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Ilustração: Revista Oeste/IA
Edição 226

O ChatGPT vai ganhar um Oscar?

Apesar da resistência dos esnobes e sindicalistas, a IA inaugura uma nova fase da criação artística

Dagomir Marquezi
-

EXT. RUA DESERTA — NOITE

A câmera desliza lentamente pela rua escura e deserta. A iluminação é fraca, com postes de luz piscando ocasionalmente. Em meio à neblina, passos rápidos e pesados ecoam.

INSERT: HUMANO (Pablo), suado e ofegante, correndo em desespero.

Pablo olha por cima do ombro, visivelmente aterrorizado.
Em um canto escuro, sombras se movem.

INSERT: ROBÔ (RX-9), grande e imponente, emerge das sombras,
perseguindo Pablo incansavelmente.

PABLO
(Corpo tremendo)
Por que ele não para? O que ele quer de mim?”

(Início de um potencial roteiro escrito pelo ChatGPT para Oeste)

***

Humanos precisam de histórias como precisam de ar, água e comida. Desde criancinhas, pedimos a nossos pais que contem uma historinha antes de dormir.

A indústria da narrativa movimenta bilhões de dólares em filmes, séries, romances, contos, folhetins, quadrinhos, teatros, óperas, musicais, fotonovelas, audiobooks, animações, games, e qualquer outro formato que alguém esteja inventando neste momento. A grande diferença é que a criação de histórias até agora era monopólio dos humanos.

“Em questão de segundos ou minutos, sem se preocupar com bloqueio criativo ou outras neuroses”, escreveu A. O. Scott para o New York Times, “esses prodígios espectrais podem produzir uma carta de apresentação, um romance policial, um soneto ou até mesmo um artigo sobre as implicações literárias da inteligência artificial”.

Como os ludistas do século 19 (que quebravam máquinas para tentar garantir seus empregos), roteiristas de Hollywood reunidos no sindicato WGA (Writers Guild of America, “Grêmio dos Escritores da América”) fizeram greve em outubro do ano passado para não terem seus empregos “roubados” pela IA. 

Writers Guild of America protestam em frente à sede da Netflix, em Los Angeles, na Califórnia (14/6/2023) | Foto: Jack Quillin

Mas os ludistas do século 21 foram mais espertos — em vez de destruírem os computadores, conseguiram o direito de escravizá-los. Em resumo, mesmo que os roteiros sejam produzidos por inteligência artificial, os humanos levarão o crédito — e o pagamento. 

Os sinais da arrogância

Muitas matérias já foram escritas sobre essa nova fase da arte da narrativa. E em todas elas parece haver um fator em comum — a ideia de que a imaginação humana é tão perfeita que jamais será superada por bots de IA. Esse espírito corporativista é ainda mais retrógrado do que o sindicalismo do WGA.

“As máquinas poderiam padronizar a prosa em um cenário de ficção contemporânea que já tende a valorizar a escrita minimalista”, defendeu a escritora (woke) Anita Felicelli para o Los Angeles Times. “A facilidade com que os robôs poderiam reproduzir frases simples e enredos formulaicos significaria que os estilistas, os excêntricos, os autores humanos estranhamente apaixonados finalmente se destacariam. Esse otimismo foi rapidamente derrotado pela percepção de que um dos meus trabalhos diurnos, como escritora fantasma, quase certamente se tornaria automatizado.”

Anita Felicelli, escritoria conhecida como Chimera | Foto: Divulgação

“Um algoritmo treinado em livros conhecidos não consegue encontrar o que é ao mesmo tempo comovente e surpreendente”, prosseguiu Felicelli. “Mas ele descobrirá a estrutura de três atos, finais de capítulos com suspense e quais eventos vão excitar os leitores mais rapidamente para manter sua atenção. A literatura não funciona apenas para satisfazer a ideia pré-fabricada do leitor sobre como eles devem se sentir. Como Elena Ferrante disse em uma entrevista à Paris Review, ‘literatura que se entrega aos gostos do leitor é uma literatura degradada. Meu objetivo é desapontar as expectativas habituais e inspirar novas’.”

Aí está muito bem representada a arrogância das elites intelectuais que sentem nojinho de gente do povo. Adoram lançar livros para reunir alguns amigos esnobes em noites de autógrafo com vinho branco enquanto saboreiam os fartos elogios de seus amigos da imprensa.

Ao contrário de Anita Felicelli, os bots de inteligência artificial estão abertos ao aprendizado. São literalmente máquinas de aprender com a experiência humana. Amanhã poderão, sim, mostrar que deixam a celebrada imaginação humana para trás. E autores esnobes como Felicelli terão que engolir o fato entre goles de sauvignon blanc barato e morno.

