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Bote de imigrantes, do artista Banksy, sobre a plateia do festival de Glastonbury, em Pilton, Somerset, na Inglaterra | Foto: Reprodução Instagram/@banksy
Edição 225

Glastonbury expôs a virtude fake da elite

Poucos eventos evidenciam tanto a hipocrisia da elite woke quanto o 'Glasto'

Brendan O'Neill, da Spiked
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A demonstração de virtude atingiu um novo patamar na sexta-feira, 28 de junho, à noite. Foi no festival de música Glastonbury. Claro que foi. O público do “Glasto” — uma multidão de trintões abastados e extremamente arrogantes — usou um bote inflável cheio de bonecos caracterizados como migrantes atravessando o Canal da Mancha. Enquanto uma banda de que você nunca ouviu falar cantava uma música sobre “lindos imigrantes”, o público levantou o bote inflável, que basicamente surfou pela multidão. Que exibição tosca de falsa virtude. Que orgia de vaidade vazia. Com certeza teria sido mais barato levantar uma faixa dizendo: “Somos maravilhosos, não somos?”. 

Não surpreende que o cérebro por trás dessa performance de mau gosto tenha sido Banksy, o grafiteiro favorito de toda a elite esnobe. Banksy nunca resistiu a provocar uma plateia rica, em sua maioria branca, com platitudes sobre a escória do partido conservador inglês e o capitalismo cruel, então é natural que ele tivesse ido parar no Glastonbury. Banksy sabe que o festival está lotado de pessoas chamadas Archie e Poppy que adoram suas gravuras pouco sutis sobre a corrida de ratos que é a sociedade neoliberal e como a guerra pode ser terrivelmente assustadora. Então, quem mais poderia ser recrutado para a performance com o bote além de pessoas que também adoram anunciar para o mundo quanto se importam com os migrantes e outras questões?

Vamos deixar de lado a insensibilidade inacreditável de um grafiteiro britânico rico que pode pagar 355 libras (R$ 5,3 mil) para ouvir música ruim por cinco dias e celebrar viagens de barco perigosas que muitas vezes terminam em tragédia. Vale questionar se algum desses espectadores que aplaudiram a imigração ilegal foi descansar em um dos yurts de luxo do Glastonbury, que ofereciam não apenas “banheiros com descarga decente”, mas também atendimento pessoal. Era possível alugar um deles por cerca de 5 mil libras (R$ 23,5 mil), o que, ironicamente, é quase o mesmo valor que os migrantes pobres são forçados a pagar para gangues criminosas por uma vaga em uma dessas perigosas travessias que os virtuosos de Glastonbury gostam tanto de santificar.

‘Migrantes são bem-vindos aqui’

Não, ainda pior do que ver os abastados de Worthy Farm usando os miseráveis da Terra para ostentar suas credenciais morais é o fato de que, se qualquer migrante atravessasse o Canal da Mancha e chegasse a Glastonbury, seria algemado e jogado no fundo de uma viatura antes que alguém pudesse perguntar: “A que horas Dua Lipa vai tocar?”. Glastonbury é uma das zonas mais bem guardadas da Grã-Bretanha. Ela é isolada por uma cerca de 4,12 metros de altura e 7,8 quilômetros de comprimento que tem diversos “recursos exclusivos de alta segurança”, incluindo uma “via externa para evitar túneis”, “inclinações de 45 graus para evitar escaladas” e “nenhuma porca e nenhum parafuso, para evitar que a cerca seja danificada”. “Sem fronteiras!”, gritam os virtuosos do festival, enquanto estão protegidos por uma cerca de fronteira que faria inveja aos carcereiros de Alcatraz.

Espectadores se abrigam na sombra das cercas ao chegarem à Worthy Farm, em Pilton, Somerset, para o festival de Glastonbury, na Inglaterra (26/6/2024) | Foto: Reuters/Dylan Martinez

A verdade perturbadora é que é mais fácil para um imigrante ilegal entrar no Reino Unido do que para uma pessoa sem meios entrar no Glastonbury. Chegue às margens de Kent de bote e você vai receber comida, água e um quarto de hotel. Chegue ao Glasto sem ingresso, e acabou para você. Existem “torres de vigilância” — literalmente — ao longo da cerca imponente para vigiar os “britânicos incômodos que tentam entrar de graça”. Existem reportagens de fãs que compram “ganchos de escalada” por “puro desespero” para tentar subir pela “cerca da fortaleza”. “Migrantes são bem-vindos aqui”, adoram dizer os frequentadores do festival, mas eles não estão falando de , de Worthy Farm, enquanto saboreiam uma salsicha vegana ao som de Sleaford Mods, pelo amor de Deus.

Trintões e quarentões insuportáveis

Não consigo pensar em uma imagem mais representativa do cinismo da classe dos pretensiosos do que o fato de eles, pelo jeito, acharem que seu festival anual de cinco dias na lama merece mais proteção do que a nação em si. Que deem mais peso moral ao seu direito de ouvir LCD Soundsystem do que ao direito da Grã-Bretanha de exercer o domínio soberano de suas fronteiras. “Como esses malditos conservadores ousam tentar parar os barcos?!”, eles sem dúvida murmuram tomando uma Camden Hells no bar Avalon Inn enquanto, a menos de 100 metros, um segurança enorme de colete refletivo grita pelo rádio: “Violação de segurança na cerca quatro!”. Esse é o resumo da performance da virtude: pessoas ricas, embriagadas em uma zona de fantasia cercada, ridicularizando o resto de nós por nossa crença arcaica em fronteiras.

