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Em meio à destruição de um dos bairros do município de Cruzeiro do Sul (RS), é possível encontrar alguns objetos domésticos que caracterizam o lar dos moradores, como a estatueta no canto direito do que parece ser um santo | Foto: Tauany Cattan/Revista Oeste
Edição 223

As marcas da tragédia

Um mês depois de ver de perto as enchentes que destruíram parte do Rio Grande do Sul, a reportagem de Oeste voltou ao Estado para registrar as consequências da catástrofe

Tauany Cattan
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As águas baixaram, mas as enchentes que destruíram parte do Rio Grande do Sul continuam presentes nas marcas deixadas pela tragédia. Por toda Porto Alegre, é possível ver o nível que as inundações atingiram pelas manchas de barro nas paredes das casas. Nenhuma tem menos de 1 metro de altura. O trem da Estação Farrapos, localizada na principal avenida da capital gaúcha, continua parado 43 dias depois do início das chuvas. 

Ao andar pelas ruas, é impossível não notar as montanhas de entulhos em frente às residências. Os objetos amontoados nas sarjetas incluem colchões, móveis, brinquedos, roupas e eletrodomésticos. Os carros, antes submersos, jazem sobre o asfalto envoltos pela lama levada pelo Rio Guaíba. Segundo a consultora automobilística Bright Consulting, estima-se entre 140 mil e 280 mil o número de veículos que ficaram inutilizados. Para repor esses carros, serão necessários pelo menos 20 meses de vendas.

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A água barrenta começou a subir no fim de abril e afetou 478 dos 497 municípios do Estado. De acordo com a Defesa Civil, 177 pessoas morreram e 388 mil ficaram desalojadas. Em Porto Alegre, as inundações atingiram 46 dos 96 bairros da cidade. O Aeroporto Internacional Salgado Filho permanece interditado desde 3 de maio, com um prejuízo calculado em mais de R$ 49 milhões por dia. Segundo estimativas da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), a perda para o turismo durante o período de enchente é de R$ 1,33 bilhão.

Não há previsão para a retomada dos voos no Salgado Filho. Atualmente, a principal alternativa é a Base Aérea de Canoas, a 20 quilômetros de Porto Alegre, que opera cinco voos comerciais por dia. Além dela, o Aeroporto Hugo Cantergiani, em Caxias do Sul, recebeu autorização neste mês para voos internacionais, segundo informações publicadas no Diário Oficial da União (DOU). 

Para que o aeroporto principal retome as atividades, a concessionária Fraport Brasil informou que precisa finalizar os testes na pista de pouso e decolagem e nos demais equipamentos. “Nossa expectativa é receber esse diagnóstico em meados de julho”, informa a assessoria de imprensa da empresa. “A partir disso, será possível determinar as intervenções necessárias na pista e o tempo de recuperação para a retomada dos voos diretamente do Salgado Filho.”

Aeroporto Salgado Filho, de Porto Alegre | Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República
Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre | Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República
Sarandi e Humaitá

Um dos bairros mais atingidos pelas inundações foi Humaitá, na zona norte de Porto Alegre. O empresário Adriano Cassol, de 48 anos, foi um dos inúmeros moradores que sofreram perdas significativas. A água chegou a 1,7 metro dentro de sua empresa. “Ficamos 30 dias sem faturar”, lamentou Cassol. “Depois que a água baixou, em 30 de maio, voltei para ver o que a enchente havia destruído. Foram móveis, computadores e estoque. Perdemos R$ 500 mil, aproximadamente.”

Adriano Cassol é dono de uma empresa que confecciona acessórios de moda | Foto: Tauany Cattan/Revista Oeste
Adriano Cassol é dono de uma empresa que confecciona acessórios de moda | Foto: Tauany Cattan/Revista Oeste

André Teixeira, de 45 anos, gerencia uma usinagem em frente à empresa de Cassol. A Imer Usinagem importa máquinas de alta tecnologia do Japão e dos Estados Unidos. Assim que soube da possibilidade de alagamento, André deslocou os materiais mais frágeis para paletes de madeira. Contudo, a água chegou a quase 2 metros e permaneceu assim por quase 30 dias. Seu prejuízo foi de R$ 1,5 milhão.

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Ângela Soares, de 52 anos, mora na Vila Farrapos, também no Humaitá, há 14 anos. A água chegou ao telhado de sua casa. O local inicialmente servia como moradia temporária para famílias removidas pela prefeitura de áreas de risco, mas abriga pessoas há 20 anos, em estado precário.

