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A cachaça foi o primeiro destilado produzido nas Américas | Foto: RHJPhtotos/Shutterstock
Edição 219

A rainha dos destilados

A cachaça é a segunda bebida alcoólica mais consumida no Brasil, depois da cerveja

Evaristo de Miranda
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Assim que os homens aparecem no passado distante da História, os vemos viciados no uso de certas substâncias cuja finalidade não é alimentá-los, mas proporcionar-lhes, quando sentirem necessidade, um estado temporário de euforia e conforto agradáveis, uma sensação de aumento do bem-estar subjetivo.
(Louis Lewin, farmacologista berlinense, 1850-1929)

Com a proximidade do inverno e a queda progressiva das temperaturas, aumenta o consumo de destilados. Entre eles, reina a cachaça. Cachaça é a denominação legal de uma aguardente de cana produzida apenas no Brasil. Sua matéria-prima exclusiva é o mosto fermentado do caldo da cana-de-açúcar e outros subprodutos da produção do açúcar. Seu teor alcoólico deve estar entre 38% e 48% em volume a 20 °C (Decreto nº 4.851/2003, artigo 92). Fora desses critérios, a aguardente recebe muitas denominações (“caninha”, “pinga”, “malvada”…). Não o label de cachaça, reconhecido em vários países.

A palavra “cachaça” tem origem espanhola. “Cachaza” designa “espumas e impurezas que sobrenadan en el jugo de la caña de azúcar al someterlo a la acción del fuego” (Dicionário Histórico da Língua Espanhola). Em português, a palavra derivou para designar o produto desse processo de fermentação e destilação. Um lusitanismo. Milênios antes de surgirem os destilados, bebidas fermentadas existiam em todos os continentes. Foi longo o caminho para chegar à cachaça.

As bebidas fermentadas existem desde o Neolítico. Quase tão arcaicas quanto a agricultura. Os traços mais antigos de álcool (de 8 mil anos atrás) foram achados em potes de vinificação na Geórgia (região de Shulaveri). Na China, em Jiahu, encontraram-se sinais da fermentação de mel, uvas selvagens, arroz e milheto (de 7000 a.C. a 6600 a.C.).

O hidromel é uma das mais antigas bebidas alcoolizadas. A ele deve-se a lua de mel. No Império Babilônico, era costume o pai da noiva oferecer ao genro tanto hidromel quanto possível, no mês seguinte ao casamento. Esse mês, lunar, era chamado de lua de mel. Na Grécia Antiga, o hidromel era a ambrosia ou o néctar dos deuses. Era consumido por celtas e vikings.

O hidromel é uma das mais antigas bebidas alcoolizadas | Foto: Kuttelvaserova Stuchelova/Shutterstock

A cerveja resulta da fermentação de cereais e é tão antiga quanto o hidromel na Ásia, na Mesopotâmia e no Egito dos faraós. Trabalhadores das pirâmides eram pagos com cerveja, considerada mais saudável (e nutritiva) em comparação às águas do Nilo.

O vinho é obtido pela fermentação da uva (vinificação). O filósofo grego Teofrasto aborda o vinho no Tratado da Embriaguez (300 a.C.), assim como Aristóteles (Do Uso do Vinho e da Embriaguez). Incorporados à eucaristia pelo Cristianismo, uva e vinho espalharam-se com a civilização cristã.

A chicha é uma bebida alcoolizada, feita sobretudo de milho e quinoa (Chenopodium quinoa), consumida por populações tradicionais nos Andes. No Império Inca, a chicha era utilizada em rituais religiosos.

O pulque resulta do suco e da seiva fermentados do agave (Agave americana), e era consumido por maias, astecas e povos da Mesoamérica. Não é uma cerveja. Seu principal carboidrato é um complexo de frutose, e não de amido.

A tiquira, do Norte e do Nordeste do Brasil, uma bebida alcoolizada feita de mandioca, e o cauim, de outras partes do país, derivado do milho, são consumidos por povos indígenas. Na Amazônia, o caiçuma é feito de milho e mandioca.

A maioria dessas bebidas tradicionais são cervejas de cereais, frutas e tubérculos, como a kasiksi, cerveja de banana da África do Leste; o dolo, de milheto e sorgo, da África subsaariana; e o saquê, de arroz, do Japão.

