E chegamos à semana da Páscoa. Para os católicos, como eu, o tempo quaresmal que antecede o fim de semana da morte e ressurreição de Jesus Cristo é um dos mais importantes do ano.
A Quaresma é uma época significativa no calendário litúrgico da Igreja Católica, observada como um momento de reflexão, arrependimento e renovação espiritual, mas suas lições podem ser levadas até para outras áreas do nosso cotidiano. O período começa na Quarta-feira de Cinzas e dura aproximadamente 40 dias, culminando exatamente no Domingo de Páscoa. O número 40 tem um significado simbólico, representando os 40 dias que Jesus passou jejuando no deserto, conforme relatado na Bíblia.
De acordo com os Evangelhos, logo após seu batismo no Rio Jordão, Jesus foi conduzido pelo Espírito Santo ao deserto, onde jejuou por 40 dias e 40 noites. Durante esse período de isolamento e privação, Jesus enfrentou diversas tentações que são amplamente interpretadas como representativas dos desafios espirituais e morais que enfrentaria em seu ministério terreno.
As tentações de Jesus no deserto são descritas em detalhes nos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, como quando o diabo levou Jesus a uma alta montanha e mostrou-lhe todos os reinos do mundo e sua glória, oferecendo-lhe poder sobre eles em troca de adoração. As tentações no deserto não apenas demonstraram a resistência de Jesus às seduções do mal, mas também serviram como um exemplo de sua completa submissão à vontade de Deus e sua autoridade sobre as forças espirituais das trevas. Essa experiência preparatória no deserto foi crucial para fortalecê-lo para o ministério que viria, destacando sua humanidade e divindade em harmonia perfeita.
Do ponto de vista filosófico, a Quaresma pode ser vista como um momento para os católicos se envolverem em autoexame e introspecção, contemplando sua relação consigo mesmos, com os outros e com o divino. É um período de disciplina espiritual, marcado por práticas como jejum, oração e penitências, com o objetivo de aprofundar a conexão com Deus e promover um senso de compaixão pelos outros.
No cerne, a Quaresma convida os católicos a confrontarem suas próprias vulnerabilidades, fraquezas e limitações, reconhecendo sua humanidade e a necessidade de crescimento pessoal e transformação. Através de atos de autorrenúncia e sacrifício, as pessoas são incentivadas a transcender seus desejos materiais e a concentrar-se nos aspectos espirituais da vida, promovendo um maior senso de humildade e gratidão. Além disso, a Quaresma serve como um lembrete da impermanência da vida e da inevitabilidade do sofrimento. Ao abraçarem os desafios e lutas encontrados durante este período, os católicos são encorajados a cultivar resiliência, perseverança e força interior, inspirando-se no exemplo da jornada de Jesus Cristo até a cruz.
Durante este tempo, há uma rara oportunidade de purificação espiritual e renovação que nos mostra um caminho para uma apreciação mais profunda da celebração da Páscoa e da promessa de redenção e nova vida. É também uma oportunidade para embarcar em uma jornada de autodescoberta.
Para este ano, além de um jejum diário de algumas horas, eu decidi acrescentar a missa diária como uma obrigação para ser realizada durante o período. Sabendo que o compromisso não seria fácil, e não foi, planejar as celebrações e os horários entre voos, viagens e trabalho foi um quebra-cabeça desafiador. À medida que os dias iam avançando para o centro da Quaresma, para o meu “deserto”, as lições se expandiam, e o que no início era para ser uma “penitência” passou a ser uma carência.
Neste período, visitei muitas igrejas. Das mais antigas e elaboradas, como a Missão de Santa Bárbara, aqui na Califórnia, ou a Basílica do Mosteiro de São Bento, em São Paulo, a uma simples missa celebrada no salão de festas de uma pequena paróquia em Cuiabá, em Mato Grosso, em razão de reformas na sua igrejinha. Todas, absolutamente todas as celebrações, desde os belíssimos cantos gregorianos até um simples violão, trouxeram sempre uma reflexão para o dia. E foi no meio dessa correria que ouvi em uma pequena igreja em São Paulo o que parece ser uma necessidade dos atuais tempos — a necessidade do silêncio.
No calendário de celebração de santos na Igreja Católica, o dia 19 de março é marcado como Dia de São José. Para a minha família, o dia também representa uma data de profunda tristeza — a morte do meu pai, figura central na minha vida e, hoje, minha mais importante voz em minha assembleia de vozes.
No Novo Testamento, São José é retratado como um homem justo que aceita silenciosamente seu papel como pai terreno de Jesus. Apesar de não haver nenhuma linha de fala atribuída a ele nos Evangelhos, suas ações falam volumes sobre seu caráter.
São José é reverenciado como um modelo de paternidade, incorporando qualidades como desprendimento, proteção e orientação. Sua presença silenciosa na vida de Jesus mostra a importância de liderar pelo exemplo, em vez de apenas palavras.
