A primeira vez que ouvi falar de Javier Milei foi quando a jornalista argentina Viviana Canosa me perguntou se eu estava de acordo com as previsões apocalípticas que o — na época — comentarista econômico fazia sobre o futuro argentino.
Pesquisei sobre o economista pessimista. E me deparei com uma figura particular: cabeludo, despenteado, que falava com muita paixão e quase sempre no limite do respeito por quem não pensava como ele. Algumas vezes fora desse limite.
Sua forma de falar era direta, por momentos agressiva, com muito conteúdo acadêmico e um discurso a favor das ideias de liberdade (em todos os seus sentidos), de modo que era impossível não prestar atenção.
Aquele personagem televisivo foi crescendo, e muitos canais de comunicação disputavam sua presença. Ter Javier Milei na tela ou no rádio era sinônimo de audiência. Nem sempre pelos seus conteúdos, que muitas vezes eram muito técnicos, mas, sim, pela sua forma de expressar suas ideias. Quase sempre, é claro, o atual presidente era provocado por quem o entrevistava, para que ele perdesse a racionalidade e começasse a proferir xingamentos com alto teor de agressividade.
O alvo preferido de seus insultos eram os políticos, a quem ele denominava “a casta”, e o foco principal de seus ataques era o populismo de esquerda.
A faixa etária de seu público começou a se ampliar. Javier Milei já era admirado pelos jovens de todas as classes sociais, sem importar o nível de educação, a renda nem a localização geográfica.
Na época pré-covid-19, Milei já tinha desenvolvido, com sua forma particular de falar, a chamada “batalha cultural” com outros profissionais liberais. Muitos argentinos aprenderam o significado de “anarcocapitalista”, “equilíbrio fiscal”, “inflação é um fenômeno monetário”, “os políticos não defendem os eleitores”, “a maioria deles é corrupta”, “eles tiram proveito da população” etc.
Milei reclamava com razão do corporativismo político e incluía nesse saco os governistas e grande parte da oposição. Na época o líder do governo era Alberto Fernández.
O atual presidente ingressou na política por intermédio do atual deputado liberal José Luis Espert, a quem todos os liberais, Milei incluso, denominamos “o professor”.
No começo de 2021, Espert lançou o espaço político Avanza Libertad (não confundir com o atual partido do presidente, denominado La Libertad Avanza).
Lembro de ter conversado com Milei na época em que ingressou na política, e ele falou que seu objetivo era unir o liberalismo argentino. Mas Milei tinha um problema a resolver: precisava começar a usar mais em suas falas o pragmatismo de um político, e menos o exagerado formato de comentarista disruptivo e quase sempre agressivo com quem não aceita suas ideias.
O precipício logo ali
O até então candidato a deputado brigou com Diego Giacomelli, a quem chamava de “meu irmão”, coautor de vários livros e companheiro inseparável nas visitas aos canais de televisão argentina. Brigou com quem foi um de seus mentores econômicos, Ricardo López Murphy (ex-ministro de Defesa, de Economia, e duas vezes candidato à Presidência da República. Atual deputado pelo Republicanos Unidos, partido que eu mesmo ajudei a constituir). Brigou com quem o lançou na política, José Luis Espert — e foi aí que nasceu o La Libertad Avanza, de Milei, como contraponto ao Avanza Libertad, de Espert. Brigou comigo, quando tive a ousadia de questionar o defendido projeto de fechar o Banco Central. Nesse brigar com tudo e todos, foi eleito deputado federal pela cidade de Buenos Aires, com 17% dos votos.
Milei não tinha partido político próprio. O Libertário não havia conseguido sua inscrição como tal. Teve de aceitar uma agremiação emprestada, mostrando a seus opositores que, para fazer política, às vezes era preciso contrariar seus valores.
Assim que assumiu como deputado federal, engrossou seu discurso contra o espectro político em geral. Suas falas destacavam que os políticos tradicionais eram nefastos e incapazes de tirar a Argentina da crise em que estava havia tanto tempo. Isso teve um preço que seria pago mais à frente.
Não demorou muito para que Milei se colocasse como pré-candidato à Presidência da Argentina. E o eleitorado observou que, do jeito que estava e com os possíveis candidatos que apareciam, a Argentina mudaria de gestão, mas não mudaria de rumo. O precipício estava logo ali.
Milei começou a aparecer como um candidato fora da política tradicional. O desastrado governo de Alberto Fernández e o crônico desrespeito pelas contas públicas abriram caminho para que Milei começasse a sonhar com o triunfo eleitoral.
