Sônia Cardoso Paiva, de 35 anos, tinha uma rotina semelhante à de vários outros brasileiros. Empresária, ela acordava às 7 horas para preparar o café da manhã da filha, Nataly, de 7 anos, que ia de van para a escola. Em seguida, iniciava os atendimentos em seu salão de beleza, localizado em frente à sua casa. Muitas vezes, o trabalho ia até meia-noite. “De terça a sábado era uma correria”, conta Sônia. “Às vezes, eu abria também às segundas. Domingo, era lazer e família.”
Tudo mudou em 3 de maio de 2024. Naquela noite, Sônia e o marido, Fabrício Fagner da Silva, de 37 anos, receberam o aviso de evacuação dos bairros de Mato Grande e Tiago Wirth, na cidade de Canoas, onde moram. “Naquele dia, arrumei uma mochila para cada um”, lembra Sônia. “Calculamos que, pelo histórico da enchente de 1941, a água não chegaria à janela de cima. Então, levantamos alguns móveis.”
O cálculo falhou. Em poucos minutos, a água tomou o lugar. Antes de passar de 1 metro, a família se abrigou no apartamento da irmã de Sônia. No dia seguinte, por volta das 10 da manhã, a água também começou a invadir o prédio, e os três foram para a casa da cunhada da empresária.
É ali que Sônia e sua família continuam até hoje. O casal dorme em um sofá-cama, e a filha, num colchão. A rotina está bem diferente. Nataly não vai à escola. Eles assistem ao noticiário para, quando a água baixar, tentar retornar ao lar e à vida de antes. A fonte de renda de Sônia era o salão, hoje completamente alagado. “Perdi todo o meu material”, afirma. “Minhas colegas também perderam tudo. O prefeito diz que as bombas estão funcionando, mas estamos fora de casa desde o dia 3. Não temos acesso a nada.” Hoje ela faz alguns atendimentos em domicílio com o pouco material que sobrou, graças à divulgação nas redes sociais.
O retrato da tragédia
Um mês depois de as enchentes afetarem mais de 2 milhões de pessoas no Rio Grande do Sul, os gaúchos ainda vivem as consequências do dia 29 de abril, quando os alagamentos se intensificaram. Apesar de as águas do Guaíba recuarem em alguns pontos, os moradores tiveram sua rotina totalmente impactada. Assim como Sônia, muitos se alojaram em casas de parentes ou abrigos. Com empregos e negócios afetados, o povo busca retomar a vida de antes, contando apenas com a ajuda de amigos e voluntários.
Somente nesta quarta-feira, 29, a prefeitura de Canoas disponibilizou à população um sistema de consulta sobre o pedido encaminhado ao governo federal para o recebimento do Auxílio Reconstrução. A iniciativa quer pagar R$ 5,1 mil para cada família afetada, com pagamento realizado pela Caixa Econômica Federal.
A história de Sônia é semelhante à de outras famílias do Rio Grande do Sul. Shirley Ferreira dos Santos, de 42 anos, por exemplo, perdeu a casa inteira na cidade de Alvorada, a 19 quilômetros de Canoas (RS). A família está alojada na casa da cunhada de Shirley, em Porto Alegre (RS). “Moramos há 12 anos em Alvorada e pegamos enchentes praticamente todos os anos nessa região, mas nunca foi tão alta”, afirma. “Ainda está alagada mais de 1 metro. Fomos para a casa da minha cunhada com algumas roupas e um cobertor.”
A rotina de Shirley também se perdeu com as águas. Seu filho, Gabriel, de 8 anos, parou de frequentar a escola, também alagada. “Dormimos na hora que dá sono”, explica Shirley. Marcelo das Neves, seu marido, ainda vai à empresa de caminhões, mas para ajudar na limpeza do local, também invadido pela água. A família ainda aguarda pelo auxílio do governo e vive sem muitas perspectivas. “Não faço ideia de como serão os próximos dias”, lamenta. “Não dá para saber.”
De acordo com o boletim de infraestrutura divulgado na quinta-feira 30 pelo governo do Estado do Rio Grande do Sul, mais de 120 mil estudantes ainda estão sem aulas em virtude das enchentes. Desses, mais de 40 mil não têm sequer previsão de quando vão retornar às salas de aula. Além disso, 42 escolas servem como abrigo para as pessoas que tiveram de deixar suas casas.
A retirada da lama
Para outros moradores, o retorno às casas foi mais rápido. Depois de dez dias longe, a professora Patrícia Machado, de 52 anos, conseguiu ajuda para fazer uma limpeza profunda no local e voltou à residência onde mora com a filha de 14 anos. Mãe solteira, ela ficou hospedada na casa de uma amiga que também mora em Roca Sales, cidade de 10 mil habitantes, enquanto aguardava a água baixar.
Enquanto empresas e pessoas físicas lutam para retomar sua vida, outras iniciativas começam a surgir para a reconstrução do Rio Grande do Sul
No município também estão os pais de Sarah Rabaioli, que precisam reconstruir a casa que, pela terceira vez, foi atingida pelas enchentes. Jalmir, de 61 anos, trabalhava como pedreiro e jogava bocha aos fins de semana. Lemir, de 63, é funcionária aposentada do Estado e cuidava da casa e das cachorras. “O lugar em que meu pai jogava bocha não vai mais abrir, por causa da enchente”, conta Sarah.
