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Enchente no Rio Grande do Sul, em 1941 | Foto: Fotos Antigas/RS
Edição 219

Pilatos nas águas

Inventaram um novo nome para a enchente: catástrofe climática. O nome induz à ideia de que a culpa é do clima, e aí não precisa dragar, cuidar de encostas, fiscalizar construção de pontes e aterros

Alexandre Garcia
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Ex-prefeitos de Porto Alegre, todos de esquerda, emitiram nota criticando a falta de manutenção do sistema de proteção da capital contra cheias. Alceu Collares, Olívio Dutra, Tarso Genro, Raul Pont e José Fortunati — todos foram prefeitos a partir de 1986. Todos foram responsáveis pelo que agora criticam. Mas lavaram as mãos nas águas do Guaíba e fizeram a nota falando em “indignação”, de olho na eleição de outubro, em que o prefeito Sebastião Melo, que não é esquerdista, é forte candidato à reeleição.

As águas no Rio Grande do Sul fizeram emergir no tempo um livro lançado em 2009: A Enchente de 41, da Editora Libretos, com pesquisa e texto de Rafael Guimaraens. Ganhou importância e atualidade porque, sem as emoções de hoje, o documentário permite que o leitor perceba os motivos da catástrofe de agora. Afinal, é para isso que serve a História: para que aprendamos com o passado a evitar a repetição de tragédias. Tudo muito parecido, com a diferença de que, nos 15 primeiros dias de maio de 1941, choveu 619,4 milímetros em Porto Alegre; hoje, passados 27 dias de maio, choveu 513,6 milímetros.

As calhas dos rios que não foram limpas jogaram a água das chuvas para fora. Ambientalistas conseguiram impedir as dragagens apelando ao Ministério Público

Por que, então, as águas do Guaíba estiveram mais altas agora? Em 1941, ficaram 4,75 metros acima do nível; agora, 5,25 metros — meio metro acima. A resposta está em todos os lugares em que as águas já recuaram: meio metro de lama. Além de meio metro de lama, desde 1941 foram depositados nos rios areia, detritos, sujeira, lixo. O calado do Guaíba era de 6 metros até recentemente, mas hoje é de 4. Aqui em Brasília, antes da estação das chuvas, sempre limpo as calhas de minha casa, para tirar as folhas. Se não fizer uma faxina, elas vão transbordar. Assim, as calhas dos rios que não foram limpas jogaram a água das chuvas para fora. Ambientalistas conseguiram impedir as dragagens apelando ao Ministério Público. Então as águas, em vez de saírem pelo leito dos rios, extravasaram por toda parte.

Enchente no Rio Grande do Sul, em 2024 | Foto: Douglas Pfeiffer

Semelhanças até nos incêndios: em 1941, foi consumida pelo fogo a fábrica Secco & Cia, na Júlio de Castilhos; em 2024, no domingo 26 de maio, foi o prédio da Autoglass, no bairro Humaitá. O número de mortos por leptospirose foi cinco numa Porto Alegre que tinha 272 mil habitantes; hoje, até agora, sete já foram levados pela doença e há quase 150 casos confirmados. O governo federal ficou meio distante, embora a mídia procurasse mostrar que não. Getúlio Vargas enviou um telegrama ao interventor Cordeiro de Farias dizendo que “o governo federal está pronto a colaborar”, mas concluía sem decisões: “Desejo que o prezado amigo continue a informar-me minuciosamente sobre as ocorrências. Cordiais saudações, Getúlio Vargas”. O Diário de Notícias traduziu isso com uma manchete ufanista: “Auxílio Total ao Rio Grande”. Quanta semelhança com 83 anos depois…

No capítulo final, o livro relata as atuais medidas de proteção a Porto Alegre. Diques de 68 quilômetros e um espesso muro de concreto com 2.647 metros de extensão, 3 metros de altura e 3 metros no solo, tudo construído entre 1971 e 1974 pelo Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS), no governo Médici. O livro, que é de 2009, relata a campanha da esquerda para derrubar o muro, porque foi feito no tempo dos militares; os ambientalistas ajudavam, alegando que o muro separa Porto Alegre do Guaíba. Sob essa pressão, a Câmara de Vereadores aprovou em 1997 uma lei para derrubar o muro, “ante o clamor do movimento ecológico”. Em agosto de 1983, o muro foi pela primeira vez testado. As águas subiram e tratou-se de fechar os oito portões/comportas de aço de acesso ao cais. Tudo emperrado. Fecharam com tratores e guindastes puxando os portões.