O empurrão final foi dado quando a sociedade de baixa renda se tocou de que a estratégia do governo populista de esquerda dos Fernández (Alberto e Cristina) era, sim, defender a igualdade social. Mas não para que quem tivesse pouco pudesse ter mais. E sim para que quem tivesse algo perdesse o que tinha, e passasse a depender do Estado.
O kirchnerismo havia conseguido mudar o significado da sigla PIB de um índice econômico (“produto interno bruto”) para um índice social: “pobres, inflacionados e brutos”.
Quando o segundo turno das eleições presidenciais colocaram frente a frente Sergio Massa e Javier Milei, a maioria do eleitorado, mesmo o que tinha votado em Fernández quatro anos antes, resolveu mudar o rumo. Ao final, as opções ficaram definidas: podiam votar no oficialista Sergio Massa, que prometia resolver os problemas que ele mesmo tinha ajudado a criar. Ou davam o voto de confiança a quem tinha um equilíbrio emocional questionável, mas parecia ético, sem casos de corrupção nas costas e com propostas opostas — cortar os benefícios dos políticos, trabalhar para conter de uma vez por todas a inflação, e focar seu governo em voltar a ter equilíbrio fiscal. E Milei se elegeu presidente dos argentinos.
Acordo fracassado
A situação do esquema político e de governabilidade de Javier Milei começou com mais desacertos que acertos.
Milei não tinha nenhum governador ou prefeito eleito pelo seu partido. Contava com apenas 38 deputados (entre 257 no total) e apenas sete senadores (entre 72). Ele precisava optar entre duas alternativas numa situação atípica: ou negociava com “a casta política” que tanto tinha criticado e aceitava que sem ela não poderia governar, ou rompia com o Congresso, o que deixaria seu governo altamente comprometido.
Escolheu a primeira opção e, no confronto legislativo inicial, percebeu que, além de ter poucos deputados e senadores, nenhum tinha experiência legislativa.
O governo de quem não tem experiência no esquema político sentiu na marra que criticar políticas públicas na televisão é diferente de viabilizar que suas propostas avancem num Congresso com muita experiência e muita manha política
O resultado foi desastroso: enviou uma “lei ônibus” com mais de 600 reformas de leis anteriores, que terminaram reduzidas a pouco mais de 300. Finalmente a lei teve de ser retirada da pauta de negociação, já que fatalmente não seria aprovada.
Esse foi o preço que Milei teve de pagar pela sua fala agressiva contra quem ele precisaria ter como aliado. As reformas propostas por ele teriam de começar todo o trajeto legislativo de novo.
Milei tentou, até agora sem sucesso, armar uma aliança de governabilidade com o partido Proposta Republicana (PRO), do ex-presidente Mauricio Macri. O fato de ter entre seus ministros uma ex-ministra e candidata a presidente como Patricia Bullrich (atualmente ministra de Segurança) e Luis Petri, companheiro de chapa de Bullrich (atualmente ministro da Defesa), parecia facilitar as coisas. Mas esse acordo também fracassou por desentendimentos entre o ex-presidente Macri e a irmã e pessoa de ultraconfiança de Milei, Karina. (Ele apelidou Karina como “o chefe”, demonstrando que ela é quem de fato define muitas das decisões do governo liberal).
Milei acha uma brecha
Passaram-se mais de cem dias do governo que se mostrava como uma nova forma de fazer política. Mas o governo de quem não tem experiência no esquema político sentiu na marra que criticar políticas públicas na televisão é diferente de viabilizar que suas propostas avancem num Congresso com muita experiência e muita manha política. Quando “o sistema” detecta ameaças, não há esquerda nem direita. Todos são um só — e Milei novamente ficou sozinho e isolado.
Nos próximos dias, a ampla lei de reformas (“lei macro”, ou “lei ônibus”) voltará a ser debatida. Mas Milei mudou a estratégia de negociação: propôs um pacto fiscal com os estados provinciais e reuniu a maioria dos governadores para garantir que, se eles pressionarem seus senadores a aprovarem a lei, terão recursos para obras e para pagar o funcionalismo público.
O IVA, o imposto de renda e o CPMF da Argentina (imposto aos débitos e créditos bancários), somados, perderam 27% no último ano. Como são os impostos coparticipados por lei com os estados provinciais, as províncias argentinas precisam de recursos extras — e foi aí que Milei achou uma brecha para negociar.
Os impostos não coparticipáveis (que se arrecadam com as importações de bens e serviços) aumentaram 302% no cálculo interanual.