Há aqueles que pensam que São José não é uma figura importante por não haver citações mais elaboradas sobre sua pessoa na Bíblia. No entanto, é exatamente no silêncio de São José que temos o símbolo de contemplação e reflexão interior. Na quietude de seu coração, ele é capaz de discernir a vontade de Deus e responder com uma fé inabalável em tempos difíceis.
Em um mundo cheio de ruídos e distrações, a virtude do silêncio personificada por São José tem imensa relevância. Estamos conectados 24 horas por dia em tudo. As televisões dormem ligadas, os celulares sempre do nosso lado (quem nunca acordou no meio da noite e olhou as redes sociais ou as notícias?), as plataformas digitais podem engolir horas do nosso precioso dia. Relacionamentos? Não gostou? Troca. Troca. Troca. Tudo pelo aplicativo. Música? Nos ouvidos o tempo todo. As pessoas estão em um silêncio vazio em mesas de restaurantes olhando para seus celulares como zumbis, enquanto há outra pessoa sentada na mesma mesa também mexendo no celular. O “silêncio” caótico de músicas, notícias, aplicativos e redes sociais que grudaram em nossos olhos e devoram nossos minutos está dizimando um tempo sagrado de real silêncio e conexão.
Confesso que, quando iniciei minha “promessa” de missa diária nesta Quaresma, o quase absoluto silêncio da igreja em um dia de semana, às 6h30 ou 7 horas da manhã, foi algo diferente e desafiador. Aos montes, os pensamentos sobre as tarefas daquele dia vinham à cabeça. Na primeira semana, eu me senti mal por estar ali sem conseguir filtrar, ou mesmo impedir, os pensamentos diversos sobre tantos assuntos que invadiam minha mente. Aos poucos, à medida que as semanas passavam, percebi que um processo de desintoxicação acontecia, como qualquer vício, e meu tempo ali asseava meu espírito.
O silêncio e a contemplação das igrejas forjados em minha “penitência” diária começou a se transformar em premência. Comecei a perceber que a quietude de todas as manhãs me oferecia uma oportunidade para a reflexão sobre pensamentos, emoções e experiências — mesmo estando em silêncio — que eu não encontrava com a mesma qualidade no meu dia.
O silêncio oferece uma oportunidade para nos conectarmos com nossos valores mais íntimos, crenças e aspirações
Ao longo das semanas, percebi que a necessidade do silêncio das manhãs nas igrejas passou a ser vital em algum momento do dia, mesmo em casa. Em um mundo rumoroso, cheio de notificações, alertas e conversas constantes, o silêncio permitiu que eu me concentrasse melhor nas tarefas em mãos. Até algumas conversas significativas surgiram nos momentos de silêncio nas últimas semanas. Ao permitirem pausas nas conversas, sem celulares, as pessoas têm a oportunidade de realmente ouvir umas às outras e entender as perspectivas umas das outras. O silêncio pode promover conexões mais profundas e um real entendimento das situações, encorajando a atenção plena e a prática de estar totalmente presente no momento, sem julgamento.
Em um mundo onde a poluição sonora é prevalente, respeitar momentos de silêncio demonstra consideração e respeito pelos limites dos outros — mas também pelos nossos. Não podemos nos tornar pessoas melhores para nossa família ou comunidade se mergulhamos na poluição sonora de nossos irrefreáveis pensamentos.
No meio das complexidades e incertezas da vida, o silêncio oferece uma oportunidade para nos conectarmos com nossos valores mais íntimos, crenças e aspirações. Seja através de oração, meditação ou uma simples contemplação silenciosa, o silêncio pode nos ajudar a encontrar clareza e significado em nossa vida.
O silêncio de São José é frequentemente visto como um reflexo de sua força interior e confiança em Deus. Apesar de enfrentar incertezas e desafios, ele permanece firme e obediente à orientação divina — um testemunho de sua humildade e confiança nos desígnios divinos. São José aceita voluntariamente seu papel em um plano mais elevado sem buscar reconhecimento ou elogios — outra necessidade do mundo moderno mergulhado no caos digital e vertiginoso.
Que esta Páscoa traga temperança para os nossos insanos dias, muitas vezes mergulhados nos excessos.
Talvez a vitória contra nocivas tentações e a saída de nossos “desertos” estejam exatamente na incômoda quietude de um necessário deserto que já não existe mais.
Leia também “A gente somos inútil”
Pois é Ana, aos 78 anos tive sempre a fé cristã católica porém sem a frequência a liturgia da Quaresma que tão bem você nos ensina. Permita-me repetir tua excelente mensagem neste artigo, que destaco: “através dos atos de autorrenúncia e sacrifício, as pessoas são incentivadas a transcender seus desejos materiais e a concentrar-se nos aspectos espirituais da vida, promovendo um maior senso de humildade e gratidão”.
