você não deve depositar sua fé em figuras políticas, não apenas porque elas sempre têm alguma falha de caráter desconhecida, mas também por causa da própria natureza da política. Você não pode se desiludir se não tiver se iludido antes.
Para todos os efeitos, Javier Milei, presidente eleito da Argentina, não é um homem sem peculiaridades. Assim como Madame de Sévigné, ele admira mais os cães do que os homens e sempre parece ter acabado de sair de uma festa louca ou uma devassidão, mesmo que não seja o caso. Com certeza, ele não observa as formalidades sociais em seu discurso.
Não há dúvidas de que a conjuntura na Argentina requer algo diferente depois de 80 anos de fracasso peronista, mas resta saber quanto de seu programa ele conseguirá implementar. Afinal, Milei foi eleito presidente, não ditador, e, a menos que esteja preparado para perpetrar um autogolpe, terá que trabalhar dentro das restrições do sistema atual. Se tentar fazer movimentos inconstitucionais, sob o argumento de que 56% dos argentinos votantes escolheram ele, uma guerra civil, ou pelo menos uma agitação violenta, é uma grande possibilidade.
Fiquei muito interessado na primeira reação à eleição de Milei pelo The Guardian, o jornal britânico de esquerda liberal que também é influente nos Estados Unidos e parece ter evitado o declínio precipitado da maioria dos outros jornais graças ao uso perspicaz de um site. Sua reação à eleição me pareceu muito estranha e desequilibrada, talvez indicativa da limitada obsessão consigo mesma que a esquerda moderna no mundo ocidental tem.
O Guardian enfatizou a oposição de Milei ao aborto mais do que qualquer outra coisa, como se essa questão fosse a mais importante dentre as que a Argentina enfrenta. Será?
Para a esquerda, sua visão de mundo tornou-se mais importante do que o próprio mundo. Isso explica por que Pinochet foi (e é) muito mais execrado no mundo ocidental do que a Junta Militar argentina, que com certeza foi mais brutal, pelo menos do ponto de vista estatístico. Para a esquerda, os dois crimes imperdoáveis de Pinochet foram, em primeiro lugar, deixar o Chile muito mais próspero do que quando assumiu, fazendo exatamente o oposto do que a esquerda havia defendido como solução para a pobreza e o subdesenvolvimento — o que representou uma ameaça existencial para toda a sua visão de mundo —, e, em segundo (embora isso fosse apenas subsidiário), cumprir o resultado de um referendo que ele mesmo convocou. Esse foi um comportamento imperdoável para um ditador odiado. Em comparação, a Junta apenas deixou uma bagunça.
Desconfio que a esquerda tenha medo de que o experimento de Milei, se ele conseguir colocá-lo em prática, possa ser bem-sucedido — o que não significa, claro, dizer que o será. A esquerda ficaria muito mais confortável com a continuidade das políticas dos peronistas, seja qual for o resultado real delas, porque são defendidas em nome da justiça social. O que conta para a esquerda não são os resultados, mas as intenções, ou melhor, as intenções declaradas e ostensivas. É melhor ter políticas fracassadas conhecidas do que a possibilidade de sucesso com políticas que você detesta por motivos ideológicos; e deixe o céu cair, contanto que você faça as coisas em nome de um ideal.
Milei está longe de ser um conservador. Ele acredita ter encontrado um mecanismo, o mercado, para resolver todos os problemas, assim como Marx, cujo verdadeiro pesadelo não era tanto o capitalismo (por mais que o abominasse), e sim a divisão do trabalho, que ele acreditava deformar a vida humana
A sobrevivência do peronismo na Argentina é uma das curiosidades da política mundial e requer uma explicação. Grosso modo, ele foi, se não uma catástrofe para rivalizar com outras que poderiam ser nomeadas, a mais longa e persistente falha política e econômica do mundo — claro, a menos que você considere a sobrevivência de uma ideia política um sucesso em si mesma. Em certo sentido, um ditador que governa por décadas, arruína seu país, mas morre pacificamente em sua cama, não pode ser considerado um fracasso total, se o propósito da política é chegar e se manter no poder.
Juan Domingo Perón era um demagogo em estado puro, para usar um termo bacteriológico. Como a maioria dos demagogos, a primeira vítima intelectual de sua demagogia foi ele mesmo. (Preciso mencionar aqui que, quando era uma criança pequena colecionadora de selos, eu achava que Eva, sua mulher, cuja imagem aparecia em um conjunto de selos argentinos, era a mulher mais bonita do mundo.) Ele colocou a Argentina em um caminho do qual o país não conseguiu, apesar de várias tentativas, se desviar desde então. A combinação de assistencialismo custoso e nacionalismo econômico extremo, que levou a um corporativismo corrupto — ambos extremamente valiosos para qualquer aspirante e demagogo —, produziu o que o livro de Carlos Waisman sobre a história recente da Argentina chamou, de modo sucinto, de inversão do desenvolvimento. Um país que deveria estar no nível da Austrália, um dos países mais prósperos do mundo, parece estar permanentemente em uma corrida rumo ao fundo do poço.