Em resumo, como base de negociação para a aprovação da lei, Milei tinha recursos que não precisava enviar às províncias.
O pacto está previsto para ser assinado no dia 25 de maio, e até lá a lei precisa estar aprovada no Congresso.
Trata-se de dois projetos vinculados. De um lado, uma lei com reformas estruturais — trabalhistas, do tamanho do Estado, da emergência econômica por um ano, e com a possibilidade de privatizar todas as empresas estatais. Do outro, um pacto fiscal com moratória para devedores e para declaração patrimonial, modificação do imposto de renda, supersimples, bens pessoais etc.
As grandes vitórias liberais
No aspecto econômico, as promessas de campanha de Javier Milei foram cumpridas sem exceção.
A Argentina teve superávit nas contas públicas nos meses de janeiro e fevereiro. Não somente no denominado superávit fiscal (gastou menos do que arrecadou depois de mais de dez anos que isso não acontecia), mas também no superávit nominal (o superávit se manteve, mesmo depois do pagamento dos juros da dívida pública).
O compromisso com a redução no tamanho do Estado chegou para ficar: de 22 ministérios no governo Fernández, Milei deixou apenas nove.
Foram extintas quase 50% das secretarias e 30% das subsecretarias.
Carros dos altos funcionários do governo foram vendidos, benefícios foram cortados.
Milei determinou que o salário do presidente e até os de subsecretários não teriam aumento, já que o ajuste teria de ser para todos, e não apenas para a sociedade. Isso permitiu que, mesmo com uma situação econômica deplorável, a população argentina em geral aumentasse o limite da paciência política na esperança de uma melhora na situação econômica e social.
A interrupção na emissão monetária, o resultado fiscal e o compromisso com o ajuste na máquina pública mostraram resultados imediatos nos indicadores macroeconômicos:
- A inflação, que estava em 25,5% ao mês em dezembro, está com tendência forte de queda e ficou em 13,2% no mês de março.
- Os títulos da dívida argentina, que valiam 22% do valor de fase quando Milei assumiu como presidente, cotam a 60%.
- O risco-país, que mais parecia um programa de milhagem e havia chegado a 4,5 mil pontos, está hoje em 1,5 mil.
- O dólar perdeu 20% do valor (na Argentina, a cotação do dólar nunca havia caído), e as reservas internacionais voltaram a subir.
Na contramão, o governo Milei desregulou a economia e anulou todos os decretos que regulavam, subsidiavam ou interviam em diversos setores.
Essa medida provocou um aumento gigantesco nas tarifas de serviços públicos. Gás, energia e transporte tiveram aumentos de até 400%.
Mudanças de hábitos
Esses aumentos, não acompanhados pelo aumento do salário, provocaram inclusive mudanças nos costumes da população. No interior do país, era comum sair cedo de casa para o trabalho, voltar ao meio-dia, tirar uma soneca e retornar ao trabalho.
O preço de cada passagem, que era de 270 pesos (o equivalente a R$ 1,40 real), passou para 1.000 pesos (R$ 5). Essa mudança fez as pessoas evitarem voltar para casa ao meio-dia e pedirem revisão no horário de atendimento de comércios e empresas.
Os planos de saúde foram desregulados também e tiveram aumento de 165% nos três primeiros meses do ano. O governo está investigando se isso foi acertado entre as empresas, o que conformaria cartel, proibido pela legislação.
Esse aumento levou mais de 500 mil usuários a deixarem de pagar pelo plano de saúde e migrarem para um desabastecido e antiquado serviço público de saúde. Que não tem estrutura nem para atender quem já o demandava, muito menos a quantidade de usuários adicionais. Segundo analistas, o número de pessoas que terão de deixar o atendimento privado pode superar 1 milhão.
O único fator que permite sustentar tantos ajustes sobre as classes baixas e médias da sociedade argentina é a percepção da população de que a classe política também está sendo obrigada a fazer ajustes.
Milei acabou com o uso de salas VIP por autoridades que precisam viajar, suspendeu o aluguel de aviões para viagens ao exterior, e ele mesmo viaja em voos comerciais. Os ministros e secretários devem viajar na classe econômica e sem mordomias.
Menos Estado, melhor futuro
Milei demonstrou três coisas que ninguém no mundo poderia admitir (mesmo que fossem fáceis de imaginar):
1. Que o Estado é um obstáculo para os interesses do cidadão honesto e suas aspirações legítimas de prosperidade material.