Depois disso, vieram os prefeitos que assinaram a nota crítica. Todos sabiam que o sistema precisava de manutenção. O tempo passou e isso só se agravou. Ao lado disso, inventaram um novo nome para a enchente: catástrofe climática. O nome induz à ideia de que a culpa é do clima, isto é, do Sol, cujas explosões regulam a temperatura dos oceanos, o que resulta em mais ou menos chuva, frio e calor. Aí não precisa dragar, cuidar de encostas, fiscalizar construção de pontes e aterros, impedir edificação em lugar de enchentes periódicas, nem cuidar dos diques, bombas, muros e comportas. Basca cuidar do pum da vaca e da geração de carbono. Não ouviram o rugido das águas do Taquari-Antas em setembro. São os Pilatos que nada fizeram.

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23 comentários
  1. Hans Herbert Laubmeyer Filho
    Hans Herbert Laubmeyer Filho

    No alvo. Parabéns!

  2. Hans Herbert Laubmeyer Filho
    Hans Herbert Laubmeyer Filho

    No alvo. Parabéns!

  3. Carmen Fernandez Pardo
    Carmen Fernandez Pardo

    A nossa escola atualmente não ensina mais nada, tudo é culpa do capitalismo , precisamos de mais alimentos pq há mais pessoas no mundo, ninguém mais precisa de proteína. Triste mundo hoje com esses ambientalistas medíocres

  4. Vanessa Días da Silva
    Vanessa Días da Silva

    A mudança climatica é uma falacia que serve aos interesses dos globalistas

  5. Vera Marta Romualdo
    Vera Marta Romualdo

    I competência é o nome

  6. Vera Marta Romualdo
    Vera Marta Romualdo

    I competência é o nome

  7. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Certeira a comparação do Rio com uma simples calha de uma residência. Uma hora a conta chega.

  8. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Alexandre, o seu artigo desmascara qualquer tentativa de minimizar a falta de ação do estado.
    O índice pluviométrico de 1941 e 2024 escancaram a falta de ações corretivas.
    Assim é o Brasil e suas obras públicas em toda nossa infraestrutura.
    Responsabilizar o clima pelas enchentes é o mesmo que atribuir ao número de carros os problemas de trânsito nas médias e grandes cidades brasileiras.

    1. Carmen Fernandez Pardo
      Carmen Fernandez Pardo

      Certeiro nos comentários, pena que somos poucos com inteligência para ler, imprensa dominada.

  9. Antonio Carlos Neves
    Antonio Carlos Neves

    Alexandre, parabéns por tão bem conhecer o R.G.do Sul e essas catástrofes de longa data, mas creio que o SISTEMA vai te enquadrar como NEGACIONISTA.

  10. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Se a água chega com uma velocidade levando tudo que encontra pela frente, não é água da chuva. É água de um ato terrorista

  11. ANDRÉ LUÍS AUGUSTO DE OLIVEIRA
    ANDRÉ LUÍS AUGUSTO DE OLIVEIRA

    Ótimo artigo e excelentes colocações mostrando nossa precária situação política.
    Quando aqui houver políticos honestos realmente focados em soluções, sem perderem tempo com vedetismo, seremos um país sério para abordagem das catástrofes, não se reunindo com conselhões formados por entes que não correspondem ao problema, mas sim com técnicos, cientistas e engenheiros.
    A contenção das águas e de encostas tem sim solução, bastam honestidade e inteligência.
    O povo Holandês com problemas muito maiores do que no Brasil conseguiram vencer as águas e vivem hoje abaixo do nível do mar em segurança.
    No YouTube tem um documentário chamado: A barreira contra o mar holandesa mega construções onde podemos ver a seriedade como o problema foi tratado.
    Um dia quem sabe as autoridades e os políticos brasileiros adquirirão consciência moral e honestidade para resolver o problema do RS para que os gaúchos não sofram mais.

  12. Alzira Conceição Pacheco de Lima
    Alzira Conceição Pacheco de Lima

    Aposto que desta vez nada será feito novamente. Qualquer sugestão de melhoria/manutenção passará pelas inúmeras comissões de desocup

    1. Alzira Conceição Pacheco de Lima
      Alzira Conceição Pacheco de Lima

      de desocupados tentando mostrar serviço, cujo resultado é sempre nulo. Logo ali o fato será esquecido e da próxima vez a catástrofe pode ser pior. Nós já vimos esse filme inúmeras vezes nas mais variadas situações.