Não há como obter alto teor alcoólico apenas pela fermentação. A quantidade inicial de açúcares e a interrupção do processo pela concentração do álcool produzido limitam o teor a cerca de 18%. Só a destilação pode aumentá-lo.

A destilação é um processo de separação de uma mistura homogênea de líquidos, cujas temperaturas de ebulição são diferentes. Uma fonte de calor separa um gás do líquido, logo recuperado por condensação.

Estoque de cachaça em Paraty, no Rio de Janeiro | Foto: A. Ricardo/Shutterstock

Babilônicos utilizavam técnicas de sublimação para preparar essências e perfumes (do latim “per fumus“, “pela fumaça”, “vapor”). Aristóteles, Plínio, o Velho, e Alexandre de Afrodísia (século 3º a.C.) relatam processos com base em evaporação, como a dessalinização.

No início da Era Cristã, alquimistas gregos criaram processos de destilação. Dioscórides, fundador da farmacologia, em De Materia Medica descreve uma forma de destilação. Sobre a mistura aquecida estendia-se um manto de lã bem limpo. “Essa lã umedecida pela ação dos vapores ascendentes é torcida num vaso e o procedimento repetido enquanto dure o cozimento.”

Do século 2º ao 4º, o aumento da demanda por licores aperfeiçoou as destilarias. A primeira descrição de um “alambique” é do alquimista grego Zósimo de Panápolis (século 4º). Alquimistas no Oriente Médio (século 7º) aperfeiçoaram a destilação para purificar óleos, ésteres para perfumes e álcool. Entre eles, no ano 800, destacou-se Jabir ibn Hayyan, conhecido no Ocidente como Geber, o pai da química árabe.

Geber enunciou vários procedimentos químicos e sistematizou a análise quantitativa de substâncias. Descreveu vários instrumentos, dentre eles o alambique (do árabe الأنبيق, transliteração de “al-anbiq“, do gregoambix“), cuja estrutura básica e o nome ainda são utilizados. Para obter melhor resfriamento e maior quantidade do destilado, Geber desenvolveu o bico prolongado do alambique, aplicado até hoje (colunas de destilação).

Geber, o pai da química árabe, descreveu o alambique, cuja estrutura básica e o nome ainda são utilizados | Foto: Reprodução/British Library

No século 11, a invenção do tubo em espiral de resfriamento revolucionou as destilarias, com obtenção mais rápida e maior das substâncias extraídas. A repetição do procedimento levou a bebidas com um teor alcoólico bem superior às de fermentação: os destilados.

A cachaça é um destilado. Sua história no Brasil coincide com o povoamento português, a expedição de Martim Afonso de Sousa e a fundação da Vila de São Vicente (1532). Em sociedade com comerciantes portugueses e flamengos, Martim Afonso, governador da Capitania de São Vicente, criou a manufatura açucareira de larga escala ao construir o Engenho do Trato.

Sua estrutura era completa: engenho d’água, casa da moenda, casa das fornalhas, casa das caldeiras ou dos cobres, casa de purgar, pastos para os animais e carros de boi para colheita. O engenho trouxe prosperidade ao assentamento português e à Capitania de São Vicente.

Em 1540, quando o engenho foi vendido a Erasmo Schetz, seus produtos já eram negociados com italianos, holandeses, franceses, portugueses e alemães. A família Schetz, católica, ligada aos jesuítas, ergueu uma capela dedicada a São Jorge. O Engenho São Jorge dos Erasmos produzia açúcar (exportação), rapadura e aguardente (consumo interno). Funcionou até o século 18.

Em 1584, Gabriel Soares de Sousa, em seu Tratado Descritivo do Brasil, cita na Bahia 40 engenhos: “21 que moem com água e 15 que moem com bois, e quatro que se andam fazendo”. E, entre eles, “oito casas de cozer meles [méis], de muita fábrica e mui proveitosas”, termo associado a alambiques de cachaça. Do século 16 à metade do 17, engenhos e casas de cozer méis se multiplicaram.

O primeiro engenho de açúcar no Brasil, construído em 1516 na Feitoria de Itamaracá (Capitania de Pernambuco) por Pero Capico, talvez tenha produzido alguma cachaça. Com certeza, a produção de cachaça no Brasil teve início entre 1520 e 1532. E segue, sustentável, há cinco séculos.

