Nesses 25 anos cobrindo a área de tecnologia, percebi um fenômeno. Cada novidade (que geralmente saúdo feliz e entusiasmado) gera uma onda imediata de reclamações e temores em muita gente. Agora mesmo, vemos a inteligência artificial sendo recebida com temores que vão do “vai me tirar o emprego” ao radical “vai acabar com a humanidade”.
Algumas pessoas curtem a evolução cada vez mais radical da tecnologia pessoal, outras se assustam com ela. E geralmente procuram consolo numa onda de nostalgia. “Bom mesmo é disco de vinil”; “Eu jamais abandonarei os livros de papel”; “Antigamente as pessoas conversavam, não ficavam olhando para as telinhas”; e assim por diante.
Se a tecnologia pessoal anda tão prejudicial e assustadora, vamos entrar numa máquina (analógica) e voltar no tempo. Vamos conferir quanto a gente era feliz naquela época de rádio AM e telefone de discar. Bons tempos aqueles…
2014
Surge (em 2011) um serviço chamado Netflix que leva filmes até sua casa via internet. Ou seja: vai acabar a alegria de comer pipoca na fila do cinema. Vai acabar também a diversão de escolher DVDs na locadora e pagar uma taxa por cada um deles para ter o direito de assistir a um filme por dois ou três dias. Que pena.
Querem acabar também com a diversão de ficar na rua esticando o braço para pegar um táxi (para ir à locadora, por exemplo). Desde 2011 existe um serviço chamado Uber, onde você chama um motorista pelo celular, sabe o carro que vai pegar e quanto custará a corrida.
Aliás preciso pegar um táxi para entregar um dinheiro que estou devendo a uma prima. Poderia passar por TED ou DOC, mas é noite e o banco está fechado. Vou pedir para o motorista do táxi parar em algum caixa eletrônico no meio da noite para tirar o dinheiro. Daqui a seis anos vai existir um modo de transferência por celular chamado Pix. Mas ele vai ser muito perigoso e arriscado.
Quando voltar para casa vou conversar com um amigo que mora na Austrália através de um programa chamado Skype. A gente consegue ver a pessoa, além de falar! E a taxa por segundo é bem baratinha.
Depois da conversa, vou ouvir minha fabulosa coleção de CDs. Existe um serviço novo chamado Spotify que transmite música pela internet. Mas eu prefiro o som do CD e do vinil. Hoje mesmo comprei um CD duplo importado. Paguei uma nota e gostei só de duas músicas. Mas não quero ficar ouvindo disco pela internet. Quero meu CD prateadinho, com a caixinha em ordem alfabética na minha estante.
2004
A internet já atinge 6,3 milhões de domicílios no Brasil. É o equivalente a 12,2% das residências. Ou seja, quase 90% dos brasileiros não têm acesso à rede ainda. O que me faz pensar: será que essa história de internet vai pegar mesmo?
E quem precisa de internet? Neste ano foi inventado em Singapura um tipo de memória chamado pendrive com a incrível capacidade de 8 megabytes! Se eu quiser mandar arquivos para alguém, transfiro através desses chips pequenininhos espetados no USB. Não confio na rede.
Neste glorioso ano de 2004 ainda não há YouTube (lançado em 2005), nem Google Maps (2005), nem Twitter (2006), nem iPhone (2007). Infelizmente, a Kodak avisou que não terá mais serviço de revelação de fotos. Que absurdo! Eles querem substituir a nobre arte da revelação por vulgares fotos digitais. Quem vai corrigir os defeitos das fotos, quem vai fazer os necessários acertos de cores e iluminação?
E uma das maiores novidades é a chegada dos serviços de TV por assinatura ao Brasil. Em vez dos nossos tradicionais cinco ou seis canais, são dezenas de possibilidades. Essa gente quer acabar com o momento de comunhão dos brasileiros, quando (quase) todos nós assistimos ao Jornal Nacional e em seguida à sagrada novela das 8. Vamos escapar desse terrível golpe e voltar a…
1994
Se você tiver internet e quiser procurar alguma coisa, tome cuidado de antes anotar — a caneta, no papel — o endereço certinho. http://blablabla.algumacoisa.naredepontocompontobr etc. Não existe um mecanismo confiável para achar os sites. Ainda faltam quatro anos para surgir o Google.
Quer comprar umas novidades? Um videocassete “de quatro cabeças” vale R$ 499 na nova moeda brasileira. Uma TV de 28 polegadas em cores, som estéreo, VHS/UHF PAL-M NTSC sai por R$ 1.090. E foi anunciada uma incrível novidade para o telefone. Uma empresa carioca anuncia um “revolucionário aparelho que identifica no display o número chamador antes do atendimento da ligação, evitando que intrusos quebrem sua privacidade”.
Fora do Brasil, você pode comprar um pager alfanumérico de US$ 200 para se comunicar por escrito com outras pessoas. Ele permite escrever 80 caracteres e ainda vibra quando recebe uma mensagem. Por US$ 580 você compra um fax com secretária eletrônica. Tem capacidade para 200 folhas de papel. Quem precisa de WhatsApp?
1984
O grande objeto de desejo é o Apple Macintosh. Imagine que na tela existem ícones relativos a cada programa. E para abrir os programas foi inventado um aparelhinho chamado mouse.
