“Os xiitas iranianos e os marxista-leninistas pertencem à mesma família, já que o clero xiita quer governar a sociedade civil como o Partido Comunista soviético faz”
(Raymond Aron, Memórias, 1983)
Na minha coluna anterior, ao destrinchar o ateísmo cringe e quixotesco de Mario Sergio Conti, mencionei de passagem o caso de Richard Dawkins, fundador do neoateísmo e recém-declarado “cristão cultural”, uma vez que, no confronto com o Islã radical, o Cristianismo lhe parece uma matriz civilizacional mais saudável e compatível com os valores liberais contemporâneos. Citei Dawkins, mas poderia também ter mencionado o caso ainda mais impressionante da escritora somaliana Ayaan Hirsi Ali.
Tendo sido uma radical islâmica na adolescência via contato com a Irmandade Muçulmana, Ali foi morar na Holanda em 1992, onde conseguiu obter asilo ao fugir de um casamento arranjado segundo as regras da sharia. Já em estreito contato com o universo cultural secularista europeu, foi levada ao ateísmo por causa dos atentados de 11 de setembro de 2001. Nesse contexto, Ali chegou a fazer parte do movimento fundado por Dawkins, integrando o time de intelectuais e formadores de opinião para os quais a religião — e, no caso dela em especial, o Islã — é a principal fonte dos conflitos e das guerras no mundo contemporâneo.
Eis que, recentemente, numa reviravolta mais notável que a de Dawkins, Hirsi Ali não apenas se disse uma cristã cultural, mas, em artigo na revista eletrônica britânica UnHerd publicado em novembro do ano passado (com tradução para o português no site Pleno.News), anunciou a sua conversão religiosa ao Cristianismo. Justificando uma decisão tão fundamental, Ali argumentou que só o legado da tradição judaico-cristã pode impedir a vitória das grandes forças hostis ao mundo livre, dentre elas o autoritarismo, o wokeísmo e, claro, o islamismo radical. Em suas palavras:
“Esse legado [do Cristianismo] consiste num conjunto elaborado de ideias e instituições concebidas para salvaguardar a vida, a liberdade e a dignidade humanas — desde o Estado-nação e o Estado de Direito até as instituições de ciência, saúde e aprendizagem. Como Tom Holland mostrou no seu maravilhoso livro Dominion, todos os tipos de liberdades aparentemente seculares — do mercado, da consciência e da imprensa — encontram as suas raízes no Cristianismo.”
Segundo Ali, nem o Islã nem o ateísmo trouxeram-lhe respostas para os dilemas sociais que só o Cristianismo poderá resolver.
“Ao contrário do Islã, o Cristianismo ultrapassou a sua fase dogmática. Tornou-se cada vez mais claro que o ensinamento de Cristo implicava não apenas um papel circunscrito para a religião como algo separado da política (…) Achei a vida sem qualquer consolo espiritual insuportável — na verdade, quase autodestrutiva. O ateísmo não conseguiu responder a uma pergunta simples: quais são o significado e o propósito da vida? (…) Nesse vácuo niilista, o desafio que temos diante de nós torna-se civilizacional. Não poderemos resistir à China, à Rússia e ao Irã se não conseguirmos explicar às nossas populações por que é importante que o façamos. Não podemos combater a ideologia woke se não pudermos defender a civilização que ela está determinada a destruir. E não podemos combater o Islamismo com ferramentas puramente seculares. Para conquistar o coração e a mente dos muçulmanos aqui no Ocidente, temos de lhes oferecer algo mais do que vídeos no TikTok.”
Ignorando totalmente a clássica separação ocidental (essencialmente cristã) entre religião e política, as lideranças religiosas islâmicas são também autoridades políticas e militares
O Cristianismo seria, portanto, o único antídoto para a associação do Islamismo radical com a esquerda revolucionária radical, associação subentendida no argumento de Ali. Essa associação não chega a ser novidade. O caráter de “religião política” do Islamismo, e sua herança na cultura revolucionária europeia, vem sendo apontada por muitos autores. Como afirmou, por exemplo, o filósofo político John Gray em Black Mass: Apocalyptic Religion and the Death of Utopia, “os jacobinos foram os primeiros a conceber o terror como um instrumento de aperfeiçoamento da humanidade”, daí que, segundo ele, o Islã radical contemporâneo possa ser descrito como um “islamojacobinismo”.
Mas, mais do que uma religião política, o Islã é, desde a origem, uma religião imperialista. Aliás, eis o que afirmou diretamente o escritor V. S. Naipaul, um grande conhecedor do mundo islâmico: “O Islã não é apenas uma questão de consciência ou de fé privada. Ele faz demandas imperiais”. De fato, ignorando totalmente a clássica separação ocidental (essencialmente cristã) entre religião e política, as lideranças religiosas islâmicas são também autoridades políticas e militares, buscando estabelecer um Estado islâmico global em que a sharia será imposta a todos os cidadãos do mundo, e no qual os pensamentos heréticos serão criminalizados. Como não distingue entre as esferas pública e privada, entre a vida individual do espírito e a vida coletiva da política, a sharia é totalitária por natureza, perpassando todas as esferas da vida, até mesmo as mais íntimas, referentes a higiene pessoal, necessidades fisiológicas e práticas sexuais. Onde o Islã torna-se religião oficial, toda violação à sua doutrina e preceitos é encarada não apenas como pecado, mas, sob a lei corânica, como um crime contra o Estado.
