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Onça caça uma vaca no Pantanal | Foto: Reprodução/Projeto Onçafari
Edição 221

Onça e pecuária

Se o felino representa ameaça física aos assentados em áreas isoladas na floresta tropical, a situação mais crítica é a dos pequenos agricultores

Evaristo de Miranda
-

“Sogra é como onça-pintada,
todo mundo quer preservar,
mas ninguém quer ter em casa.”
(Ditado popular)

Do século 16 ao 17, bovinos e outros ruminantes domésticos da Europa foram introduzidos no Brasil por povoadores portugueses do litoral do Sudeste ao do Nordeste e pelos padres jesuítas no Sul. Milhares de ovinos, caprinos, equinos, muares e bovinos multiplicaram-se em fazendas e aldeias. Sua eficiência digestiva ampliou os recursos de proteína (carne e leite) para humanos e felinos, sobretudo quando o gado proliferou em estado semisselvagem em campos e pastagens nativas no Sul.

Da chegada dos bovinos e outros ruminantes domésticos em seus domínios, a onça-pintada ou jaguar (Panthera onca), o maior felino das Américas, não se queixou. Foram quase dois séculos de abundância de carne para humanos e onças no Sul, Sudeste e Nordeste. Referindo-se ao Paraná e Santa Catarina, o padre jesuíta Antonio Ruiz de Montoya assim descreveu o encontro entre onças (“tigres”) e pecuária no início do século 17: “Os tigres que se criam por aquelas terras são incontáveis, assim como o é a multidão de gado vacum silvestre, que se acha a seu dispor”.

Onça se alimentando de carne | Foto: Wikimedia Commons

A pampa oferecia pastagens de boa qualidade. A utilização e a ampliação de pastagens nativas com herbívoros domésticos, realizadas no Sul pelos jesuítas, foram um sucesso ecológico: ausência de parasitas, clima mais próximo ao europeu e adequado ao gado taurino.

O padre jesuíta Antonio Sepp relata o belo cenário da pecuária e das pastagens de seu aldeamento: “Pelo meio-dia, à tardinha e à meia-noite, não se vê da minha aldeia outra coisa senão um campo infinitamente extenso, bem liso e plano, sobre o qual rebanhos incontáveis de gado pastam o capim verde. Não temos estrebarias… deixamos o gado, inverno e verão, dia e noite, no campo, tão pouco ceifamos e não fazemos feno… o capim de quase um côvado serve o ano todo de pastagem.” Às margens do Rio Paranapanema, na fronteira entre São Paulo e Paraná, no século 17, “nas reduções de Loreto e Santo Inácio matavam-se no início a cada dia 12 a 14 vacas”. Era pouco para a demanda, segundo o padre Montoya.

No início do século 17, atestava o padre Fernão Cardim, escrevendo em território baiano: “Ainda que esta terra tenha os pastos fracos… há já grande quantidade delas e todo o Brasil está cheio de grandes currais, e há homem que tem quinhentas ou mil cabeças; e principalmente nos campos de Piratininga, por ter bons pastos, e que se parecem com os de Portugal, é uma formosura ver a grande criação que há”.

Fazenda de gado Nelore no Brasil | Foto: Shutterstock

E ainda o padre Sepp: “Há pouco, minha aldeia saiu campo afora para arranjar vacas para a alimentação diária deste ano. Em dois meses reuniram 50 mil vacas e as trouxeram para meu aldeamento. Tivesse eu mandado, eles também teriam trazido 70, 80 ou até 90 mil (…) O que conto desta minha aldeia também vale para as 26 outras reduções”.

No final do século 17, quando o Brasil não possuía 300 mil habitantes, segundo estimativas do economista Celso Furtado, o rebanho bovino já ultrapassara o milhão de cabeças. Com o incremento da agricultura canavieira e da mineração nos Gerais, a pecuária avançou em direção aos sertões nordestinos e mineiro, pela Bacia do São Francisco, desde Minas Gerais até Piauí e Maranhão. Após a Guerra dos Emboabas, paulistas emigraram para Goiás e Mato Grosso. E se dedicaram à criação e ao tropeio do gado. A pecuária estendeu-se pelos cerrados do Centro-Oeste e chegou ao Pantanal.

