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Ministros do STF (à frente) e juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos (atrás) | Foto: Montagem Revista Oeste/Domínio Público/Fellipe Sampaio/SCO/STF
Edição 221

Ações falam mais alto que palavras

Ao contrário dos ministros do STF, os juízes da Suprema Corte americana não têm contas em redes sociais nem participam de convescotes pelo mundo com investigados do tribunal

Ana Paula Henkel
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Na última segunda-feira,10 de junho, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso concedeu uma longa entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura. Diante de amigos do consórcio e em um ambiente bastante confortável, Barroso não foi desafiado a responder perguntas incômodas que qualquer brasileiro com dois neurônios na cabeça e um coração que bate no peito pelo país faria, como, por exemplo: “O senhor acha que temos presos políticos no Brasil?”. Tudo bem, essa é difícil para ativistas, mas poderia ser algo mais fácil, como: “O senhor acha que a Constituição Brasileira está sendo respeitada?”. Pensando bem, deixa pra lá. Essa também é complicada para os militantes da Corte.

Mesmo se a pergunta tivesse sido feita, não sei se ouviríamos o que qualquer nação séria ouviria: “Sim, apesar de alguns debates constitucionais aqui e ali, que fazem parte de qualquer democracia saudável, a resposta é sim! Nossa Constituição está sendo respeitada”. 

Comentar sobre os desmandos do STF virou algo corriqueiro. Faz parte do dia a dia do brasileiro, em qualquer roda. As inconstitucionalidades e o autoritarismo da Corte viraram regra. E o narcisismo dos membros do supremo tribunal político é algo que é difícil de ignorar. Não foi diferente na entrevista do ministro da Corte constitucional que bate no peito orgulhoso para dizer que “derrotamos o bolsonarismo”.

Depois que o pagador de impostos soube que Dias Toffoli, outro ministro do STF, pagou R$ 39 mil do dinheiro público para um segurança acompanhá-lo na final da Champions League, na Inglaterra, Barroso defendeu no chá das cinco da TV Cultura a necessidade de segurança para os ministros, “independentemente dos eventos dos quais participem”.

Ministro Dias Toffoli, durante sessão plenária do STF (5/6/2024) | Foto: Antonio Augusto/SCO/STF

Questionado sobre a publicidade das agendas dos membros do STF, depois de vários terem participado de eventos privados sem informar suas agendas no site do STF, o ministro amigo do terrorista Cesare Battisti defendeu a ideia de que os magistrados da Corte não têm obrigação de divulgar nada, e argumentou que eles não podem viver isolados. Coitados! Barroso afirmou que há uma certa picuinha nas críticas à participação em eventos privados: “Não há uma exigência legal nem regimental, de forma que é um critério de cada ministro”. 

Vocês são muito cri-cri, ficar perturbando ministro ocupado e cobrar o que fazem com o nosso dinheiro? Tsc, tsc… Vocês até hoje não sabem que não precisamos de transparência, basta confiança? Barroso também disse que não há “nada de errado em ter segurança em lugares privados”. Viu? Simples. Ele falou, a gente confia. Povo chato. Cruzes.

YouTube video

A pauta sobre a divulgação de agendas das vossas excelências foi defendida com vigor (estava divertido, acredite!). Lembram quando uma empresa de tabaco com ações no STF patrocinou um encontro em Londres, e alguns ministros foram? Barroso falou sobre essas reuniões super-republicanas também: “Quanto aos eventos, eu acho uma falta de compreensão que tem sido muito explorada recentemente. Os ministros não podem viver encastelados no mundo próprio, a gente conversa com a sociedade. Quando nós conversamos com empresários, há sempre uma repercussão negativa, como se tivesse algo impróprio”. Barroso disse que as críticas feitas aos ministros do Supremo por causa dos gastos com viagens advém da “falta de compreensão” sobre as atividades dos magistrados. Ele acrescentou que eventuais benefícios pessoais de ministros por causa da interlocução com empresários e achar que ministros estão sujeitos a qualquer tipo de influência é “equivocado”.

Até aqui, tudo normal, não é mesmo? Afinal, estamos no Brasil de “juízes” (com aspas mesmo) que torcem e sempre ajudam um lado em campo e estão acostumados a não prestar contas a quem paga seus gordos salários e regalias. O que tornou a entrevista interessante, no entanto, não foram as declarações de vossas excelências e seus atos que, aliás, combinam muito com a atual democracia relativa brasileira, mas uma comparação que se tornou um hábito entre nossos ministros e ministras — e não juízes e juízas. Luís Roberto Barroso, assim como Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes e até o comunista Flávio Dino, citou algumas vezes a Suprema Corte dos Estados Unidos. A comparação que nossos supremos ativistas gostam de fazer aos juízes — sim, juízes sem aspas — da nação considerada um império das leis é um dos elos mais esdrúxulos e egocêntricos que podemos ver.

Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal, no programa Roda Viva, da TV Cultura | Foto: Reprodução/YouTube @rodaviva

First things first. Os juízes da SCOTUS (Supreme Court of the United States), como é chamada a Suprema Corte americana, não têm contas em redes sociais, não participam de convescotes pelo mundo com investigados do tribunal e para falar mal dos Estados Unidos, não interferem inconstitucionalmente em prerrogativas do Executivo ou do Legislativo, não recebem casos que não condizem com a prerrogativa da Corte ou que não são relacionados única e exclusivamente à Constituição do país, não profanam impropérios como “derrotamos o trumpismo”, não chamam os cidadãos de “loser” (algo como “mané” em inglês) e, principalmente, não atuam como tiranos em qualquer caso se não provocados.

Os juízes da Suprema Corte dos EUA devem apresentar declarações de todo e qualquer ganho e disponibilizar publicamente todas as transações financeiras

Há uma série de fatores e uma lista interminável de razões para que jamais comparemos os ministros do STF aos juízes da SCOTUS. Mas para não cansar a beleza dos guardiões de nossa demogracinha, caso eles se interessem por essas informações, ficaremos na comparação que envolve a declaração do ministro Barroso sobre não ter que dar explicações à sociedade sobre os encontros, viagens e as agendas de nossos “juízes”.

Aqui nos Estados Unidos, a Lei de Ética no Governo de 1978 (Ethics in Government Act of 1978 — EIGA) estabelece requisitos específicos para relatórios sobre divulgação financeira para funcionários de alto escalão do governo, incluindo os juízes da SCOTUS e todos os juízes associados da Corte. 

Foto: Reprodução

Os juízes da Suprema Corte dos EUA devem apresentar declarações de todo e qualquer ganho e disponibilizar publicamente todas as transações financeiras. A EIGA foi promulgada, em parte, para “preservar e promover a integridade de funcionários e instituições públicas”. Em outras palavras, para ajudar a atingir esse objetivo, a lei exige, entre outras coisas, que os juízes apresentem declarações financeiras anuais relatando:

• renda de qualquer fonte (exceto do emprego atual no governo federal), incluindo honorários; pagamentos feitos para caridade em vez de honorários; e quaisquer dividendos, aluguéis, juros e ganhos de capital que excedam US$ 200;

• presentes e reembolsos (embora os declarantes não tenham que relatar presentes recebidos de parentes ou comida), hospedagem ou entretenimento;

• interesses em propriedade;

• passivos que excedam US$ 10 mil devidos a qualquer credor que não seja um membro próximo da família (com certas exceções, como hipotecas para residências pessoais);

• transações que excedam US$ 1.000 em propriedade real (exceto residência pessoal) e títulos, posições com entidades externas e principais fontes de remuneração;

• acordos ou arranjos relacionados a outros empregos;

trusts cegos qualificados.

Suprema Corte dos EUA, em sua composição atual. Sentados, juízes Sonia Sotomayor, Clarence Thomas, o presidente do tribunal John G. Roberts Jr. e os juízes Samuel A. Alito e Elena Kagan. Em pé, juízes Amy Coney Barrett, Neil M. Gorsuch, Brett M. Kavanaugh e Ketanji Brown Jackson (30/6/2022) | Foto: Fred Schilling/Domínio Público

Os juízes devem também estar sujeitos às mesmas regras para viagens, presentes e hospitalidade pessoal — exatamente os mesmos requisitos aos quais os membros do Congresso e do Poder Executivo são submetidos. O banco de dados de divulgações financeiras on-line deve ser preenchido todo santo ano por cada juiz.

Aqui está o site onde eu e mais de 336 milhões de americanos podemos encontrar todos os relatórios das movimentações financeiras dos juízes da Suprema Corte pagos com dinheiro dos nossos impostos.

Todos nós sabemos que há um abismo intelectual, principalmente no que se refere à reputação ilibada e notável saber jurídico entre as nossas magnânimas excelências e os justices ianques, mas, se nossos ministros do STF se dessem ao trabalho de copiar pelo menos esse ponto, só esse, dos juízes da SCOTUS a cada vez que abrissem a boca para falar “Suprema Corte Americana”, já estaríamos no lucro.