Ao retornar para casa depois das enchentes, Ângela se deparou com 1 metro de lodo e lama nos cômodos. A moradora conta com a ajuda de empresários e voluntários, que levaram materiais de limpeza até sua casa. Os móveis danificados foram jogados fora, junto de outros bens. “Ficamos abalados, mas estou feliz que há muitos voluntários”, disse. “Vou reconstruir tudo do zero. Não esperava tanto apoio.” Ângela ainda não recebeu nenhum auxílio de nenhum governo. 

Voluntáros colete amarelo auxiliam os moradores da Vila Farrapos com móveis novos e produtos de limpeza, além da na reforma dos pisos e na pintura | Foto: Tauany Cattan/Revista Oeste
Voluntários auxiliam os moradores da Vila Farrapos com doações de móveis e produtos de limpeza, além de reforma de pisos e pintura | Foto: Tauany Cattan/Revista Oeste

O bairro Sarandi registra o maior número de pessoas e edifícios afetados: mais de 26 mil e 8 mil, respectivamente, segundo o levantamento da Prefeitura de Porto Alegre. O bombeiro civil Gabriel Ribeiro, de 28 anos, e sua mulher, Kethlyn Colombo, de 27, trabalham na limpeza da casa do casal aos fins de semana. A água chegou à altura da janela. “Trabalho como motorista de aplicativo de segunda a sexta-feira e limpo a casa no fim de semana”, explicou Ribeiro. “Ainda não conseguimos dormir aqui. Vamos tirar o forro e muitas outras coisas. Com a ajuda dos voluntários, conseguiremos.”

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Canoas

Em Canoas, na Grande Porto Alegre, o drama se repete. Ao passar pelas ruas, os entulhos tornaram-se parte do cenário urbano. O bairro Mathias Velho, mais populoso da América Latina, foi totalmente submerso, de acordo com imagens registradas por drones. 

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Adão Gonçalves, de 63 anos, conta que a água chegou tão depressa que ele e a mulher tiveram de se refugiar no telhado até a chegada do resgate. Para limpar a residência, ele contou com a ajuda de amigos e familiares para conseguir retirar o lodo das paredes e dos móveis. 

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“A sujeira gruda e não sai”, diz Gonçalves. “Preciso esfregar muitas e muitas vezes. Nem deixei a minha mulher vir aqui, porque seria chocante para ela. Eu mesmo chorei por dias.” Ele disse que recebeu R$ 5,1 mil do auxílio-reconstrução pago pelo governo federal.

O Hospital Municipal de Pronto Socorro de Canoas (HPSC) também foi altamente impactado. O HPSC é referência no bairro Mathias Velho, que, sozinho, concentra 100 mil habitantes. Ali, a água chegou a quase 2 metros de altura.

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Até hoje as operações não foram retomadas. A lama permanece espalhada por mesas de cirurgia, macas e outros equipamentos médicos. O prejuízo financeiro, conforme o levantamento do diretor administrativo do hospital, Marcelo de Oliveira, é de R$ 37 milhões. 

A altura da água chegou a 2 metros no Hospital Municipal de Pronto Socorro, em Canoas. O segurança da foto mede 1,70 metro | Foto: Tauany Cattan/Revista Oeste
A água chegou a 2 metros de altura no Hospital Municipal de Pronto Socorro de Canoas. O segurança da foto mede 1,7 metro | Foto: Tauany Cattan/Revista Oeste
Vale do Taquari 

Além de Canoas e da capital gaúcha, a reportagem de Oeste esteve em Eldorado do Sul e São Leopoldo, na Região Metropolitana de Porto Alegre; Arroio do Ouro, no distrito do Vale Real; e Cruzeiro do Sul, Estrela, Arroio do Meio, Roca Sales, Lajeado, Bom Retiro do Sul e Muçum, que formam o Vale do Taquari. 

Nas cidades do Vale do Taquari, banhadas pelo rio homônimo, alguns dos bairros simplesmente desapareceram. Os locais lembram cenários de guerra, com os tijolos e as estruturas das casas postos ao chão. Na maior parte dessas cidades, o nível da água ultrapassou o telhado das residências. A força da corrente arrastou terra, galhos, árvores inteiras, casas e objetos domésticos. A cota de inundação do Rio Taquari é de 19 metros. Em 12 de maio, chegou a 25 metros.