A cachaça foi o primeiro destilado produzido nas Américas, bem antes do pisco de uva (1574), da tequila de agave azul (final do século 16) e do rum de cana. A primeira menção escrita do rum é de 1688, na ilha inglesa de Barbados, descoberta pelo navegador português Pedro Campos em 1532 e assim nomeada. Os britânicos colonizaram-na em 1627 e plantaram a cana em 1630. Cem anos depois de Portugal colonizar o Brasil, destilaram o rum.

Segundo o Instituto Brasileiro da Cachaça, a cachaça é a segunda bebida alcoólica mais consumida no Brasil, depois da cerveja (esta só perde no mundo para chá e café!). O consumo de cachaça é superior ao de uísque e ao da vodca. Sua parte no mercado de destilados é de 86%. Movimenta cerca de R$ 16 bilhões por ano e é o terceiro destilado mais consumido do mundo. A produção de cachaça é de 1,3 bilhão de litros por ano: 70% industrial e 30% artesanal. São Paulo é o maior produtor industrial: cerca de 44% da produção nacional e 48% das exportações. Minas Gerais lidera na cachaça artesanal, superior a 300 milhões de litros por ano.

A cachaça é a segunda bebida alcoólica mais consumida no Brasil, depois da cerveja | Foto: Shutterstock

Quase 7 mil marcas de cachaça estão registradas no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (Inpi). No passado, os rótulos eram veículos de comunicação de acontecimentos políticos, sociais e de registros históricos. No Museu da Cachaça (em Lagoa do Carro, Pernambuco) há mais de 15 mil rótulos. Cerca de 40 mil agricultores, na maioria pequenos e informais, produzem cachaça, mesmo em áreas inadequadas ao plantio da cana-de-açúcar.

A produção cresce em qualidade. Diferentemente de outros destilados, a cachaça, quando armazenada, é envelhecida em mais de 30 tipos de madeira. Resultado: variedade de cores, aromas e sabores. A Indicação Geográfica, na modalidade Indicação de Procedência, dada pelo Inpi, sempre certifica novas cachaças. A cadeia produtiva da cachaça gera mais de 400 mil empregos diretos e indiretos.

Cerca de 6,9 litros de cachaça são consumidos por brasileiro ao ano. Ela é companheira do brasileiro no prazer, na alegria e na tristeza

Em 2023, o Brasil exportou mais de US$ 20 milhões em cachaça para quase cem países, cerca de 10 milhões de litros, por meio de uma centena de empresas e cooperativas exportadoras. Os principais destinatários são Alemanha, Estados Unidos, Portugal, França e Itália. Agora, a Austrália entrou na lista. O país exigia envelhecimento em barril de madeira aos destilados importados. Exigência incompatível com a produção da cachaça, não envelhecida. Após gestões em Camberra e na OMC, em março de 2024 abriu-se o mercado australiano à exportação da cachaça brasileira.

Todas as bebidas alcoólicas são valorizadas e reprovadas. Cerca de 6,9 litros de cachaça são consumidos por brasileiro ao ano. Ela é companheira do brasileiro no prazer, na alegria e na tristeza. Exemplo dessa mescla de sentimentos são os ingredientes da caipirinha (cachaça, açúcar, limão e gelo). Surgiu no interior de São Paulo (Piracicaba), daí seu nome. Remédio na Gripe Espanhola (1918), foi exaltada na Semana de Arte Moderna (1922) como símbolo da cultura gastronômica nacional. Em 1995, entrou na lista de coquetéis da International Bartenders Association.

A cachaça abre o apetite e é saideira. Com ela abriu-se e encerra-se este artigo. Um gole ao Santo, um crédito antes de cometer o pecado. E saúde!

Leia também “O Sol na terra”

20 comentários
  1. Letícia Mammana
    Letícia Mammana

    O artigo do professor Evaristo é uma nova aula sobre a história dos fermentados e destilados e com muitos detalhes desconhecidos. Impressionante. Tudo isso como uma espécie de tapete vermelho sobre o qual caminhamos no texto até chegar ao trono dessa rainha dos destilados, a nossa cachaça. Mais um tesouro em nossa herança e raízes lusitanas! Trabalho primoroso. Parabéns! E saúde!

  2. VITOR EDUARDO CIPRIANO DE OLIVEIRA
    VITOR EDUARDO CIPRIANO DE OLIVEIRA

    Muito legal esta reportagem, mais uma aula. Mandei a um amigo. Goulart o maior colecionador de cachaça do Brasil.

  3. Valesca Frois Nassif
    Valesca Frois Nassif

    Artigo delicioso! Parabéns !