E aí eu me lembrei do sociólogo francês Jules Monnerot, uma figura pouco conhecida fora do universo intelectual francês e quase nunca lembrada no Brasil. Membro fundador do Collège de Sociologie, foi Monnerot quem deu o nome à escola, à qual se somaram Roger Caillois e Georges Bataille, e quem, junto com eles, lançou o projeto de “sociologia sagrada” — o estudo “de todas as manifestações da existência social onde a presença ativa do sagrado é clara”. Como seus compatriotas do Collège, Monnerot era um entusiasta da provocadora interpretação da religião enunciada por Émile Durkheim no clássico Formas Elementares da Vida Religiosa, de 1912. Inspirado pela interpretação durkheimiana, Monnerot publicou em 1949 o livro Sociologia do Comunismo, no qual aponta os elementos de religiosidade do totalitarismo comunista e, em particular, as suas semelhanças estruturais com o Islã.
A primeira parte do livro é significativamente intitulada “O Islã do século 20”. Segundo Monnerot, da perspectiva da história política europeia, o comunismo era certamente “sem precedentes”. Todavia, ampliando os horizontes geográficos e históricos, o paralelo entre as duas religiões políticas seria claro. No capítulo 1, que leva o mesmo título da parte 1, Monnerot avança inúmeras comparações entre o comunismo soviético e os fatímidas egípcios, os safávidas persas, os xiitas e os sufis. Segundo o autor, a Rússia soviética não teria o primeiro império em que o poder temporal e público andaria de mãos dadas com um poder sombrio que opera fora das fronteiras imperiais para minar a estrutura social dos Estados vizinhos. O Oriente Islâmico oferece vários exemplos de uma dualidade semelhante. A fusão de religião e política foi uma característica marcante do mundo islâmico em seu período vitorioso. Ela permitiu ao chefe de um Estado operar além de suas próprias fronteiras na qualidade de comandante dos fiéis (Amir al-Mu’minin). As fronteiras territoriais que pareciam remover alguns de seus súditos de sua jurisdição eram nada mais do que obstáculos materiais; a força armada poderia obrigá-lo a fingir respeito pela fronteira, mas a propaganda e a guerra subterrânea poderiam continuar não menos ativamente além dela. Assim também o internacionalismo comunista.
Monnerot reconheceu que sua descrição do comunismo como um Islã do século 20 era “apenas uma analogia”. No entanto, insistiu tratar-se de uma analogia “necessária”, dados os paralelos tão evidentes. “A Rússia é para o comunismo o que o império Abássida foi para o Islã” — diz ele. Não fazendo distinção entre política e fé, a Rússia soviética é “o Islã em marcha”; suas fronteiras são “puramente provisórias e temporárias”. O universalismo comunista também lembra o Islã, exceto que, no caso do comunismo, a ambição é ainda maior: o Islã tem se contentado em grande parte em dominar uma civilização enquanto coexiste com outras. O comunismo, por outro lado, visa dominar “todo o globo terrestre”, daí a observação de Stalin ao Segundo Congresso dos Sovietes, em janeiro de 1924, de que “Lenin era o líder não apenas do proletariado russo e não apenas dos trabalhadores da Europa, mas também de toda a classe trabalhadora mundial”. Da mesma forma, o proselitismo sectário e a guerra subterrânea da história ocidental recente representam uma ruptura maciça com a “tradição”.
Hoje, muitos escritores que buscam entender o islamismo radical moderno recorrem ao conceito de “totalitarismo” como sua ferramenta favorita de comparação. Portanto, é curioso notar que, muito antes do início da assim chamada “guerra ao terror”, a analogia fosse invertida: pensadores europeus buscando compreender o totalitarismo evocando o Islã como seu modelo. Dentre esses autores, Monnerot foi o mais sistemático e — sintomaticamente — o menos lido.
Leia também “Em defesa (de um sósia) da razão”
Flávio é um premiado cérebro da intelectualudade jornalística, pena que eu seja tão ignorante pra compreendê-lo
Flávio Gordon,só agradecer muito pelo seu artigo brilhante e profundo sobre o Isla ( meu celular não possui o acento).Li e reli o livro de Ayaan Hirsi Ali,somali que lutou pela sua liberdade e contra as atrocidades que o islamismo impõe, o livro chama-se Infiel. Aconselho muito a leitura,marcante e indispensável. Infelizmente emprestei e nunca o recebi de volta.Mas fiquei fascinada pela trajetória de vida e pensamentos sobre islamismo,comunismo e a saída através dos princípios judaicos cristãos. Obrigada mais uma vez pela.lucidez e conhecimento precioso.