2. Que o socialismo — em qualquer uma de suas versões — é um câncer abominável que aniquila em todas as nações o desejo de ser bom e competitivo.
3. Que os programas e políticas sociais, exercidos com tanta insistência por todas as castas governantes do mundo, são mecanismos eficazes para roubar dinheiro em massa, fingindo ajudar os fracos, mas na realidade transformando os detentores de baixa renda em escravos da ajuda do Estado.
Com uma semântica irrefutável, Milei saiu de um canal de televisão em que criticava um modelo econômico e político ultrapassado para ser um dos líderes da direita latino-americana. Provando que, quanto menor é o Estado e quanto menos ele interfere artificialmente na economia, melhor será o futuro do cidadão comum. Pelo menos daquele que deseje se esforçar para ter um futuro melhor.
A luz no fim do túnel
A única e grande dúvida é se Javier Milei conseguirá o apoio da sociedade para insistir e perdurar na proposta de redução do Estado, de desregulação econômica e de não intervenção do governo nas atividades corriqueiras da população. Mais ainda considerando que os poderosos sindicatos argentinos (todos de esquerda) continuam ameaçando o presidente com greves gerais. Greves motivadas unicamente pelo intuito de pressionar o governo a persistir na modalidade anterior de fazer política, repartindo recursos para amigos e sem se importar com o nefasto resultado dessas políticas públicas.
O caminho será difícil para todos os argentinos.
Para os políticos, que perderam seus atrativos benefícios, mas que têm no seu ativo a possibilidade de mostrar o compromisso final com seus eleitores.
Para a sociedade em geral, pois será um ano de muitas carências econômicas e sociais. No entanto, desde que a população enxergue que todos, igualmente, estão fazendo o esforço de tirar a Argentina da lama, o limite da paciência para observar melhoras na vida do argentino comum poderá ser esticado.
Milei tem nas suas mãos a oportunidade de mostrar ao mundo que governos liberais, conservadores e politicamente do centro à direita têm condições de tirar muita gente da pobreza, de melhorar a forma de vida de quem reside num país tão rico (e tão mal administrado até agora) como a Argentina, de gerar riqueza, de aumentar investimentos, de dar educação digna, saúde e maior segurança para um país devastado pela esquerda, mas com a visão de uma luz no fim do túnel.
Todos desejamos que essa luz não seja de um trem no sentido contrário, denominado populismo de esquerda. Que venha com toda a intenção de deter uma nova forma de fazer política e uma nova forma de administrar um país.
E, se assim for, então que VIVA LA LIBERTAD!
Gustavo Segré é argentino, analista internacional, escritor e conferencista.
[email protected]
Leia também “O XXVI Encontro do Foro de São Paulo visto de dentro”
Em toda mudança e normal ver aqueles que se beneficiam da desgraça alheia querer manter somente seus privilégios e ignorar o resto da população. Vivemos uma crise mundial de honestidade….
Gostei de ver o relato do Segré, ele sempre foi cauteloso com o sucesso do governo Milei. Acho que dependerá prioritariamente da paciência do povo argentino. A esquerda é assim, sempre gastadora e jogando a bomba para o próximo, e termina caindo nas graças dos burros imediatistas.
Que esses bons ventos cheguem ao Brasil que hoje possui as mesmas mazelas.
Precisamos urgentemente retroceder esse sentimento de esquerda em todo globo terrestre, já que sabemos, com a Internet que esse é o caminho do caos
Gustavo Segré, seu artigo é esclarecedor.
A falácia de Estado social nunca existiu.
O que esses governantes socialistas e progressistas fazem é retirar recursos de alguém para financiar programas “sociais” que na prática funcionam como curral eleitoral.
Sou um torcedor pelo sucesso argentino, embora tenha esquerdista na minha própria família que apostam que ele não terminará o mandato.
Segre, estamos torcendo para o sucesso de Milei nessas reformas na Argentina, e a vitória de Trump nos EEUU. Seguramente voltaremos a ter a democracia e o progresso da centro direita no nosso Brasil e com certeza nos países sul americanos.
Grande Segre. Que Deus ajude e continue a orientar Milei para salvar a querida Argentina das garras do socialismo populista.
Caraco!
Torcer pela Argentina de hoje é torcer pelo Brasil de amanhã…
Torço muito pa Argentina, acredito na boa intenção do presidente Milei
Que com Milei a Argentina volte a ser um país pujante. Riqueza e capital humano não lhe faltam. E que o Brasil também eleja o seu “Milei” em 2026.