Emily Eavis, co-organizadora do Glastonbury, nos portões da Worthy Farm (26/6/2024) | Foto: Reuters/Dylan Martinez

De dançar sem blusa ao som de Kinks em 1970 a adorar a emissora estatal como uma espécie de deus solar da verdade em 2024 — senhoras e senhores, essa é a classe média britânica

Não deveríamos nos surpreender. O Glastonbury decaiu muito desde sua fundação, em 1970. Naquela época, era um festival para homens barbudos e mulheres sem sutiã que só queriam transar ao som de Marc Bolan. Glastonbury se tornou um evento totalmente corporativo onde leitores de quase 50 anos da revista Mojo dançam desajeitadamente ao som de Coldplay. Até seu fundador, Michael Eavis, admite que o festival se tornou “respeitável” e “de meia-idade” demais. “Os jovens trouxeram tanto sabor”, disse ele, mas agora só estamos recebendo “os trintões e quarentões”. Trintões e quarentões insuportáveis, aliás. A figura que fica feliz em participar de workshops sobre “contra o bullying”, “mansplaining e misoginia” ou fazer uma sessão com um dos “terapeutas qualificados” no setor “The Healing Field”. Tudo isso existe em Glastonbury. Rock’n’roll.

BBC, o deus solar da verdade

A virtude fake que foi exibida nesse evento envelhecido foi ainda mais ridícula neste ano do que o habitual. Junto com o bote flutuante de Banksy, vimos Cyndi Lauper desafinar e mudar a letra de sua música mais famosa para “girls just wanna have fun-damental rights” (“meninas só querem direitos fundamentais”). Ela cantou isso — bom, foi mais um balbucio — para uma multidão que agitava fervorosamente a bandeira de uma nação, a Palestina, onde meninas não têm nem diversão nem direitos. Na Faixa de Gaza, elas nem sequer têm proteção legal contra violência física ou sexual em casa. Derrubar o patriarcado enquanto seus fãs aplaudem entusiasmados uma nação patriarcal — como isso faz sentido?

Cyndi Lauper se apresenta no Pyramid Stage, durante o Glastonbury (29/6/2024) | Foto: Reuters/Dylan Martinez

Em seguida tivemos Ros Atkins, da BBC, discotecando no palco Stonebridge Bar. Honestamente, foi como uma crise de meia-idade transformada em música. Ele chegou a tocar uma versão drum’n’bass do tema do noticiário da BBC. Se isso parece a coisa mais constrangedora que você já ouviu, é porque foi. A imagem de quarentões do Glastonbury agitando bandeiras com as letras “B-B-C” enquanto dançavam ao som da música de abertura dos boletins de notícias da emissora foi quase surreal. De dançar sem blusa ao som de Kinks em 1970 a adorar a emissora estatal como uma espécie de deus solar da verdade em 2024 — senhoras e senhores, essa é a classe média britânica.

Autocongratulação disfarçada de consciência

E, mesmo assim, houve um limite na exibição de virtude no festival. E esse limite foi revelador. Em nenhum dos palcos, em nenhum dos atos, houve uma única menção às 364 pessoas massacradas no festival de música Nova, no sul de Israel, em 7 de outubro. Centenas de pessoas assassinadas por racistas enquanto dançavam trance em uma festa parecida com o Glastonbury no deserto apenas oito meses atrás, e nenhum artista da programação achou que cabia dizer algo sobre isso. Nenhum minuto de silêncio, nenhuma bandeira preta, nada para seus companheiros de festival que foram mortos por antissemitas. Pelo contrário, para onde quer que você olhasse, lá estava a bandeira do lado que fez o massacre em Nova, não do lado que sofreu esse ato infernal de violência racista, misógino e tirânico.

Centenas de pessoas fogem dos terroristas armados do Hamas em um festival de música perto do Kibutz Re’im, em Israel (7/10/2023) | Foto: Reprodução

E aí está, a falsa virtude falsa das elites. Protestar contra fronteiras de dentro das classes cercadas. Posar contra a misoginia sem uma única palavra pelas mulheres estupradas e assassinadas pelo Hamas. Autocongratulação disfarçada de consciência. Narcisismo disfarçado de progressismo. O Glastonbury pode ser uma porcaria hoje em dia, mas seus insights sobre a mentalidade da burguesia continuam imbatíveis.


Brendan O’Neill é repórter-chefe de política da Spiked e apresentador do podcast da Spiked, The Brendan O’Neill Show. Seu novo livro, A Heretic’s Manifesto: Essays on the Unsayable, foi publicado em 2023. Brendan está no Instagram: @burntoakboy

Leia também “Rafah nos faz lembrar os males do Hamas”

1 comentário
  1. Alberto Junior
    Alberto Junior

    E Roger Waters, um doente ultraesquerdista conscientemente esclerosado, cinicamente chamando, em entrevista recente, esse fato terrível do massacre terrorista ocorrido em uma festa em Israel, de fake news!!! Estamos vivenciando uma degradação moral sem precedentes! Como um sujeito – que um dia foi um artista brilhante – chega a esse nível de vadiagem moral!!!

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