Águas são muitas, infindas.
E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar,
dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem.
Mas o melhor fruto que nela se pode fazer
me parece que será salvar esta gente.
E esta deve ser a principal semente
que Vossa Alteza em ela deve lançar.
(Carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei Dom Manuel, o Venturoso)
Pero Vaz de Caminha, escrivão da esquadra de Pedro Álvares Cabral, foi o autor do primeiro documento escrito sobre o Brasil. Uma verdadeira certidão de batismo. Ainda assim, cinco séculos depois, Pero Vaz é destratado por gente do agro, e até exposto com ironia por ex-dirigente da agricultura, acusando-o de ter dito a frase “nesta terra em se plantando tudo dá”. Para os detratores, ela traz a falsa ideia de que o Brasil tem solos férteis. Não tem mesmo. Ou bastaria plantar e colher. Sem trabalhar. A frase projetaria nos agricultores a imagem da preguiça. Eles viveriam da exuberância dos solos. Haja narrativa injusta. Na frase original, Pero Vaz nunca creditou aos solos o potencial de produção, e sim às águas: “Dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem”.
Quem faz essas acusações nunca leu a Carta de Pero Vaz. E reproduz a frase de uma propaganda antiga de adubos. A Carta é objeto de estudos filológicos, antropológicos, históricos, filosóficos, religiosos e psicológicos por sua precisão e riqueza de detalhes, abrangência, fidelidade a fatos e rigor de análise. E foi redigida em uma semana. Sem editor de texto. Se, ao tomarem conhecimento do original, os expoentes do agro não pedirem perdão à memória do escrivão real, pelo menos que se calem. A apresentação da Carta na “Wokepedia” é do mesmo calão.
Para Caminha, na Terra de Santa Cruz parecia não haver agricultura significativa “senão desse inhame que aqui há muito”. Nem pecuária. Os índios “não lavram, nem criam, nem há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem nenhum outro animal acostumado a viver com os homens”. Ele nunca retornou a Portugal. Oito meses depois morreu na Índia, em combate, durante ataque muçulmano à feitoria de Calecute.
No início do século 16, não havia nada a esperar do Brasil referente a ouro, prata ou produtos elaborados, como seda, porcelanas, especiarias ou mesmo pérolas e corais. Para atender às necessidades básicas de alimentação, saúde e vestimenta, durante séculos, os portugueses introduziram em terras brasileiras tudo de possível interesse, sobretudo a partir da Ásia e da Europa.
Os lusitanos promoveram o aumento da biodiversidade brasileira e a mudança dos hábitos alimentares, com a introdução de grande variedade de vegetais: cana-de-açúcar, manga, banana, carambola, melão, melancia, arroz, feijão, trigo, aveia, sorgo, inhame, uva, coco, figo, fruta-pão, jaca, laranja, limão, tangerina, tamarindo, café, cravo, canela, pimenta-do-reino, caqui, sapoti, gengibre, romã, amora, maçã, pera, pêssego, pinha, graviola, hortaliças, temperos e ervas medicinais (veja artigo “A Coroa Portuguesa e o sucesso da fruticultura”, edição 99).
A ecologia explica o sucesso das introduções transcontinentais de espécies. Transportadas sem suas principais pragas e doenças, as novas culturas cresceram melhor no Brasil. Bananas asiáticas foram cultivadas e observadas na Madeira, em Portugal, além de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. As melhores mudas, produtivas e sadias, foram levadas ao Brasil. Da mesma forma, seringueira, cacau, mandioca e abacaxi tiveram ótimo desenvolvimento, levados sem pragas e doenças à Ásia e à África, hoje seus maiores produtores.
O processo de introdução de plantas exóticas começou na orla marítima com a introdução e o plantio de coqueirais. Trazido do Oceano Índico, o coco é um exemplo de sucesso na ampla produção de frutas frescas, temperadas e tropicais, em todo o Brasil. Sistemas de produção foram desenvolvidos ao longo de séculos. Variedades melhoradas ampliaram o calendário das colheitas. A irrigação garante uma produção permanente. Ao longo do ano não faltam laranja, banana, manga, maçã, uva, morango, melão, mamão, abacaxi, abacate, açaí e outras frutas.
Intensiva em mão de obra (para viveiro, plantio, poda, raleio, controle biológico, colheita, pós-colheita, empacotamento, embalagens…), a fruticultura lidera a geração de empregos na agropecuária. São cerca de 5,5 milhões de empregos diretos, segundo a Associação Brasileira dos Produtores Exportadores de Frutas e Derivados (Abrafrutas). Criada em 2014, ela conta com 92 associados e reúne 85% do volume de frutas frescas exportadas.