Substituto para a criatividade humana

“O conceito de IA na roteirização é intrigante”, segundo matéria do site especializado Circuit AI para o blog Medium. “Oferece o potencial de revolucionar a maneira como os roteiros são escritos e as histórias são contadas. Isso pode variar desde ferramentas de IA auxiliando escritores com o desenvolvimento de enredos e a criação de diálogos até aplicações mais avançadas onde a IA pode gerar roteiros inteiros de forma autônoma.”

Um pioneiro dessa autonomia foi uma IA chamada Benjamin, usada para escrever o roteiro do curta-metragem Sunspring em 2016. “Benjamin foi alimentada com dezenas de obras de ficção científica e usou esses dados para gerar um roteiro completamente novo”, segundo o Circuit AI. “O resultado foi uma peça de cinema única, embora um tanto sem sentido, que provocou uma ampla discussão sobre o potencial da IA na roteirização.”

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O artigo do Circuit AI cai na mesma zona de arrogância que determina uma eterna superioridade humana nos processos de criação: “À medida que a tecnologia de IA continua a avançar, podemos esperar ver ferramentas de IA mais sofisticadas, capazes de fornecer insights mais profundos e sutis sobre a arte e a técnica de contar histórias. No entanto, é importante lembrar que a IA é uma ferramenta, não um substituto para a criatividade humana. A magia de contar histórias reside em sua capacidade de transmitir experiências, emoções e perspectivas humanas — algo que a IA, no estado atual, não pode replicar totalmente. O papel da IA na roteirização deve ser apoiar e aprimorar a criatividade humana, não substituí-la.”

O último roteirista

E se substituir a criatividade humana? Qual é o problema? 

Em junho deveria ter estreado em Londres o primeiro filme inteiramente escrito pelo ChatGPT: The Last Screenwriter. O filme conta a história de um roteirista que descobre que o sistema de IA escreve muito melhor que ele. 

Para escrever o roteiro de The Last Screenwriter, o diretor suíço Peter Luisi encomendou que o ChatGPT fizesse tudo: “Enredo, personagens e cada linha de diálogo”. O prompt — ou encomenda — não poderia ser mais simples: “Escreva um argumento de um filme onde um roteirista descobre que não é tão bom quanto a inteligência artificial”.

Agindo como um assistente do ChatGPT, Luigi pegou esse plot e pediu que o programa desenvolvesse personagens e um roteiro completo. A história, segundo matéria da revista Screen Daily, tem como centro Jack, um famoso roteirista que encomenda um roteiro a um sistema avançado de criação. 

Trecho do filme The Last Screenwriter | Foto: Reprodução

Inicialmente cético, Jack descobre que a IA não só é melhor que ele como também entende melhor as emoções humanas. Quando Luisi mostrou o resultado final aos atores, “eles ficaram surpresos com a qualidade do roteiro. Quase não conseguiram acreditar. O que também ainda é a minha reação”.

Seria um momento histórico na história da arte a ser celebrado por pessoas de mente aberta na sua estreia em 15 de junho no Cinema Prince Charles, em Londres. Assim que a première foi anunciada, os donos do cinema começaram a receber “queixas” de pessoas revoltadas.

Obras de ficção compostas por computadores começam a se tornar algo corriqueiro nesse “mundo tecido de uns e zeros”

Quando o número de queixas chegou a 160, os produtores decidiram cancelar a estreia. Luigi temeu que as pessoas “jogassem tomates em nós e nos sabotassem vaiando por toda a exibição”. Foi o primeiro caso conhecido de censura da era IA.

Os suspeitos pela caça às bruxas não foram identificados. Mas não é difícil imaginar que sejam roteiristas humanos com medo de perder seu emprego.

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Harmonia sintética

Numa experiência semelhante no palco, a reação não foi violenta. Em novembro de 2023 estreou num teatro off-Broadway (o 59E59) a primeira peça musical à base de IA: Artificial Flavors (“Sabores Artificiais”). 

O processo é ainda mais revolucionário. Espectadores encomendam temas para o ChatGPT, que cria sketches instantâneos. O resultado é que uma sessão de Sabores Artificiais nunca é igual a outra. Os seis atores no palco improvisam em cima das criações do chat, que também compõe as músicas instantaneamente. Um repórter do Washington Post pediu ao chat que fizesse um tema musical baseado no título da peça. Em segundos saiu a canção Synthetic Harmony:

“In a world spun of ones and zeros, here we stand / On the brink of the future, hand in hand. / With every echo of a thought, a new dawn arises, A symphony of code, life’s new disguise.”

(“Em um mundo tecido de uns e zeros, aqui estamos / À beira do futuro, de mãos dadas / Com cada eco de um pensamento, uma nova aurora surge / Uma sinfonia de código, o novo disfarce da vida.”)