Mas quando as economias há muito tempo são retratadas e tratadas como um jogo de soma zero e quando, como resultado das políticas sugeridas por essa visão, elas começam a realmente parecer esse jogo, quando a migalha na minha boca foi tirada da sua e vice-versa, não é surpreendente que as pessoas tentem se agarrar a quaisquer pequenos privilégios que o sistema econômico lhes conceda, com medo de ficarem sem nada. Assim, elas votam em quem as arruinou, e assim é criado um ciclo descendente do qual apenas uma ruptura radical pode proporcionar um escape — mas rupturas radicais são sempre dolorosas e nem sempre bem-sucedidas.
Milei está longe de ser um conservador. Ele acredita ter encontrado um mecanismo, o mercado, para resolver todos os problemas, assim como Marx, cujo verdadeiro pesadelo não era tanto o capitalismo (por mais que o abominasse), e sim a divisão do trabalho, que ele acreditava deformar a vida humana — o que, inegavelmente, ela poderia fazer quando exigia horas desumanamente longas dedicadas a uma única tarefa monótona e opressiva. Mas não existe uma única solução para os problemas da existência humana, e poucas pessoas são mais perigosas do que as que acreditam ter encontrado uma, as que têm uma única ideia, ou até duas ideias.
Theodore Dalrymple é pseudônimo do psiquiatra britânico Anthony Daniels. É autor de mais de 30 livros sobre os mais diversos temas. Entre seus clássicos (publicados no Brasil pela editora É Realizações) estão A Vida na Sarjeta, Nossa Cultura… Ou o que Restou Dela e A Faca Entrou. É um nome de destaque global do pensamento conservador contemporâneo. Colabora com frequência para reconhecidos veículos de imprensa, como The New Criterion, The Spectator e City Journal.
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Com algum atraso – imperdoável neste caso – um trompaço (ou seria peitaço? como aqueles que os artilheiros dão no cara que o deixou na cara do gol. Milei e o Fantasma de Perón é o título que Darimple escolheu, nem para levantar suspeitas e muito menos por negar a matéria prima de que é feito Javier Milei. Antes, porém, um registro emocionado a cada edição da Oeste – sim por seus textos são ainda mais implacáveis – fotos escolhidas de um baú. O contraste entre a foto do casal Evita e Juan Domingos Perón e o flagrante do retrato dos militares militares vai além da história. Nos faz parar no tempo dissecado pelos tons mais do que pelas expressões – essas sempre falsas. E me desculpe, TD, garimpeiro da história no seu exato momento, como faz Darymple neste texto. E sem entrar no mérito das escolhas – até porque sou leitor e só me cabe me emocionar como – com certeza – aconteceu com os editores. O nome Argentina, por si, dá o tom gráfico para uma reflexão de como o tempo é implacável. E mais do que isso, pode desbotar os tons, mas mantém a aura – má ou bendita de cada corte na história. E, peço licença a Theodore Dalrymple para dizer-lhe que a atualidade do seu retrato do tipo, vejam só quem é Javier Millei, é uma aula magna para nossos soberbos colunista tupinambás, que não saberiam nunca escolher a melhor empanada, quando mais mirar – eu disse, mirar – no lago triste, cruel e ver que ali, por mais que insistiram os esquerdistas, em fazer de múmias de cabaré, estadistas como Perón, ou o patético casal – este sim genocida Kirchner. Deixemos os mestres do liberalismo, que produziu os melhores regimes dos dois últimos séculos, que façam afinal, seu julgamento. Mas que estejam certos que Millei é um sonoro não aos petullulistas que avassalam este Continente. Millei é limpo. Não carece de polimento. E viva la libertat carajo!!!
(UMITA. Não esqueça querido viajante, Umita é a melhor que verás nos largos balcões aquecidos de Baires)
A grande pergunta é: como pessoas tipo Perón, Lula e outros demagogos conseguem trazer atrás de suas caudas uma legião de seguidores anos a fio……será que só o Divino poderia explicar???? Outra coisa, o que tem de gente torcendo para Milei quebrar a cara sem se preocupar efetivamente com o bem estar social do povo argentino é incrível, não sós os argentinos de esquerda que ainda persistem mas ora veja a mídia brasileira diga-se de passagem Globo e seus comentaristas que hoje beiram ao ridículo, o fantástico Ruinnaldo Azedo que não se cansa de arrumar desculpas torcendo para Milei tornar-se um fracasso na tentativa de arrumar um país destroçado por políticos sem ética e moral e também pelo povo. Particularmente acho Milei uma pessoa corajosa, assumir o posto na situação exposta pelo país e tentar reverter a situação é queiram ou não um ato de coragem, oposto da covardia da imprensa militante brasileira.
Argentina realmente tinha uma trajetória para se assemelhar com a Austrália hoje. Mas infelizmente encontraram Perón no caminho.
Dalrymple deixa pouquíssima margem para comentários, tamanha é a robustez do seus argumentos e as verdades – não relativizadas – que expõe com a clareza costumeira.