O Brasil é um gigante das frutas frescas: terceiro produtor mundial. Em 2023, a produção foi da ordem de 123 milhões de toneladas. A China é o primeiro. Tudo consome, nada exporta e ainda é grande importadora de frutas. É como a Índia, o segundo maior produtor de frutas.
Gigante na produção, o Brasil é um anão na exportação de frutas frescas: 4,4 milhões de toneladas. Cai da terceira para a 23ª posição mundial. Sete frutas representam cerca de 80% do mercado internacional: manga, melão, uva, limão, melancia, mamão e maçã
Nas cadeias produtivas do agro, para não dizer da atividade humana, existe sempre o fenômeno da concentração. Em 2023, do total de frutas, cerca de 40% foram produzidos em São Paulo; 8,5%, na Bahia; e 7%, em Minas Gerais e no Pará. São Paulo e Bahia concentram quase metade do volume das frutas frescas. Exceção amazônica, o Pará reúne quase toda a produção nacional de açaí e abacaxi. Os outros Estados amazônicos são insignificantes. Nenhum deles contribui com 1% na fruticultura. O Amapá, com apenas 0,08%. Os “4 Ms” (melão, melancia, mamão e manga) alavancam a fruticultura no Rio Grande do Norte.
A concentração em 2023 também esteve nas espécies cultivadas. Cinco frutas representam 70% do total: laranja (50 milhões de toneladas), banana (20 milhões de toneladas), melancia (6,2 milhões de toneladas), coco (5,1 milhões de toneladas) e, empatados em quinto lugar, açaí e abacaxi (4,7 milhões de toneladas). A lista segue com o melão (1,9 milhão de toneladas) e outras. O conceito de frutas é amplo. A rigor fariam parte da fruticultura o café, o tomate e o cacau, por exemplo.
O valor estimado pela Abrafrutas da fruticultura nacional em 2023 foi da ordem de R$ 156 bilhões. A laranja responde por cerca de 24% desse valor. Segue a banana, com 20%. E na terceira posição? Pouca gente sabe. Não é manga, uva ou maçã. É o açaí, com 10% do valor da fruticultura. A produção brasileira de frutas é sobretudo destinada ao mercado interno.
Gigante na produção, o Brasil é um anão na exportação de frutas frescas: 4,4 milhões de toneladas. Cai da terceira para a 23ª posição mundial. Sete frutas representam cerca de 80% do mercado internacional: manga, melão, uva, limão, melancia, mamão e maçã. Segundo dados da Abrafrutas, o principal destino em 2023 foi a Europa, com cerca de 71% do volume: Holanda (1,6 milhão de toneladas), Reino Unido (712 mil toneladas), Espanha (537 mil toneladas), Portugal (106 mil toneladas), Alemanha (56 mil toneladas), Itália (50 mil toneladas), Irlanda (32 mil toneladas) e França (31 mil toneladas). O Brasil exportou aos Estados Unidos (357 mil toneladas), Canadá (90 mil toneladas), Rússia (66 mil toneladas) e Suíça (7 mil toneladas).
Esses exigentes mercados atestam a qualidade e a ausência de resíduos de agroquímicos nos produtos brasileiros. As frutas exportadas possuem certificações internacionais, como Global Gap, Rainforest Alliance, Global GAP-Grasp, Fairtrade, Tesco Nurture, BSCI, HACCP e outras.
As exportações brasileiras de frutas frescas para mais de 170 países em 2023 alcançaram receitas de US$ 1,2 bilhão. Foi o melhor desempenho já registrado: aumento de mais de 26,7% em valor e de 6% em volume, em relação a 2022. É o reconhecimento da qualidade dos produtos brasileiros no mercado global. Seguem alguns exemplos.
- Manga: lidera as exportações de frutas do Brasil. Em 2023, houve um aumento de 52% em valor e 15% em volume (266 mil toneladas).
- Melão: as exportações cresceram 25% em valor, sem aumento no volume (228 mil toneladas). A qualidade excepcional e o sabor do melão produzido ajudam a garantir a posição de segundo produto mais exportado em 2023.
- Uva: conquistou novos mercados globais, cresceu 55% em valor e 35% em volume (73,5 mil toneladas), por sua competitividade internacional.
- Limão: aumento de 12% em valor e 5% em volume (167 mil toneladas), impulsionado pela crescente demanda internacional, por seu sabor único.
