A gíria norte-americana woke (“despertar”) significa “aquele que tem consciência sobre temas sociais e políticos, sobretudo o racismo”. Se havia alguma dúvida sobre a hegemonia da ideologia woke nas edições do Oscar, agora não há mais. Em 8 de setembro de 2020, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas criou uma política de inclusão que passará a valer a partir da premiação deste ano. São quatro regras, subdivididas em critérios específicos, que determinam se a produção é ou não elegível ao prêmio de Melhor Filme. O objetivo é tornar o showbusiness norte-americano mais “diverso”.
Em resumo, os estúdios devem inserir grupos “menos representados” no elenco, na temática e nas áreas administrativas. Ao menos um dos personagens principais, ou então 30% dos papéis secundários relevantes, deve pertencer a grupos raciais ou étnicos (asiáticos, latino-americanos, negros, indígenas, etc.). Além disso, as obras devem focar histórias com mulheres, pessoas com deficiência, negros ou indivíduos do coletivo LGBTQIA+.
As regras também valem para quem está por trás das câmeras. Alguns profissionais, ou ao menos 30% da equipe do estúdio (cargos de liderança, profissionais técnicos, de marketing e distribuição, estagiários, publicitários etc.), devem ser membros de alguma “minoria”. Vale lembrar que ao menos 50% dessas regras e critérios devem ser obedecidos.
Nas edições de 2022 e 2023, a entidade já exigia o envio de um formulário confidencial dos “Padrões de Inclusão da Academia” na categoria de Melhor Filme. Mas somente agora, em 2024, os quatro critérios serão obrigatórios. Segundo David Rubin, presidente da Academia, a finalidade é “refletir a diversificada população global”. Para ele, o objetivo é impactar a indústria cinematográfica por um bom tempo.
Contudo, para o crítico de cinema Miguel Forlin, a medida é um critério extracinematográfico. “Muitas dessas pautas até podem partir de um ponto legítimo”, diz. “Mas é inaceitável quando um filme sem qualidades compete só por preencher algumas cotas.”
#OscarSoWhite: quando tudo começou
As novas regras da Academia são uma resposta subserviente a uma hashtag que viralizou em 2016. Na véspera da 88ª cerimônia do Oscar, a ativista April Reign inflamou, no Twitter, o movimento #OscarSoWhite (“Oscar tão branco”). O movimento se queixou da ausência de atores negros nas categorias de melhor atuação. Celebridades como Jada Pinkett Smith e seu marido, o ator Will Smith, boicotaram o evento. O cineasta Spike Lee também não foi à cerimônia.
Forlin caracteriza a sinalização de virtudes da Academia e da elite de artistas de Hollywood como uma aparência. “Antigamente, não havia essas regras oficiais para que o filme pudesse se candidatar e concorrer”, relata. “É uma tentativa da elite da Academia parecer politicamente correta e consciente.”
Em 2019, a Academia elegeu o filme Infiltrado na Klan (2018), de Spike Lee, como Melhor Direção. O próprio diretor admitiu, ao jornal O Globo, que o movimento #OscarSoWhite o ajudou.
Todavia, Lee já tinha na conta seis indicações ao Oscar. Faça a Coisa Certa (1989), seu terceiro filme, concorreu nas categorias Melhor Ator Coadjuvante e Melhor Roteiro Original. Recebeu prêmios internacionais e muitos elogios da crítica. Segundo o crítico Marcos Petrucelli, um dos efeitos da política da Academia é o comprometimento da qualidade do filme, além de limitar a arte.
Apesar das alegações da militância, o ator Morgan Freeman, por exemplo, foi indicado cinco vezes ao Oscar e levou uma estatueta em 2005, na categoria de Melhor Ator Coadjuvante, em Menina de Ouro (2004). Em 1991, Whoopi Goldberg ganhou como Melhor Coadjuvante em Ghost — Do Outro Lado da Vida (1991), e foi indicada em 1985 por A Cor Púrpura.
Outro filme bem avaliado pela crítica, antes mesmo dos critérios da Academia, é Dança com Lobos. A produção arrecadou US$ 424 milhões e levou o principal prêmio da edição de 1990. Boa parte do elenco era formada por índios.
Já em 2017, o longa Moonlight — Sob a Luz do Luar venceu o Oscar de Melhor Filme ao abordar a história de um negro homossexual que sofre bullying, passa por crises de identidade e pela tentação do universo do crime e das drogas. Apesar de ter feito somente US$ 65 milhões em bilheteria, o filme derrotou o musical La La Land, que ultrapassou os US$ 440 milhões. Na análise do jornalista Paulo Pereira, Moonlight é um filme “para ser esquecido”.
Uma das maiores falhas do Oscar marcou essa edição. Na hora de revelar o vencedor da principal categoria, o apresentador se confundiu e anunciou o filme La La Land, em vez de Moonlight, que havia conquistado a estatueta.
Em 2022, ano em que a Academia já avaliava mais formalmente os “critérios de inclusão”, Dunkirk, um épico sobre a Segunda Guerra Mundial, foi derrotado por A Forma D’Água. O primeiro, muito aclamado pela crítica, conquistou uma bilheteria de US$ 527 milhões. O vencedor, um filme sobre uma faxineira com deficiência auditiva que se apaixona por um peixe, arrecadou US$ 196 milhões.
Para Forlin, um bom filme é quando a técnica reforça a história, e a história reforça a técnica. Como exemplo, o crítico mencionou o longa-metragem Zona de Interesse (2023), indicado ao Oscar deste ano. O protagonista é o comandante de Auschwitz, Rudolf Höss, que vive com a família ao lado de um campo de concentração. Höss assassinava os judeus nas câmaras de gás e, depois, seguia normalmente a sua rotina. O diretor sugere os acontecimentos do campo de concentração por meio de sons, sem o elemento gráfico, o que exige maior esforço imaginativo do público.