Ela alugou para os pais um apartamento em Encantado, a 6,7 quilômetros dali. “Hoje, eles se dividem entre arrumar o apartamento que alugamos e limpar a casa de Roca Sales”, diz Sarah. “Durante mais de três dias, meus pais trabalharam tirando a lama, que estava a quase 1 metro de altura, de dentro de casa.”
Não está morto quem peleia
Apesar de não terem perdido suas casas, os irmãos Melina, Alessandro e Nico Ventre, moradores de Novo Hamburgo (RS), tiveram seus negócios cobertos pela lama. Proprietários do Eat Kitchen, restaurante com quatro unidades no Rio Grande do Sul, eles adotaram um novo lema: “Não está morto quem peleia”. A frase foi estampada em camisetas criadas por Melina, de 46 anos, e Nico, de 42, assim que se depararam com os estragos que a enchente causou na unidade que fica em frente ao Rio Jacuí, dentro de um condomínio.
A ideia do restaurante surgiu depois que os pais deles morreram. “Foi muito triste, porque tínhamos neles e ao redor da mesa todos os nossos melhores momentos, como uma boa família italiana”, lembra Melina. “Ficamos órfãos inclusive disso.”
Até o fim de abril, Melina, Nico e a sócia Carol tocavam as quatro unidades do Eat Kitchen, com seus mais de 40 funcionários, quando receberam o pedido repentino de evacuação. Melina retirou os produtos do freezer do restaurante e colocou-os dentro de um caminhão refrigerado, porque a energia elétrica seria desligada.
À noite, a água do Rio Jacuí avançou com força para dentro do local e arrastou objetos, barro e até uma caçamba para dentro da unidade. “Tudo foi destruído”, diz Melina. “Só consegui entrar no Eat Kitchen em 23 de maio. Foi uma devastação sem precedentes.” A outra unidade do restaurante, que também fica em Porto Alegre, virou um abrigo para os funcionários que perderam tudo.
Por um novo Estado gaúcho
Enquanto empresas e pessoas físicas lutam para retomar sua vida, outras iniciativas começam a surgir em torno da reconstrução do Rio Grande do Sul. É o caso da Igreja Brasa Church, em Porto Alegre. A pastora Janine Montiel, de 50 anos, criou um projeto que arrecada fundos por meio da venda de camisetas e moletons.
Os produtos contém frases e expressões gaúchas, além das cores da bandeira do Estado. O objetivo da ação é voltar parte do lucro para a reconstrução de casas. De cada peça, R$ 40 são destinados a entidades parceiras que ajudam no processo de reforma e limpeza.
O Instituto Caldeira, uma organização sem fins lucrativos que promove atividades relacionadas à inovação e à tecnologia, juntou-se a outros empreendedores para destinar fundos para a reconstrução do Rio Grande do Sul. O projeto Operação de Volta para Casa destinará recursos de forma direta com valor equivalente à compra de um enxoval com itens como geladeira, fogão, micro-ondas, guarda-roupa e cama.
Mas ainda há muito o que fazer. E o poder público é essencial neste momento. De acordo com um estudo da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul, nos municípios afetados estão localizadas 47 mil do total de 51 mil indústrias do Estado. Além disso, o número mais recente indica que há quase 50 mil pessoas vivendo em situações parecidas com as de Sônia e Shirley em cerca de 90% das cidades gaúchas. Como diz a frase da camiseta criada pelos irmãos Ventre, ainda há muita peleia pela frente.
Medição da altura dos rios
- Lago Guaíba – Porto Alegre/Gasômetro: 3,79 m (cota de inundação: 3,60 m no Centro)
- Rio dos Sinos – São Leopoldo: 4,86 m (cota de inundação: 4,5 m)
- Rio Gravataí – Passo das Canoas: 5,29 m (cota de inundação: 4,75 m)
- Rio Taquari – Muçum: 4,89 m (cota de inundação: 18 m)
- Rio Caí – Feliz: 2,98 m (cota de inundação: 9 m)
- Rio Uruguai – Uruguaiana: 8,35 m (cota de inundação: 8,5 m)
- Lagoa dos Patos – Laranjal: 2,21 m (cota de inundação: 1,3 m)
Leia também: “O poder do povo”
Uma tristeza esta situação do povo gaucho.
O marido da dona do salão no começo da reportagem é do PT, PSOL ou PSB?
Reportagem. Que falta faz. Sem muita adjetivação, mais objetividade e menos opinião. Fatos e nomes de pessoas, seus relatos e experiências. Mais leads e sub-leads interpostos dentro de uma narrativa, de forma a compor uma longa história que nem esta que atribula as serras e os pampas gaúchos. Nossa “Oeste” precisa ser dinâmica. Apesar de que sua origem implica numa análise mais apurada dos fatos em si. Todavia, dá para conciliar estas vertentes em um mesmo espaço. Conhecemos bem a opinião de nossos brilhantes articulistas. Mas, precisamos que também nos contem histórias subtraídas da realidade que nos cerca. Boas ou nem tanto. Desde que eivadas da vida das pessoas. Como tem feito nossa jovem repórter escalada para a cobertura no RS. Parabéns, Tauane, você tem alma!
José, muitíssimo obrigada! Fico feliz. Abraço!
Obrigada, José! É ótimo ler isso. Abraço!