  13. Reynaldo Brown do Rego Macedo
    Reynaldo Brown do Rego Macedo

    Parabéns Alexandre. Excelente artigo, síntese muito boa do descaso das administrações do PT, sob influência dos ambientalistas.

  14. Reynaldo Brown do Rego Macedo
    Reynaldo Brown do Rego Macedo

    Parabéns Alexandre. Excelente artigo, síntese muito boa do descaso das administrações do PT, sob influência dos ambientalistas.

  15. Marbov
    Marbov

    E o tal do Plano Marshall Tucano ? Assim que as águas do Guaíba baixarem, os vereadores irão propor a mudança do nome da cidade de Porto Alegre para Venezuelita Alegrita e trocar a frota de carros da prefeitura para botes infláveis.

  16. MNJM
    MNJM

    Catástrofe climática para justificar a incompetência e a irresponsabilidade desses governantes, além dos ambientalistas sem noção da realidade.

  17. Luiz Antônio Alves
    Luiz Antônio Alves

    Tchê, desculpe, mas tenho que te contar uma historinha. Em 1941 o meu avô que morava no interior de São Francisco de Paula (mais ou menos 900m de altitude) disse que choveu 10 dias e 10 noites sem parar. Não dava para sair de casa. Ele chemava os guris para ir buscar no campo as vacas de cria que estavam atoladas nas sangas e banhados. Ninguém queria ir, mas a autoridade dele venceu. UMa cerca foi arrastada, uma taipa de pedras caiu perto da casa e duas serrarias foram levadas pelas águas, uma próximo ao Paasso do Inferno, quem vaii para Canela, e outra na beira do Santa Cruz um pouco mais para cima. E ele dizia: essa aguaria vai lá para a capital. Os filhos: tão longe? – E ele confirmavva. Pois bem. Em setembro do ano passado aqui em cima da serra percebemos que a chuva tinha enchido os rios Antas e Santa Cruz de maneira nunca visto. No fundo da Mulada, a ponte do Korff tinha a água raspando no assoalho. E tem 24m de altura! Quando vimos isto falamos que tinha que avisr o pessoal “lá de baixo” pois a torrente chegaria lá para as bandas do Taquari. Pouca gente deu atenção ao caso, como agora em maio. E sem falar nas 3 pequenas barragens aqui em cima da serra que a imprensa teima dem não falar delas…

  18. Ligia Maria De Bastiani
    Ligia Maria De Bastiani

    A crise climática é uma boa justificativa para explicar as mazelas da nossa administração pública.

  19. Osmar Martins Silvestre
    Osmar Martins Silvestre

    Nosso estimado Alexandre Garcia, sempre excelente, desta feita se superou. A crítica quanto a atribuir-se a coisa toda a uma “catástrofe climática” expôs à luz do dia aquilo que eu já havia pensado com os meus botões há muito tempo e manifestado em alguns comentários que fiz nesta revista ou na igualmente boa Gazeta do Povo. Culpa-se o clima, estufa-se a falácia do aquecimento global, ratifica-se a teoria fajuta da “mudança climática” para isentar os incompetentes devoradores de impostos arrancados do nosso lombo. Eles são responsáveis. Os insanos ambientalistas ajudaram. A incúria do poder público gerou a catástrofe. São Pedro não tem nenhuma culpa.

  20. Andre mendonça
    Andre mendonça

    Todos os prefeitos, inclusive o atual, deveriam estar na cadeia condenados por homicídio doloso pelas mortes causadas pela enchente. Sao irresponsáveis e incompetentes. Mas isso aqui é brasil (com minúscula), e como sempre nada vai acontecer com os bandidos.

  21. João Carlos Raucci
    João Carlos Raucci

    o Brasil , foi Transformado em Republiquetas Africanas Comunistas , O Ultimo que Sair Apaga a Luz .

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Retrato falado da ‘desinformação’
Jorge Antonio Ferreira, 60 anos, fica em pé sobre troncos e galhos carregados pela água em frente à sua casa atingida pela enchente do Rio Taquari, em Arroio do Meio, no Rio Grande do Sul Próximo:
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