Mas computadores como o Apple e o Commodore (com memória de 64 kbytes!) são objetos de luxo. Nós trabalhamos em máquinas de escrever, felizmente já elétricas. Mais progresso: telefones de teclas com memória. E muitos funcionam sem fio.
Agora você pode gravar suas músicas favoritas numa fita cassete e sair ouvindo num walkman. É o máximo
O filme Wall Street tem uma cena de impacto quando o vilão Gordon Gekko (Michael Douglas) caminha numa praia deserta usando um “tijolão” Morotola DynaTAC 8000X. É a primeira aparição de um celular numa cena de cinema. Para a plateia, é um sonho distante.
Agora você pode gravar suas músicas favoritas numa fita cassete e sair ouvindo num walkman. É o máximo. Estudantes, comerciantes e cientistas batalham por calculadoras Casio e Texas. Já é muito progresso, não? Podemos parar por aqui?
1974
Todo brasileiro almeja um conjunto Gradiente com toca-discos Garrard 6300 (com três velocidades), caixas acústicas com 45w de potência, e receptor AM/FM. É o máximo!
Uma versão primitiva de e-book foi lançada pelo Projeto Gutemberg. Agora é possível ler livros sem papel. Mas, se você quiser trocar a leitura por um emocionante videogame, pode se divertir com o empolgante Pong, da Atari.
1964
Os rádios não estão mais presos à tomada. Ficaram pequenininhos, made in Japan, e funcionam com transistores. Todo mundo tem um radinho. No estádio de futebol, cada torcedor tem um grudado na orelha.
Por outro lado, ninguém pode ter um computador. São caríssimos. Só grandes empresas e organismos oficiais podem contar com os majestosos mainframes IBM. A comunicação à distância também está limitada a profissionais, através do telex e do fax. Com o telex o usuário pode escrever o texto que deseja transmitir numa fita toda furadinha. Supermoderno!
Os discos agora são de vinil. E possuem DOIS canais de som! O esquerdo e o direito. O mundo está enfim preparado para o som psicodélico de um conjunto de cabeludos chamado Beatles (já ouviu falar?).
A câmera Polaroid promete revelação imediata das fotos. Na verdade, em dez segundos para fotos em preto e branco (ou 50 segundos para fotos em cores). A TV no centro da sala continua P&B, com cinco canais. E o esforço para escolher entre todas essas opções?
1954
Máquinas de escrever, só mecânicas. De vez em quando é preciso trocar a fita de tinta, e nossas mãos ficam imundas. Os rádios a válvula, dependentes de tomadas, ainda são o centro da casa. Receptores de TV são muito raros, só para quem pode.
Os telefones agora possibilitam falar diretamente com a outra pessoa. É incrível, mas não precisamos mais pedir a ligação a uma telefonista.
1944
A RCA Victor lança um aparelho conjunto que toca discos 78 e tem um rádio no mesmo móvel. Não existe disco de vinil. Nem LP. Só os chamados discos 78 rotações, que tocam música e chiados na mesma proporção. Uma música só de cada lado. E, cuidado, eles podem se quebrar com qualquer movimento brusco. Não se esqueça de trocar regularmente as agulhas.
Comunicação à distância? Escreva uma carta. Ou, se for urgente, mande um telegrama. O telex e o fax já foram inventados, mas permanecem limitados às grandes empresas. E especialmente aos militares: essas maravilhas da comunicação imediata fazem parte do esforço final para vencer a Segunda Guerra.
1934
Quer ligar para alguém? Peça à telefonista e espere na fila vagar uma linha. Quer se divertir? Saia, vá a um baile, a um bar ou ao teatro. Em seu passeio, você pode tirar fotos em preto e branco com a câmera Agfa estilo “caixão”. O filme tem oito poses! Em casa você só tem o rádio e os livros.
1924
Deixe o rádio ligado e escreva com caneta e papel. Cansou de escrever, vá ler alguma coisa. Troque de estação, coloque numa música suave. Apague a luz e tire um cochilo no sofá. No escuro, sonhe com o futuro.
Leia também “Celulares com QI”
Adorei essa matéria!
Dagomir sempre excelente! O acompanho desde da famosa INFO EXAME.
Ótimo texto, parabéns Dagomir.
A vida está muito mais fácil. Pena que nossa inteligência está perdendo a corrida para tanta tecnologia. Parabéns Dagô!
E tem gente que é marxista 1825
Que texto bom. Dá para sacar esse embalo alucinado da existência no século XX. Sen-sa-ci-o-nal, Dagô! 👏👏👏
Kkkkkkkkkkkkkk e as 9 horas que meus pais esperavam para dar aos parentes distantes a notícia de uma morte. Quando a ligação se completava lá no Centro Telefônico, o defunto já tinha sido enterrado.
kkkkkkk o meu pai só soube da morte de meu avó, uma semana depois, já na missa de sétimo dia. Por telegrama. E olha que não era longe, só 380 km.
Artigo importantíssimo para nossa diversão nostálgica e muitas reflexões! Vão nos chamar de reacionários mas tá valendo, né …. Só por um momento!!
Sensacional, uma viagem no tempo e que mostra como nos acostumamos rapidamente com todas novidades e nem lembramos mais como era antes…
Uau, Dagomir! Que artigo magnífico! Amei!
Excelente!!!
Parabéns, Marquezi, pelo excelente texto!!!