Com o tempo cresceu o número de pessoas vivendo como fazendeiros, estancieiros, criadores, tropeiros, comboieiros de gado e muares vendidos nas feiras de Sorocaba e até na Bahia. Felinos, atacando principalmente bezerros, tornaram-se um real problema. Agora, o gado selvagem tinha cada vez mais donos, assim como as terras por onde vivera livre por quase dois séculos. Isso levou à caça sistemática e especializada da onça. Nessa guerra, cães de caça e mateiros ganharam destaque. A gestão dos rebanhos os circunscreveu a áreas mais protegidas e isoladas dos felinos, com cercas e currais. O campo selvagem tornou-se terra civilizada, habitada e percorrida. A abundância de carne para os felinos declinou entre o século 18 e o 19.

Curral em fazenda brasileira em Pirenópolis, Goiás | Foto: Shutterstock

No final do século 19, no Sul e no Sudeste, as áreas montanhosas e de planalto passaram a ser ocupadas de novo ou desbravadas por colonos europeus. A conversão de áreas naturais em cultivos erradica a vegetação nativa e elimina a quase totalidade das presas das onças, com impacto dramático em suas populações. No século 20, ocorreu uma extensão sem precedentes da ocupação territorial do Brasil por atividades urbanas, energético-mineradoras e agrícolas. Porções inteiras do território do jaguar e de suas populações de felinos desapareceram para sempre.

Hoje, a onça ainda sofre com a perda de diversidade genética em áreas isoladas e fragmentadas, com a caça ilegal ou morte por envenenamento, doenças transmitidas por animais domésticos, atropelamento e acidentes.

Se a onça representa ameaça física aos extrativistas e assentados em áreas isoladas na floresta tropical, a situação mais crítica é a dos pequenos agricultores ou da agricultura familiar. A morte de seus animais por ataque de onças pode significar um desastre econômico e até a inviabilização de sua atividade. Grandes fazendas de pecuária são capazes de absorver e conviver com a predação nos rebanhos. Com os pequenos agricultores, a maioria dos imóveis rurais, a situação é de grande fragilidade e medo. Como dizia João Guimarães Rosa, “Eh, tapa de mão de onça é pior que porrete… Mecê viu a sombra! Então mecê tá morto!“.

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A onça chega a causar 4% de prejuízos na produção pecuária. Esse número pode ser insignificante para grandes pecuaristas, mas é insuportável para pequenos agricultores. Na opinião pública e na mídia predomina a narrativa na qual grandes pecuaristas seriam o ponto central do conflito entre produção de carne e ataques de onças. Na realidade, o ponto crítico desse embate está no pequeno produtor. Ele não pode se dar ao luxo de “experimentar” qualquer perda em seu pequeno rebanho. Por isso, em certos casos, envenena e mata os felinos de forma “preventiva”.

Matar o predador de rebanhos tem sido a primeira opção em diversas situações. Deveria ser a última. Quando a eliminação é obrigatória, isso deveria, teoricamente, ser realizado por organizações e entidades de conservação, capturando o animal e levando-o a outro território. Não é tão simples. O problema não é técnico, e sim político-institucional.

Onça se alimentando de bezerro, no Pantanal | Foto: Reprodução Projeto Onçafari

A legislação da fauna permite o manejo de animais causadores de problemas. Isso jamais foi autorizado. Não há histórico de políticas de manejo. Perdeu-se tempo e experiência em aprimorar o manejo. Vive-se no extremo: conservar tudo e não manejar nada. No ambiente rural houve antropização e profundas alterações. Deveria haver maturidade para equilibrá-lo pelo manejo da fauna. O produtor já maneja terra, água e vegetação. E está numa encruzilhada: não pode nada quanto aos predadores e deve fazer tudo na preservação ambiental. Com a incapacidade dos órgãos ambientais de dialogar e avançar no tema do manejo, a tendência é protelar para mais tempo ainda, agravando a situação. O Estado não construiu, nem constrói, qualquer experiência ou programa na gestão e controle das populações de felinos.

Conservar populações de onças em áreas de pecuária implica buscar equacionar a questão da predação com e para todos os pecuaristas, grandes e pequenos, num difícil contexto de restrições legais, falta de conhecimento científico, ausência de recursos financeiros e pessoal qualificado, para sustentar essas iniciativas, monitorá-las e aperfeiçoá-las.