  4. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Excelente conteúdo.

  5. Marise da Graça Espindola
    Marise da Graça Espindola

    Cachaça também é cultura. Ótimo texto. Hoje um golfinho vai bem, tá muito frio aqui em Santa Catarina….

  6. Sandro Luis Batista Soares
    Sandro Luis Batista Soares

    Só de ler o texto já fiquei embriagado. Ufa.
    Mas falando sério, meu pai faleceu por ser um viciado em cachaça, que pena, alcóolatra mesmo partiu muito cedo.
    Muito triste.

  7. JOSE CARLOS GIOVANNINI
    JOSE CARLOS GIOVANNINI

    UFA ! ! !

  8. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Tinha um amigo meu da década de 1970, era um cachaceiro inveterado, ele dizia que ia na barraca de dona fulana, e perguntava, tem mé?
    Ao que ela respondia, mé, temos. A cunhada não gostava dele e o alertava, “Acaba com essa cachaça Luiz,” —- Como, se quanto mais eu bebo, mais vejo as prateleiras cheias

  9. Dario Palhares
    Dario Palhares

    Álcool é droga. Legalizada, mas droga. Destrói famílias, mata milhares no trânsito. Droga. Aceitá-lo é uma coisa, fazer apologia é outra. Pelo fim da propaganda de bebida alcoólica! Já! Tal com feito com o tabaco.

  10. Nelson Ramos Barretto
    Nelson Ramos Barretto

    Meu amigo Paulo Henrique fazia uma cachaça muito boa chamada “Segredo de Balthazar”, nome de seu avô que viveu mais de cem anos. Excelente artigo Dr. Evaristo!

  11. Domingos de Souza
    Domingos de Souza

    Artigo primoroso, como todos os textos do dr. Evaristo
    Parabéns

  12. Alcindo De Azevedo Barbosa Junior
    Alcindo De Azevedo Barbosa Junior

    O artigo me fez ver que tenho um crédito de hidromel a receber do sogro…

    1. Felipe Correia
      Felipe Correia

      Boa, Alcindo. Pensei a mesma coisa durante toda a leitura. Vou cobrá-lo.

  13. Ubirajara garcia
    Ubirajara garcia

    Uai aprendi muito. Alguém está bebendo a minha parte. Eu não bebo 6.9 litros por ano. Parabéns pelos esclarecimentos valiosos.

  14. Alice Helena Rosante Garcia
    Alice Helena Rosante Garcia

    Como piracicabana não posso deixar de admirar esse artigo tão bem escrito sobre a cachaça.
    Meu mestre nessa arte foi meu saudoso pai que me levava nos alambiques e ia me ensinado os segredos do “saber beber” e apreciar uma bebida bem feita. Saude !!

  15. José Menezes
    José Menezes

    Interessante a minudente história da origem dos destilados e no Brasil a importância e popularidade da nossa cachaça.
    Parabéns mestre Evaristo pelo artigo.

  16. Paulo Ricardo
    Paulo Ricardo

    E aí vem a esquerda lacradora dizer que a cachaça é chamada de “aguardente” por causa do ardor que as gotas dela, condensadas no teto dos alambiques em que era destilada, provocavam ao cair sobre as costas dos escravos, lanhadas pelas chibatadas do feitor. E tem gente que se acha muito sabida por acreditar nessa lorota ridícula, como se não bastasse sentir a queimação de um trago de cachaça descendo goela abaixo para saber que se trata realmente de uma “água ardente”.

    1. José Pedro Scatena
      José Pedro Scatena

      Parece que esta fantasia se refere ao surgimento da denominação de “pinga” dado à cachaça, com a condensação dos vapores nas telhas, “pingando”nos escravos.

  17. Omar Antonio Henning
    Omar Antonio Henning

    MEUS CUMPRIMENTOS AO DR. EVARISTO POR ESTE EXCELENTE ARTIGO -ALIÁZ, COMO TODOS AQUELES QUE JÁ ESCREVEU!!

  18. RCB
    RCB

    Quando morei em Roma tive um diretor americano apaixonado pela cachaça. Sempre que eu vinha ao Brasil, pedia uma garrafa. Mesmo não tendo a variedade e a excelência das cachaças artesanais hodiernas, usava sempre como digestivo, após as refeições. Apreciava o sabor da cana de açúcar que não encontrava no rum.

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