Alguns historiadores contam que os seguidores de Aristóteles discutiam filosofia enquanto andavam com ele e, por isso, os discípulos do filósofo eram conhecidos como “peripatéticos”, por caminharem e disseminarem suas ideias nas cidades-estado durante as lições do mestre. Eles não apenas o escutavam, mas questionavam e participavam ativamente da jornada — eles “praticavam o que pregavam”.

Detalhe da pintura Escola de Atenas, de Rafael, que retrata Platão e Aristóteles caminhando e discutindo (1509-1511) | Foto: Wikimedia Commons

Aqui nos Estados Unidos há dois ditados que simplificam essa premissa: “talk the talk, walk the walk”, algo como “se vai falar tem que fazer”; e “put your money where your mouth is” , ou “ponha seu dinheiro onde sua boca está”. 

De qualquer maneira, no bom português mesmo, poderíamos resumir a ideia para nossos ministros em uma versão mais moderna e simples, como “ações falam mais alto que palavras”.

Leia também “A liberdade não é de graça”

31 comentários
  1. Reginaldo Corteletti
    Reginaldo Corteletti

    Aqui próspera a vassalagem e a rapina.

  2. Francisco José Coelho de Morais
    Francisco José Coelho de Morais

    #STFGolpista

  3. Ana Regina da Silva
    Ana Regina da Silva

    Os juízes americanos deveriam proibir publicamente os ministros brasileiros, eles nao sao juízes, de cita-los. Isso denigre a imagem dos juízes de fato dos EUA.

  4. Hans Herbert Laubmeyer Filho
    Hans Herbert Laubmeyer Filho

    Excelente.

  5. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    A atual composição do STF certamente nunca será julgada pelos seus crimes, mas ficará na história como a pior composição que esta corte já teve.

  6. Walter Bianchi
    Walter Bianchi

    O povo é o patrão, temos que retomar nosso lugar de destaque nesta equação.

  7. Gilson Herz
    Gilson Herz

    Suprema corte brasileira de canalhas.

  8. robson seiji t koyama
    robson seiji t koyama

    comparar nossas “supremas vossas excelencias” com os pobres juizes americanos nos faz lembrar o quanto os EUA sao “inferiores” ao nosso pais das bananas. No minimo revoltante ver a gastança sem limites dos seres supremos em total descompasso com a realidade do nosso pais isso sem mencionar a postura debochada quando se refere ao povo conservador que empreende e paga pesados impostos. Tem como resetar o jogo e começar com regras que realmente seja bom pro povo???

  9. CARLOS ALBERTO DE MORAES
    CARLOS ALBERTO DE MORAES

    Todos ditadores atuais se dizem democráticos.

  10. Antonio Carlos Neves
    Antonio Carlos Neves

    Que lição Ana. Recomendo portanto que a Revista Oeste crie um programa de entrevistas do tipo DIRETO AO PONTO, criado pelo Augusto Nunes na decadente Jovem Pan, e convide essas celebridades que frequentam esse canhoteiro programa RODA VIVA da TV CULTURA, porque sabem que lá não serão incomodados. Não entendo porque nosso governador Tarcisio ainda não trocou o comando da TV CULTURA. Creio que já pensou Augusto Nunes na direção para tornar um importante meio de comunicação imparcial no Estado de São Paulo.
    Dai, continuo insistindo para que você Ana nos ajude em 2026 candidatando-se ao SENADO FEDERAL, para que finalmente tenhamos um PODER que pode controlar esses inúteis. Creio que Minas Gerais e seus destacados políticos como ZEMA, NICOLAS e outros te apoiarão, para quem sabe termos uma mulher na presidência do CONGRESSO NACIONAL.

  11. Marcus M Riether
    Marcus M Riether

    Enfim, esses “nossos” ministros são uma cambada de vagabundos.

  12. Valter Pinho
    Valter Pinho

    Muito bom Ana, mas as vezes até é melhor não saber de tantas mordomias e privilégios desse povo…. a gente fica com raiva…. porque acaba sempre nisso… nunca muda …. se nós ( leigos) ficamos assim, imagino vcs…..

  13. Ivan Sérgio de Paula lima
    Ivan Sérgio de Paula lima

    Parabéns, Ana! Esclarecedor,como sempre! Será que o iluministro se submeteria a uma entrevista à bancada da Oeste. Não custa convidar! O não já está garantido!

