Duas das mais cruciais perguntas da filosofia política são: 1) quem deve governar e sob qual autoridade? e 2) o que o governo deve fazer?. Para o filósofo inglês Michael Oakeshott, (1901-1990), o ato de governar e nossa compreensão a respeito daquilo que é inerente à função do governo são os dois polos por entre os quais oscilam A Política da Fé e a Política do Ceticismo (É Realizações, 2018).
Para a política da fé, cabe a um governo onicompetente com poder ilimitado controlar e organizar a atividade humana com o propósito de aperfeiçoar a humanidade. Para a política do ceticismo, a atividade de governar não está vinculada à busca da perfeição humana e o governo “não deve ser o arquiteto de um modo perfeito de vida”.
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Historicamente, a atividade de governar em diferentes países pende para a política da fé ou para a política do ceticismo, a depender de quem estiver no poder. No âmbito internacional, esses dois polos estão representados no xadrez geopolítico: de um lado, os regimes autoritários ou totalitários representando a política da fé; do outro lado, as democracias liberais alinhadas com a política do ceticismo.
A mudança tecnológica tende a enfraquecer a capacidade de resposta dos governos
Nos países democráticos, no entanto, essa polarização também existe e se revela na contraposição entre projetos de poder que defendem ou que rejeitam a ideia de que a função do governo é moralmente superior a qualquer outra e que os políticos são “os líderes e salvadores da sociedade”.
Os avanços tecnológicos e os novos tipos globais de cooperação e integração representam, concomitantemente, um risco de aumento de poder dos representantes da política da fé e um desafio para a reação da política do ceticismo. A reconfiguração do poder de Estados nacionais para atores transnacionais (movimentos sociais, empresas como Facebook, instituições como WikiLeaks), como mostrou o professor Joseph S. Nye Jr. no recente artigo “The other global power shift”, está em curso graças à tecnologia e estabelece novos desafios nas relações internacionais.
Em seu texto, Nye Jr. alerta para o fato de que “a mudança tecnológica está inserindo na agenda global uma série de questões — estabilidade financeira, clima, terrorismo, crimes cibernéticos, pandemias —, ao mesmo tempo que tende a enfraquecer a capacidade de resposta dos governos”.
No caso da disputa entre Estados Unidos e China, temos um claro exemplo de tipos de governo que, prontamente, poderíamos enquadrar como representantes da política da fé (o chinês) e da política do ceticismo (o americano). Se não há dúvida quanto ao regime socialista chinês, esse enquadramento é condicional no caso dos Estados Unidos. Quando o governo norte-americano fortalece sua democracia liberal no plano doméstico e reage contra seus agressores internacionais, identifica-se com a política do ceticismo. Quando faz negócios com governos autoritários e se aventura a impor democracia mundo afora, identifica-se com a política da fé.
A política do ceticismo deveria orientar a atividade governativa no Ocidente
O governo comunista chinês desenvolve há anos uma estratégia que combina hard power com sharp power. Para isso, utiliza todos os meios disponíveis, inclusive tecnológicos, para consolidar sua posição internacional. Trata-se de ações políticas e econômicas direcionadas não só a outros governos, mas a empresas e indivíduos. O aumento do poder global chinês representa o crescimento da política da fé levada a cabo por um governo comunista.
É parte do drama atual que isso aconteça com a colaboração de países ocidentais, que deveriam ser um contraponto a esse projeto. Parece ser sintoma preocupante da indiferença acerca da política da fé e de um enfraquecimento nacional e internacional da política do ceticismo, que deveria orientar a atividade governativa no Ocidente. E, quando se discute um novo arranjo internacional, há sempre sugestões que, na prática, resultariam num governo mundial onicompetente com poder ilimitado. A grande beleza das relações internacionais é justamente sua natureza anárquica.
Por tudo aquilo que ocorreu de negativo no século 20, não podemos correr o risco de permitir a ascensão global de políticos, empresários, ativistas que representem a política da fé e que acreditem ser “os líderes e salvadores da sociedade”. Se isso ocorrer, seremos as vítimas imediatas de um governo com poder ilimitado para controlar nossa vida. Nesse momento, não haverá mais espaço nem para questionamentos do tipo quem deve governar, sob qual autoridade e o que o governo deve fazer.
Sobre a guerra fria entre EUA e China, leia também os artigos “TikTok: um app bobinho no centro do equilíbrio mundial”, de Dagomir Marquezi, e “O Ocidente em guerra com seu passado”, de Frank Furedi
Bruno Garschagen é cientista político, mestre e doutorando em Ciência Política no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa) e autor dos best-sellers Pare de Acreditar no Governo e Direitos Máximos, Deveres Mínimos (Editora Record).
Parabéns Bruno, o artigo mostra a realidade atual que vivemos na guerra entre democracia e comunismo.
Boa Bruno, ótimo artigo. Obrigado mais uma vez revista Oeste, por existir!
Gostei muito do objeto deste texto, pois me mostrou duas concepções que eu não conhecia ainda: a política da fé e a política do ceticismo. Como foi em parte insinuado pelo autor no texto, acredito também que toda a desgraça do século XX tenha sido causada por essa nefasta política da fé. Proíbem-se as religiões, mas a fé em alguma coisa permanece. E uma fé sem Deus é pior ainda. Mas existe. Para uma nação que vive derrubando as mais altas cruzes das igrejas, seria muito bom tomar cuidado com sua fé. Para piorar ainda mais as coisas, há tempos venho pensando que o Ocidente, desgraçadamente, vem perdendo as patentes de sua democracia. Antigos aliados já não parecem mais antigos aliados, cada um fazendo sua democracia com o tempero de casa. Infelizmente, materializando um outro agravante, todos, ao que parece foram todos mesmo, desmontaram os engenhos de seus terreiros para montá-los no terreiro de um potencial inimigo. Tudo porque, dizem os mais entendidos, os mercados não têm ideologia. É mesmo? Me apontem alguma coisa que não possua ideologia, pois gostaria muito de saber. Além do mais é sempre bom lembrar de algo que alguém já disse: “Guerras não dizem respeito a ninharias, mas quase sempre começam por uma ninharia”. Que o Senhor tenha misericórdia de nós!
Que absurdo! Viva o corporativismo!
Com os seus defeitos a democracia é a única forma do cidadão ter sua individualidade respeitada.
O artigo e a revista desta semana está muito boa.
isso! Muito bom.
Excelente.