Todos sabemos que nosso irmão cristão católico Geraldo Alckimin é de notável profissão de fé na igreja católica e conhecedor da mesma liturgia da Quaresma e da fé cristã que você nos ensina, porém não entendo como consegue dormir, aplaudindo e enaltecendo Flavio Dino (comunista católico?), no altar de uma missa em homenagem a posse de ministro do STF, com as seguinte louvação: “quis o destino que Flavio Dino fosse na hora certa e no momento certo nosso Ministro da Justiça e Segurança para salvar a democracia do golpismo”. Que sentimento tem essa figura com patriotas cristãos sem antecedentes criminais que estão sendo severamente castigados e penalizados, mesmo sabendo da farsa montada pelo governo de Flavio Dino?
Maravilhoso texto Ana! Há alguns anos tenho frequentado a missa todos os dias, exceto sábado. Essa quietude e a presença de Jesus na hóstia consagrada faz um grande bem à alma.
Muita paz
Excelente, Ana. Parabéns pelo artigo.
Excelente, Ana. Parabéns pelo artigo.
Muito bom artigo Ana, só permita-me uma pequena exortação como um ex Frei Franciscano que sou, nunca considere ir ao Santo Sacrifício da Missa como uma penitência, participar do sacrifício diário de Jesus no altar da Santa Missa é a maior dádiva e tesouro que uma alma pode receber nesta vida, pois ali acontece o maior milagre que já aconteceu e acontece todos os dias na Missa, o milagre da transubstanciação, onde encontramos o Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo Imolado por nossos pecados, nunca existirá maior milagre na vida terrena, e dela só recebemos graças, participo da Santa Missa diária há 22 anos, e os efeitos disso na vida são incomensuráveis. Mas muito bonito o seu testemunho.
Texto maravilhoso Ana.
São José:
“Influencer”, pelas vias da prática do exemplo e do silêncio, comunicação difícil, pode ser perfeita, profunda.
Parabéns Ana Paula Henkel, pelo lindo e tocante texto.
É no silêncio que se encontram as soluções. Parabéns!! Excelente artigo.
Eu só poderia mesmo esperar mais um virtuosíssimo texto da Ana Paula Henkel. Parabéns, campeã!
Excelente artigo, trazendo para todos nós o real significado da quaresma, mortee o sofrimento e humilhação de Jesus até sua ressurreição. O silêncio e a relevância de São José são pontos fundamentais para mim.A importância do exemplo que São José nos deixou,é fundamental em nossas famílias, é ouro.O silêncio renova nossa alma e nos trás a paz tão especial nos dias atuais. Sempre me afasto no silêncio, é uma cura abençoada para vivermos.
mais um belo artigo Ana Paula Henckel !
sem dúvidas vc é um exemplo a ser seguido
que fé, que disciplina, verdadeiramente uma mulher virtuosa ! parabéns
Como a música precisa de silêncio , a alma também precisa de silêncio . Parabéns Ana Paula Henkel.
Ana, que bom sentir a magia do cristianismo ressoar de um lugar tão inesperado, imerso profundamente na política e na tecnologia! Que Deus te abençoe e te guarde! Gostei muito de você expor seus sentimentos cristãos.
Texto excelente de profunda reflexão espiritual. Obrigada Ana Paula!
Ana, a sua disciplina e determinação são faróis para mim, que tenho 28 anos. Sou de Petrópolis e vim para São Paulo passar a Semana Santa com a minha família daqui, após assinar os 10 anos da Oeste e ficar de 14h às 22h30 no evento de autógrafos. Foi sensacional ver meus amigos de todo dia e conhecer a audiência maravilhosa. Parabéns pelo seu trabalho e obrigado pela sua influência. Você faz parte da minha assembleia de vozes.
Os textos da Ana sempre emocionam, e também tivemos(eu e minha esposa) o prazer de ter o autógrafo dela no nosso exemplar, bem como dos outros amigos de Oeste, foi sensacional!
Ana Paula, tomo a liberdade de sugerir-lhe o livro-entrevista de alguém muito especial, o cardeal africano Robert Sarah, produzido em parceria com o escritor Nicolas Diat, especialista em assuntos da Igreja. Seu título: “A FORÇA DO SILÊNCIO – CONTRA A DITADURA DO RUÍDO”, com prefácio do falecido Papa Emérito, Bento XVI, editado pela Fons Sapientiae. Uma preciosidade para quem, como você, empreendeu esse mergulho (sem volta) na dinâmica silenciosa de vida dos monges da Ordem dos Cartuxos, fundada no distante ano de 1084. Caso tenha-o lido, perdoe-me a impertinência da sugestão. Todavia, é certo que seus leitores irão apreciar a leitura. Obrigado pela brilhante reflexão sobre os reais Fundamentos da Quaresma e a riqueza da Celebração do Tríduo Pascal! Que o Bom Deus proteja e alimente essa sua jornada espiritual. Parabéns!
Obrigado pela sugestão, gosto da leitura de livros católicos, ainda mais prefaciado pelo grande papa Bento XVI.