- Mamão: o Espírito Santo lidera com vários tipos: papaia, formosa e outros. A diversificação permite produzir ao longo do ano e garantir o suprimento constante dos mercados interno e externo. Foram exportadas 37,8 mil toneladas.
- Maçã: aumento de 24% em valor e 3% em volume (36 mil toneladas). A diversidade de mercados conquistados ilustra sua qualidade (sabor, crocância e suculência) e competitividade: Índia, Bangladesh, Irlanda, Portugal, Reino Unido, França, Rússia, Espanha, Emirados Árabes Unidos, Holanda, Suécia, Arábia Saudita, Catar, Colômbia, Honduras e Nicarágua.
- Abacate: aumento de 128% em valor e 142% em volume (26 mil toneladas). Nutritivo, sua qualidade e sabor estão associados à alimentação saudável.
A abertura de mercados prossegue com apoio do Ministério da Agricultura e Pecuária e da Apex. Neste ano, inspetores da Malásia vistoriaram áreas produtoras de maçã no Rio Grande do Sul e de melão no Rio Grande do Norte para abertura de mercado.
As exportações em 2023 foram recorde e pouco. Muito pouco. O Chile, quase sem área agrícola e água, exportou de frutas frescas em 2023 mais de US$ 8 bilhões. De seis a sete vezes mais que o Brasil. Diz um provérbio alemão: Auch Zwerge haben klein angefangen. Anões também começaram pequenos. O Brasil começou pequeno na exportação de frutas. Cresce todo ano. Já não é pequeno. Crescerá mais, por bem das águas, da tecnologia e do empreendedorismo dos fruticultores. Só falta mesmo salvar esta gente, textualmente, como grafou o escrivão real em 1500:
Agoas sam mujtas jmfimdas.
Em tal maneira he graciosa que querendoa aproueitar
darsea neela tudo per bem das agoas que tem.
pero o mjlhor fruito que neela se pode fazer
me pareçe que sera saluar esta jemte.
e esta deue seer a principal semente que vosa alteza
em ela deue lamçar.
(Pero Vaaz de Camjnha)
Leia também “A poluição oculta do setor de fretes marítimos”
País e terra abençoada, aqui tudo se da.
Côco é excelente. Além de sua água e os derivados, existem estudos sobre o casco ter utilidade na construção civil.
Uma aula sobre fruticultura brasileira ministrada pelo Dr° Evaristo.
Um primor de artigo onde conheci a fruta pão que nunca tinha ouvido falar.
Mas o Brasil é o maior produtor mundial de ladrão, que honra!
IMAGINA quanto poderíamos exporta e CONSUMIR internamente caso fosse investido os recursos de nossos impostos corretamente na geração de riqueza exportando… 6 bilhões anuais para partidos políticos, 5 bilhões para artistas ricos, 40 bilhões de bolsa família sendo que 50% desses são vagabundagem..ONGs recebem 1 bilhões ano, coach e influencer recebem milhões dós órgãos institucionais para falarem porcaria…
Já imaginou…aplicados na irrigação, armazenamento, embalagens resistentes e transporte?!?
Dr. Evaristo é um dos maiores conhecedores da agropecuária nacional. Cada um de seus artigos na Revista Oeste é uma aula. Sempre com dados, fontes e informações. Neste, sobre a fruticultura, oferece um resumo e uma análise muito adequada desse setor tão dinâmico. E além disso combate e denuncia o anacronismo e a superficialidade de quem nunca leu a Carta de Pero Vaz de Caminha, um tesouro de nossa história. Gente que leva a seu “tribunal da história” quem não pode se defender.
Ótimo artigo, quando termina da ate vontade de comer todas essas frutas e nos faz pensar quanto é rico nosso solo e nossas aguas que permitem essa exuberancia. No dia a dia isso para nos é tão fácil que nos faz esquecer qtas pessoas no exterior gostariam de ter essa facilidade nos seus países. Tive oportunidade de ver em outro país, mangas expostas em vitrines acomodadas uma a uma em caixas de presente envoltas em papel de seda !! E muito caras. Que nossos governantes saibam respeitar o agro e tudo o que ele representa para nós.
Mestre Evaristo! Mais um artigo instigante, esclarecedor e saboroso!
Tão saboroso quanto as frutas cuja produção expõe, com clareza e riqueza de estatísticas.
E com a justa correção do erro de interpretação da carta de Pero Vaz de Caminha!