Quando um animal morre atacado por animais selvagens, em primeiro lugar é preciso saber se realmente foi um jaguar o autor do ataque. A análise do cenário (contexto, localização, pegadas no local etc.) e da situação da vítima (parte atacada, ataque de baixo para cima ou o contrário, quais partes foram devoradas primeiro, marcas de dentes na pele e nos ossos, ruptura da coluna vertebral etc.) é essencial na determinação inequívoca do predador. Nas fazendas, os meios de comunicação são limitados. Essa avaliação exige especialistas, nem sempre disponíveis, e seu custo de deslocamento é alto.

Onça se alimentando de vaca, no Pantanal | Foto: Reprodução/Projeto Onçafari

Constatada a predação efetiva da onça, existem medidas passíveis de serem implantadas para tentar afastar o animal (barreiras visuais, cercas elétricas, monitoramento do predador com colar emissor), evitar sua aproximação (espantalhos visuais e sonoros, explosivos com base em propano, tiros não letais) e proteger os rebanhos (presença de guardas ou pastores, cães, manejo diferenciado e mais intensivo dos rebanhos), além da possibilidade de indenizar o criador pelos animais comprovadamente predados por onças.

Várias dessas medidas exigem recursos financeiros expressivos, agilidade de aplicação e adaptação aos diversos biomas e sistemas de criação. Grande parte dessas ações é pouco sustentável, dadas as dimensões do Brasil, com milhões de hectares de pastagens em áreas de distribuição da onça-pintada, e contextos ecológicos e socioeconômicos muito diversificados.

O Pantanal é emblemático: apesar da abundância de presas selvagens e da manutenção dos hábitats, ainda assim a onça ataca rebanhos

O esforço de educação ambiental e informações específicas sobre predação de rebanhos tem chegado às fazendas de pecuária: das crianças aos proprietários e ao pessoal em lida direta com os rebanhos. Manuais com informações, relatos de experiências bem-sucedidas e pesquisas científicas ajudam e são insuficientes na solução do conflito da predação. Grandes pecuaristas aceitam a predação de mais de mil animais/ano. Nos pequenos pecuaristas, com meia dúzia de vacas de leite, é impraticável.

Gado é removido para escapar dos pântanos do Pantanal em Poconé, Mato Grosso | Foto: Shutterstock

Ao contrário da agricultura, a pecuária nem sempre implica desmatar. Ela preservou os ecossistemas no Pantanal, caatinga, pampa, cerrado, e adaptou-se secularmente a esses contextos, desenvolvendo culturas rurais ligadas ao gado. Essas situações enfrentam problemas crônicos de predação. Cada bioma é um caso. O Pantanal é emblemático: apesar da abundância de presas selvagens e da manutenção dos hábitats, ainda assim a onça ataca rebanhos. Para a onça, predador oportunista, é mais simples e efetivo atacar bezerros e outros animais domésticos, mesmo com disponibilidade de presas selvagens.

A pecuária brasileira vive entre o drama de um Estado refugiado numa legislação de conservação absoluta dos espécimes, incapaz de gerir e executar o manejo efetivo de predadores carnívoros em áreas antropizadas, e a tragédia dos pecuaristas, sobretudo dos pequenos agricultores, cuja atividade e até a própria existência vivem ameaçadas por ataques de onças.

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As soluções não são simples. Como sinaliza Leandro Silveira, do Instituto Onça-Pintada, “Se deixarmos a decisão por conta dos pecuaristas, sobretudo para os pequenos, ela será uma só: o abate ilegal de onças causadoras dos prejuízos. Isso porque não veem os órgãos ambientais acenarem com nenhuma alternativa real e prática para compensar seus prejuízos. Em outras partes do mundo, pecuaristas são ressarcidos pelo governo por prejuízos causados por predadores em seus rebanhos. No Brasil não há nada nesse sentido. Assim, na prática, ficam o manejo e a conservação da onça-pintada nas mãos de pecuaristas, e não dos órgãos ambientais“.

Diante da expansão da pecuária, da demanda mundial por carne e da necessidade de preservar populações de felinos, os destinos do gado e da onça estão entrelaçados nas áreas rurais. Por muito tempo seguirá válido o ditado popular: “A poeira do gado tira a onça do cuidado“.