Em contrapartida, na visão do crítico, Barbie (2023), apesar de ter batido US$ 1,4 bilhão nas bilheterias, só concorrerá por causa da audiência e do propósito político: fazer as mulheres enxergarem a influência do “patriarcado” em suas vidas.
A política no cinema
Em março de 2023, a Academia propôs entregar estatuetas em homenagem ao povo ianomâmi. Mas não é de hoje que a política invade o cinema. Um exemplo é o clássico O Encouraçado Potemkin (1925). O filme narra a história do motim dos marinheiros no principal encouraçado da frota russa, em 27 de junho de 1905. Símbolo dos primeiros eventos artísticos revolucionários, o clássico foi bem recebido pela União Soviética.
“Hoje o Oscar tem premiado os filmes que ressoam as pautas do partido norte-americano, que atualmente são as identitárias. Isso tem se refletido nas produções dos filmes e no próprio evento”
(Miguel Forlin, crítico de cinema)
O filme O Som da Liberdade (2023) provocou algumas polêmicas nas redes sociais e foi muito criticado pela patrulha “progressista”. O argumento, até mesmo de alguns críticos, era de que o longa não apresentava dados verdadeiros. O filme narra a história real de Tim Ballard, um ex-agente do governo dos Estados Unidos que larga o posto para lutar contra o tráfico sexual de crianças.
No Brasil, o filme alcançou 1,7 milhão de espectadores e rendeu US$ 250 milhões. Apesar dos bons números, na avaliação de Forlin, o longa-metragem deixa a desejar. “A relevância do assunto não é suficiente para justificar os elogios ao filme”, observou.
Além disso, para ele, as produções com temáticas woke recebem prêmios no Oscar mesmo sem se preocupar com o conteúdo e a técnica. A proposta artística do cinema sai de cena, e a política vira a protagonista.
O público que bate o martelo
Nos últimos anos, a premiação sofreu quedas frequentes de audiência. Em 2003, o evento registrou o pior número dos 20 anos anteriores. Já 2021 marcou a pior audiência da história dos Estados Unidos, a mais baixa do Oscar desde que a premiação passou a ser exibida pela televisão, em 1950.
O filme Top Gun: Maverick (2022), uma nostalgia do original de 1986, novamente estrelada por Tom Cruise, faturou US$ 1,5 bilhão. Recebeu seis indicações ao Oscar, inclusive a de Melhor Filme. Mas o longa-metragem recebeu duras críticas por seu conteúdo de “propaganda militar” e “excesso de masculinidade tóxica”.
Apesar do cenário, nem todos cedem ao politicamente correto e aos clamores da Academia. O ator Richard Dreyfuss, por exemplo, disse que a nova política do Oscar o faz “vomitar”. “Ninguém deveria dizer que devo ceder à ideia mais recente e atual do que é moralidade”, afirmou.
Cineastas como Clint Eastwood, Roman Polanski, Werner Herzog, David Lynch, Paul Verhoeven e Woody Allen não se preocupam em passar uma mensagem politicamente correta, lembra Forlin. Segundo ele, a definição de um bom artista era aquele que mostrava a “hipocrisia” do establishment. Hoje, é seguir o que o próprio establishment impõe. Quando ganhou o Oscar pela direção e pelo roteiro de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (1977), Woody Allen não compareceu à noite de premiação. No lugar da cerimônia, o diretor preferiu tocar jazz com a sua banda num bar.
Confira a lista completa de indicações ao Oscar de 2024, por categoria.
Melhor Filme
- American Fiction
- Anatomia de Uma Queda
- Barbie
- Os Rejeitados
- Assassinos da Lua das Flores
- Maestro
- Oppenheimer
- Vidas Passadas
- Pobres Criaturas
- Zona de Interesse
Melhor Ator
- Bradley Cooper – Maestro
- Colman Domingo – Rustin
- Paul Giamatti – Os Rejeitados
- Cillian Murphy – Oppenheimer
- Jeffrey Wright – American Fiction
Melhor Atriz
- Annette Bening – Nyad
- Lily Gladstone – Assassinos da Lua das Flores
- Sandra Hüller – Anatomia de Uma Queda
- Carey Mulligan – Maestro
- Emma Stone – Pobres Criaturas
Melhor Ator Coadjuvante
- Sterling K Brown – American Fiction
- Robert De Niro – Assassinos da Lua das Flores
- Robert Downey Jr. – Oppenheimer
- Ryan Gosling – Barbie
- Mark Ruffalo – Pobres Criaturas
Melhor Atriz Coadjuvante
- Emily Blunt – Oppenheimer
- Danielle Brooks – A Cor Púrpura
- America Ferrera – Barbie
- Jodie Foster – Nyad
- Da’Vine Joy Randolph – Os Rejeitados
Melhor Filme Internacional
- Io Capitano
- Perfect Days
- A Sociedade da Neve
- Das Lehrerzimmer
- Zona de Interesse
Leia também: “A tirania do cancelamento foi longe demais”
Eu era assíduo nos cinemas, ia 2, 3 vezes na semana. Felizmente não perco mais meu tempo.
Além de inverterem os valores universais, há um cerceamento da liberdade jamais visto, pra ser generoso, desde as cruzadas
Lamentável
Nunca perdi meu tempo assistindo às sandices deste “evento”.
Agora então piorou o que já era ruim.
Gostei da reportagem! Parabéns!
Em resumo,n ao vale a meritocracia!AFF!!
Excelente reportagem
Ainda bem que ninguém assiste mais. Isso virou igual baile de debutante, já foi legal, hoje é chato. E nem adianta colcoar o pessoal para bater uns nos outros.