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Edição 02

A bomba que vem do leste

Altos investimentos em todo o mundo, tentativa de mudar as regras da internet, controle do padrão 5G. O que pretendem os chineses?

Selma Santa Cruz
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O que a fast fashion, roupa barata confeccionada com matéria-prima chinesa, tem a ver com a pandemia?  Muita coisa. Afinal, não foi por acaso que a doença grassou de forma tão virulenta na Itália, entre a Toscana e a Lombardia, já que ali está concentrada a maior comunidade de imigrantes chineses da Europa. Grande parte da qual composta, justamente, por empresários ou empregados da indústria têxtil. E a maioria oriunda, não por coincidência, da província de Hubei, mais precisamente de Wuhan, o que explica o intenso tráfego aéreo entre Milão e a cidade onde se originou o coronavírus.

Nesse sentido, a disseminação da peste pelos cinco continentes não seria consequência apenas do fluxo geral de comércio e pessoas da globalização. Ela dá visibilidade a um fenômeno que tem passado quase despercebido, apesar de sua importância crítica: a expansão vertiginosa da presença chinesa no planeta, inclusive no Brasil, foco de interesse estratégico pela abundância de recursos naturais.

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Depois de décadas fechado ao mundo, o milenar “Império do Centro” protagonizou nos últimos vinte anos, sem alarde, uma virada espetacular, firmando-se como potência global que ameaça a hegemonia dos Estados Unidos e joga pesado para promover seus interesses por toda parte, sendo o comércio e as finanças, naturalmente, o campo de batalha principal desta nova Guerra Fria.

O país miserável, cuja manufatura foi por muito tempo associada à baixa qualidade e à pirataria, já é a segunda economia e o maior exportador e importador do mundo. Além de dono dos quatro maiores bancos globais e de quase a maioria das 500 maiores empresas da lista da Fortune.

No Brasil, por exemplo, elas avançam rapidamente em quase todos os mercados e já lideram, entre outros, o setor privado de geração de energia.

Um desses gigantes, a Huawei, está justamente no centro da acirrada disputa pelo domínio do mercado mundial de infraestrutura de telecomunicações, no qual a China vem até agora levando a melhor diante  de europeus e americanos. E não se trata apenas de tecnologia. Este é um embate com grandes implicações políticas e econômicas, já que o padrão dominante dará suporte à nova geração de telefonia celular, a 5G, que terá capacidade de integrar em rede quase tudo o que usamos, tornando realidade a internet das coisas e um novo ciclo da disrupção digital.

O que está em jogo, portanto, é o controle do imenso fluxo de dados pessoais que trafegarão nessas redes. Quem concentrar esse tipo de informação terá o poder de manipular indivíduos e populações inteiras.

5g
Na disputa pela tecnologia 5G, a China sai na frente de todos os países ocidentais.

Como todas as empresas chinesas são controladas direta ou indiretamente pelo Partido Comunista Chinês, a possibilidade de uma ditadura prevalecer na disputa do 5G acende sinais vermelhos. E uma proposta feita à ONU pela China, na semana passada, para alterar a arquitetura da internet, elevou o nível do alarme.

A justificativa é que o modelo atual, que tem assegurado a natureza livre e democrática da rede, não comportaria novos avanços tecnológicos.

Mas, considerando-se que a internet é rigidamente censurada na China, como aliás todas as mídias — inclusive Google, Facebook, Twitter e WhatsApp — , não haveria aí uma tentativa de impor controles?

As preocupações se justificam também pela longa tradição de práticas ilícitas de concorrência e espionagem industrial do regime de Pequim. No mês passado, o FBI americano revelou que há cerca de mil inquéritos sobre esse tipo de crime em curso nos Estados Unidos e o número de prisões relacionadas cresceu significativamente desde o ano passado.

Soft power

Para se contrapor às reações e alavancar suas pretensões geopolíticas, a China tem buscado expandir a influência cultural por meio do chamado soft power, a conquista de corações e mentes. Parte dessa estratégia seriam as parcerias com grupos de comunicação de vários países, como as firmadas recentemente no Brasil, praticamente sem divulgação, com o Grupo Bandeirantes, o Grupo Globo e até com a estatal Empresa Brasileira de Comunicação, EBC. Embora o foco seja a produção conjunta em várias áreas, além da troca de conhecimento e treinamento de profissionais, teme-se que esse tipo de parceria possa gerar distorções editoriais em favor de interesses chineses. Ou até encobrir eventuais aportes financeiros indiretos, tendo em vista que a Constituição proíbe a participação de estrangeiros em empresas de comunicação.

A China também mantém há anos um programa de lobby junto a autoridades brasileiras para avançar seus megaprojetos de infraestrutura. Os quais, embora sejam alardeados como grande contribuição para a economia do país, podem embutir os riscos do que vem sendo chamado de “diplomacia da armadilha do endividamento”, em vista do ocorrido em alguns países da África e da Ásia. Nesses casos, quando os tomadores dos empréstimos se mostram incapazes de saldar os compromissos, as obras passam à propriedade ou gestão das empresas financiadoras. Um dos exemplos mais conhecidos é o do Sri Lanka. O país foi obrigado a ceder o porto de Hambantota em razão do endividamento excessivo.

O que faz lembrar o alerta, tempos atrás, de um especialista em China: “Quem reclama do imperialismo ianque não sabe o que o aguarda…”.

Mas já há sinais de que o modo como a China administrou a epidemia, demorando a informar seu escopo e provavelmente manipulando números, o que favoreceu a disseminação do vírus, começa a gerar forte reação internacional. O premiê britânico Boris Johnson, por exemplo, já avisou que vai reavaliar a adesão do Reino Unido ao padrão chinês de 5G da Huawei. E a organização não governamental americana Freedom Watch acaba de entrar com um processo na Justiça dos EUA contra o governo e autoridades chinesas cobrando uma indenização de nada menos do que 20 trilhões de dólares por sua responsabilidade na pandemia. O que pode ser o primeiro de muitos.

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