Leia também “A rainha dos destilados”

14 comentários
  1. Regina Semerene Farah
    Regina Semerene Farah

    Tem que deixar um área preservada de cerrado, de Floresta, de mata atlântica, porque senão desequilibra o meio ambiente e todos sofrem.

  2. Carlos Augusto De Andrade Borges
    Carlos Augusto De Andrade Borges

    Os ambientalistas que vejo só querem o emprego, não o trabalho.

  3. Chequer Jabour Chequer
    Chequer Jabour Chequer

    Como sempre, excelente artigo do Prof Evaristo. Um alerta para o hiato entre os eventos nas Fazendas de criação de bovinos, e os Órgãos competentes que deveriam desenvolver ações de carácter preventivo dos ataques ao rebanho pelos predadores, e o manejo dos mesmos para a preservação da espécie. Enfim, assegurar o equilíbrio da fauna, em face dos desafios que o desenvolvimento da pecuária apresenta, em áreas de cuidados especiais.

    1. Domingos de Souza
      Domingos de Souza

      Excelente texto. Muito esclarecedor.
      Parabéns, dr. Evaristo.

  4. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Esse Evaristo de Miranda é um peste, isso é um homem ou uma enciclopédia?

  5. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Excelente conteúdo, como de praxe.

  6. Silvio Luis Eidt
    Silvio Luis Eidt

    Muito bom o artigo. Por anos administrei uma fazenda em Mato Grosso e lá também havia onças que predavam bezerros, mas jamais admiti que se fizesse qualquer tipo de represália às onças. Hoje temos um problema ambiental muito sério, que é proliferação de javalis em praticamente todo território nacional. Esse problema no entanto possibilitou o aumento da população de onças, uma vez que a oferta de alimento é crucial para que isso ocorra. O Leandro Silveira, citado no artigo, conhece bem o assunto. Mas mesmo que a população de onças tivesse um aumento exponencial, não seria capaz de deter o aumento do número de javalis, muito mais profícuos na geração de filhotes. Uma nova política ambiental precisa ser urgentemente discutida e implantada de forma séria em nosso país, prevendo inclusive o ressarcimento para os pequenos produtores de animais perdidos para a vida selvagem.

  7. Luiz Marins
    Luiz Marins

    Séria reflexão e oportuna.

  8. Dario Palhares
    Dario Palhares

    Não apenas o manejo dos felinos, mas de toda a fauna neotropical. Chegaram rebanhos de suínos, que transmitem cisticercose. E onde estão os rebanhos de capivaras, nativas? A onça mata o bezerro, mas tem uma pele valiosíssima. Onde estão os bezerros sendo criados para alimentarem onças que serão abatidas e gerarão renda com a pele? E o que dizer de papagaios e araras, que valem milhares, onde estão os criadores? É como dito, pode-se drenar um pântano e matar todos os jacarés, mas não se pode criar um jacarezinho sequer, pra curtir seu couro, duro e valioso, e vender sua carne. O Ibama parou no século XIX, está mais atrapalhando do que ajudando a preservação do meio ambiente. O conceito-chave é este: MANEJO.

  9. Elisabeth Mattos
    Elisabeth Mattos

    se esses defensores da onça ficarem 2 anos morando em uma fazenda visitada com frequência pela onça, com certeza mudam de idéia.

  10. Alice Helena Rosante Garcia
    Alice Helena Rosante Garcia

    De fato ela é assustadora e selvagem mas é um lindo animal
    Precisavamos de uma politica de preservaçao desse animal respeitando seu habitat e sua especie
    Grata pelo excelente artigo Prof

  11. José Menezes
    José Menezes

    Um primor de artigo. Relato histórico da introdução dos ruminantes no Brasil e a importante relação destes com a sobrevivência das onças no Brasil.
    Parabéns mestre Evaristo.

  12. JOSE AUGUSTO MARTINS DE ANDRADE JUNQUEIRA
    JOSE AUGUSTO MARTINS DE ANDRADE JUNQUEIRA

    Artigo do Evaristo, sempre o primeiro a ser lido.

  13. Silas Veloso
    Silas Veloso

    Sempre bons artigos! É um prazer lê-los

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