  14. Diogo Machado Menichelli
    Diogo Machado Menichelli

    Ana, parabéns pela matéria. Só me resta acreditar que um dia teremos em nosso STF juízes exclusivamente comprometidos em resguardar a nossa Constituição.

  15. gustavo reboucas da palma
    gustavo reboucas da palma

    A diferença enorme chama-se PATRIOTISMO !!!

  16. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Frequentemente vejo amigos reclamando de atuações de árbitros de futebol nos jogos. Eu nem esquento mais, porque o país está tão esculhambado que, se um juiz da suprema corte e presidente da justiça eleitoral no período pode dizer em alto e bom som que derrotou um candidato, porque um juiz de futebol não pode dizer após a partida que derrotou os flamenguistas ou os tricolores?

  17. Antonio Carlos Hoff
    Antonio Carlos Hoff

    Não prestar conta de nada é tão somente prerrogativa de ditadores pelo mundo afora.

  18. Marcos Aurélio Silveira de Oliveira
    Marcos Aurélio Silveira de Oliveira

    Ana Paula, excelente artigo! Eu fico impressionado como o Min. Barroso tem a desfaçatez de defender os seus argumentos. Das duas uma: ou ele, de fato, acredita no que está falando, em razão de sua cegueira ideológica ou é muito cínico.
    Forte abraço!
    Marcos A. S. Oliveira.

  19. JAQUES Goldstajn
    JAQUES Goldstajn

    Admiro seus artigos, sempre! Li matéria de hoje 16/6 no estadão que pode ser algo importante na mudança de visão do velho jornal!

  20. Frederico Rangel Araujo
    Frederico Rangel Araujo

    Texto com maravilhosos ensinamentos aos nossos urubus de capa .

  21. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Ana esclarecedora, sabemos hoje quem são esses bandidos ladrões comunistas terroristas genocidas narcotraficantes que estão nos comandos. Precisamos agir em conjunto com todas as autoridades pra tirar o país desse abismo gigante que nos encontramos

  22. Carlos Alberto de Oliveira
    Carlos Alberto de Oliveira

    Ana Paula, vc um show. Parabéns.

  23. Elias José de Souza
    Elias José de Souza

    É preciso fazer uma reforma do judiciário urgentemente.

  24. Sergio Durço Carelli Lomba
    Sergio Durço Carelli Lomba

    Artigo seria ótimo se fosse escrito há 10 anos. Com o a atual composição, um time completo de Craques com íntima relação com nosso líder supremo, o que podemos esperar?

  25. Luiz Antônio Alves
    Luiz Antônio Alves

    Aqui no Brasil é o sistema de escolha dos membros do sTF que é funesto. Os cargos na prática são comprados e só um ou dois concorrem, desprezando-se milhares de juízes de carreira. Ou seja, fazer concurso para a magistratura é só para pobres coitados que semper serão subordinados aos que só se habilitaram em conchavos. A pergunta que faltou no programa citado foi: qual a sua opinião sobre o crirtério de escolha do membro do STF? Ou, o senhor sabia que num pulo do gato eliminou milhares de magistrados que poderiam exercer o cargo? A malandaragem fez uma seleção que só uns 2 ou 3 disputam a vaga?

  26. Teresa Guzzo
    Teresa Guzzo

    Excelente artigo, lúcido e didático. Cortes diferentes, países diferentes. O que os ministros do STF estão fazendo,militando e gastando é inaceitável até no continente Africano.Leis não são obedecidas,tornaram-se urubus.

  27. Marcio Cruz
    Marcio Cruz

    Roda Viva , sob direcao da Vera Magalhaes, virou um programa do “consorcio”. Grande maioria dos convidados pertencem ao grupo de amigos do “sistema STF-TSE-Lulismo-“intelectuais”-etc”.
    Quando o entrevistado faz parte do consorcio, a bancada de entrevistadores e amiga, nao investigativa, sem perguntas incomodas…
    Mas se o convidado e da “extrema direita” , a bancada e agressiva, intolerante, impaciente, ironica, questionadora, interrompem sempre o entrevistado, etc

    Uma vergonha para a TV Cultura.

  28. Roberto Gomes
    Roberto Gomes

    O parágrafo final está espetacular. Aqui no Brasil não existe a possibilidade de colocar o dinheiro na boca.

  29. Marbov
    Marbov

    Lá SCOTUS aqui SCROTS

    1. Marbov
      Marbov

      You’ve lost John Doe.

    2. Marcio Cruz
      Marcio Cruz

      otima

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