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No Vale do Taquari, as águas baixaram depois de quatro dias. Ironicamente, embora a destruição seja maior, a proximidade com o rio também facilita a saída da água. Acostumados com inundações, os moradores saíram com antecedência. Segundo a Defesa Civil de Roca Sales, por exemplo, as mortes ali foram causadas por deslizamentos de terra. 

Plantação de milho em Estrela, no Vale do Taquari, depois de 40 dias das enchentes | Foto: Tauany Cattan/Revista Oeste
Plantação de milho em Estrela, no Vale do Taquari, depois de 40 dias das enchentes | Foto: Tauany Cattan/Revista Oeste
Casa arrastada pela enchente em Cruzeiro do Sul, no Vale do Taquari (RS) | Foto: Tauany Cattan/Revista Oeste
Casa arrastada pela enchente em Cruzeiro do Sul, no Vale do Taquari (RS) | Foto: Tauany Cattan/Revista Oeste
Um dos bairros destruídos em Cruzeiro do Sul, no Vale do Taquari (RS) | Foto: Tauany Cattan/Revista Oeste
Um dos bairros destruídos em Cruzeiro do Sul, no Vale do Taquari (RS) | Foto: Tauany Cattan/Revista Oeste
Notebook em meio aos destroços de uma casa, em Cruzeiro do Sul, no Vale do Taquari (RS) | Foto: Tauany Cattan/Revista Oeste
Notebook em meio aos destroços de uma casa, em Cruzeiro do Sul, no Vale do Taquari (RS) | Foto: Tauany Cattan/Revista Oeste

No setor agropecuário, as enchentes causaram um impacto devastador, com perdas agrícolas estimadas em aproximadamente R$ 3,1 bilhões. Os dados são da Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul). A lavoura familiar de soja de Luciane Wendt, de 48 anos, por exemplo, foi completamente destruída.

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Dragagem dos rios

O assoreamento dos rios é fundamental para evitar enchentes de grandes proporções. Segundo o perito ambiental Rafael Tímbola, é necessário fazer a dragagem e o desassoreamento dos cursos d’água. O processo consiste na limpeza, desobstrução, remoção e escavação de material do fundo de rios, lagos, mares, baías e canais.

O governo estadual de Santa Catarina aplicou o desassoreamento do Rio Itajaí-Açu, que já sofreu com cheias expressivas. “Aqui, o processo é feito mecanicamente”, informa Tímbola. “Uma balsa carrega uma retroescavadeira pesada, que retira os sedimentos do fundo do rio e os coloca junto às margens para arrumá-las, ou em caçambas para descarte.”

Para o jornalista Alexandre Garcia, colunista de Oeste, a dragagem é medida emergencial para conter as enchentes. “No meio do Guaíba, que recebe o Gravataí, o Rio dos Sinos, o Jacuí, o Caí e o Taquari, há bancos de areia”, conta. “Os clubes de veleiros de Porto Alegre não conseguem mais velejar, porque a estrutura do casco esfrega no chão. O Guaíba está todo sujo.”

De acordo com Garcia, é preciso identificar os responsáveis pela interrupção da dragagem. “Os ambientalistas se queixaram ao Ministério Público, e o órgão cessou o processo”, disse. “A dragagem ainda aproveita a areia que fica no fundo do rio para a indústria da construção. Ou seja, é ganha-pão de muita gente.”

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Segundo o senador Luis Carlos Heinze (Progressistas-RS), há projetos de modernização de diques, obras e realocação de famílias parados desde 2013. “Há solução”, afirma o parlamentar. “Mas muitos deixaram os projetos de lado por anos. Perto do que o Sul teve de prejuízo, o investimento necessário para concretizar essas ações é pequeno.”

Leia também: “Vidas improvisadas”

3 comentários
  1. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Bom é você saber que o ministério público trabalha a favor da destruição

  2. José Pedro Scatena
    José Pedro Scatena

    Excelente trabalho da Tauany, mostrando o lado humano dessa tragédia, indo muito além das informações frias e distantes sobre política, clima e perdas econômicas. Parabéns.

  3. Andrea Vidal
    Andrea Vidal

    Pelo visto, os nossos irmãos do RS estão largados a própria sorte. O atual governo federal é de um descaso e incompetência inacreditáveis. É de uma crueldade sem paralelo. Me intriga, diante de toda a tragédia, esse número oficial de mortos divulgado. Vcs acreditam mesmo que uma tragédia dessas proporções em 478 municipios do Estado tenha realmente 177 mortos? Eu não.

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