Há 35 anos a foto de Jeff Widener, editor de fotografia da agência de notícias Associated Press, rodou o mundo e se tornou símbolo da resistência ao regime totalitário do Partido Comunista Chinês. A imagem, conhecida como Tank Man (“Homem dos Tanques”), mostra um jovem estudante chinês tentando impedir, sozinho, o avanço de uma fila de tanques de guerra do Exército de Libertação Popular (ELP) na Avenida Chang’an, em Pequim, nas proximidades da Praça da Paz Celestial (Tiananmen), palco de um dos maiores massacres da História. Em uma entrevista para o Correio Braziliense, em 2019, Widener relatou o seguinte:
“Eu sabia que era uma boa foto. Outros colegas me disseram que era uma boa foto. Eu sabia que países ao redor do mundo a publicariam e que era simbólica, uma imagem muito forte, a qual não desapareceria com o tempo. Muitos anos depois, eu estava em casa, navegando na internet, quando a AOL trouxe uma história sobre as dez fotos mais memoráveis da História. Fiquei curioso. Entre aquelas fotos, havia a da garota atingida pelo bombardeio de napalm [de autoria de Nick Ut], a do desastre do dirigível em Hindenburg, a do homem recebendo um tiro na cabeça em Saigon. Todas imagens icônicas que eu tinha visto quando criança. Então, vi uma fotografia colorida, e era o meu ‘Homem dos Tanques‘. Eu quase chorei. Foi uma sensação incrível, como se tivesse sido atingido por um raio. Foi quando percebi que tinha captado algo extraordinário.”
Os protestos em Pequim tiveram início após a morte do ex-líder comunista Hu Yaobang, em 18 de abril de 1989. Hu era pró-democracia, a favor das reformas políticas e da liberdade econômica. Ficou conhecido também por iniciar uma discussão pública para pôr fim ao “culto cego” ao fundador da República Popular, Mao Tsé-tung. Estudantes em luto marcharam até a Praça da Paz Celestial para reivindicar melhores condições de vida, um governo mais democrático e menos corrupto.
As manifestações se intensificaram em maio. No dia 4, 100 mil estudantes e trabalhadores marcharam em Pequim pedindo reformas e a abertura de diálogo com o governo. No dia 15 de maio de 1989, a Praça da Paz Celestial seria palco de uma grande parada militar para recepcionar o líder soviético Mikhail Gorbatchev. Dois dias antes, milhares de estudantes ocuparam a praça e deram início a um protesto silencioso, que incluía uma greve de fome. Queriam ser ouvidos pelas lideranças do governo e pedir mais abertura política e menos corrupção.
Em reação, o governo decidiu mudar a recepção de Gorbachev para o aeroporto da capital. O líder soviético foi embora no dia 18 de maio. Mas a imprensa internacional, convidada a presenciar o encontro, resolveu permanecer para acompanhar o protesto dos estudantes. O governo percebeu que a situação havia saído de controle na medida em que as manifestações ganharam repercussão internacional.
Uma manifestação em 19 de maio atraiu cerca de 1,2 milhão de pessoas. Uma estátua de 10 metros de altura, a Deusa da Democracia, foi construída em quatro dias e colocada na praça.
“Havia uma atmosfera de carnaval e leveza no ar”, lembrou Widener. “Acho que a maior parte da mídia foi envolvida em todo o caso, e pessoalmente achei incrível que houvesse uma estátua da democracia do outro lado do Boulevard Chang’an, que enfrentava o retrato gigante de Mao, que simboliza o comunismo.”
Nas semanas seguintes, milhares de pessoas juntaram-se aos estudantes para protestar contra os governantes comunistas. Ao fim do mês, havia manifestações e greves em mais de 400 cidades da China. Intolerante, o governo liderado pelo secretário-geral do Partido Comunista, Deng Xiaoping, e pelo primeiro-ministro, Li Peng, decretou a lei marcial em 20 de maio. Dias depois, tropas foram mobilizadas, e dezenas de tanques se aproximaram das maiores cidades do país, especialmente Pequim. Mas o estado de exceção não afastou os manifestantes. A população cercava os veículos, impedindo que eles avançassem. O exército então recuou e se reagrupou nos arredores das cidades. Parecia uma vitória do povo.
Até que, na noite de 3 de junho, a violência tomou conta de Pequim. Militares começaram a atirar em quem se colocasse na frente. Por volta das 4 horas da manhã do dia 4, quando as notícias dos ataques nos arredores da praça já eram bem conhecidas, os manifestantes acampados foram cercados. Receberam ordem para se retirar. Enquanto a maioria obedecia, outros grupos tentaram resistir. Foi quando os tanques de guerra começaram a manobrar pela cidade abrindo fogo. Ao amanhecer do dia, centenas (talvez milhares) de pessoas foram mortas nas ruas da cidade. As estimativas variam muito, e o número real segue um segredo de Estado. Ambulâncias que tentaram transportar feridos também foram atacadas. O exército chinês reprimiu brutalmente os civis de seu próprio país.
Nos arredores do local, na manhã do dia 5 — quando o exército já controlava a situação, mas centenas de manifestantes ainda tentavam retomar o controle sobre a praça —, câmeras de TV de emissoras ocidentais e as lentes de Widener registraram o momento mais icônico do episódio: um jovem usando uma camiseta branca se posicionou diante de um tanque.
O soldado tentou manobrar o veículo, mas o jovem se movia para o lado, bloqueando a passagem apenas com o seu corpo. O manifestante chegou a subir sobre a máquina. Posicionado ali, trocou algumas palavras com o militar. Na sequência, foi afastado por outros manifestantes. Até hoje a identidade desse jovem é desconhecida. Também não se sabe o que aconteceu com ele. O exército só deixaria a praça depois de dois meses, e a lei marcial terminou apenas em janeiro de 1990.
Diante da repercussão internacional negativa, Estados Unidos e Europa embargaram a venda de armas para a China. Esse embargo nunca foi retirado. Nos meses que se seguiram, o governo prendeu milhares de cidadãos e passou a fiscalizar suas famílias. Quem foi libertado passou a ter dificuldade em conseguir emprego e era vigiado diariamente. Até 2016, ainda havia manifestantes do massacre presos. Outros migraram para o exterior.
Ainda hoje, o governo proíbe qualquer menção ao assunto ou possíveis buscas de informações na internet. O massacre é muito mais conhecido no resto do mundo do que dentro do próprio país. Mas em Hong Kong e em dezenas de outros países asiáticos cada aniversário do massacre costuma ser celebrado com procissões silenciosas e velas acesas.
Tank Man, como foi apelidado pelos meios de comunicação internacionais, tornou-se um símbolo de coragem e resistência. O massacre da paz celestial nunca será esquecido.
Daniela Giorno é diretora de arte de Oeste e, a cada edição, seleciona uma imagem relevante na semana. São fotografias esteticamente interessantes, clássicas ou que simplesmente merecem ser vistas, revistas ou conhecidas.
Leia também “Depois da chuva”
Inesquecível para quem viu. Os jovens desconhecem o valor e importância desse gesto solitário que tanto representou naquele momento . Um segredo q jamais será revelado .
Horrores do comunismo.