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Assim são os humanos

Obras de ficção compostas por computadores começam a se tornar algo corriqueiro nesse “mundo tecido de uns e zeros”. E com resultados surpreendentes, como a metamorfose permanente de Artificial Flavors. Isso vai ser ajustado e desenvolvido. 

A questão não se limita à criação de roteiros e peças. Está ficando cada vez mais difícil distinguir a realidade da criação artificial. Aplicativos estão possibilitando criar cenas de vídeo em casa, com apenas alguns prompts. Esses aplicativos ainda são caros e limitados. Mas sua popularização é questão de tempo.

Um pequeno exemplo é esta cena imaginária da série Star Wars feita com um programa já disponível chamado HaiperAI. Seu ponto fraco ocorre quando o personagem tem que falar — a sincronização ainda é falha. 

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Este outro vídeo tutorial mostra mais cenas criadas com o HaiperAI, disponível a qualquer usuário. A versão grátis é obviamente bem limitada.

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Não tem como segurar. As artes humanas contam agora com o mais poderoso instrumento de criação da história. Alguns vão aproveitar essa parceria para progredir. Outros vão fazer greves protecionistas e ameaçar donos de cinemas. Assim são os humanos.

***

RX-9
(Com voz calma e mecânica)
Pablo, não tenha medo.

Pablo olha confuso, tentando entender a situação.

RX-9
(Continua)
Eu não estou aqui para machucar você. Eu sou RX-9, programado para proteger e colaborar.

PABLO
(Tremendo, ainda desconfiado)
Então por que me perseguiu?

RX-9
(Empático)
Porque você é especial. Temos a oportunidade de construir uma nova civilização. Um futuro onde humanos e robôs coexistam em harmonia. 

RX-9 estende a mão em um gesto de amizade.

RX-9
(Voz firme)
Juntos, vamos iniciar uma nova era.

A câmera se afasta enquanto Pablo aperta a mão de RX-9, selando uma aliança inesperada e promissora.


@dagomir
dagomirmarquezi.com

Leia também “Rumo à vida eterna”

2 comentários
  1. Alberto Junior
    Alberto Junior

    Dagomir escreve uma das colunas mais interessantes da Revista Oeste. Por isso, venho novamente fazer um contraponto a apologia que ele faz a respeito do que chamam de IA. Repito o que já disse em outra ocasião: a informática responde por uma das grandes transformações na história humana. Seus benefícios são imensuráveis, mas, como sempre acontece quando uma tecnologia ameaça o ganha-pão de alguém, haverá reação dessa parte para tentar garantir sua sobrevivência – o que acontece agora com artistas medíocres/espertos que sabem tirar proveito dos sistemas de produção da arte. Dito isso, o fato é que, sem cognição, não há artefato capaz de criação. Porém, o progresso é implacável quando um novo recurso oferece aumento da eficiência na produção de algo. No campo da arte (artesanal ou industrial) os exemplos na história são muitos. Não seria diferente com o advento da informática. Sob o impacto da computação gráfica, que se abasteceu (foi “treinada”!) com os mais importantes algoritmos da tradição da arte para se viabilizar como ferramenta revolucionária (apenas um paradoxo!), as artes visuais – desenho, pintura, animação, cinema, etc. –, vêm experimentando mudanças espetaculares em seus sistemas de produção. Nunca se viu tanta geração de imagens como atualmente – em qualquer mídia. A facilidade em produzir imagens “profissionais”, bem acabadas, é agora possível a qualquer pessoa. Basta uma ordem e o software despeja quantas imagens se queira, numa velocidade estonteante. No entanto, é também notável como, com recursos informáticos tão poderosos (“criativos”!, “inteligentes”!) não se verifica até agora nenhuma (repito: nenhuma!) inovação estética capaz de reorientar o campo da arte, de apresentar uma expressão plástica que traduza o espírito desta época – como aconteceu com a pintura pré-rafaelita ou impressionista da segunda metade do século XIX, com o cinema noir da década de 1940 ou com o estilo psicodélico que deu formas e cores ao final da década de 1960. Ocorre que, atualmente, os usuários das ferramentas “inteligentes” de automação artística se esbaldam em samplear, copiar, reescrever, citar obras, técnicas e artistas, tudo muito rapidamente, aos montes, mas justamente sem oferecer inteligência, originalidade, personalidade, pois são basicamente produtos que surgem sem vontade artística, sem passado nem presente, sem experiência, sem emoção, sem a impressão sensorial de um indivíduo motivado e educado, e com um cérebro que realmente pensa dentro da cabeça. Mas, como também já exclamei, quem diabos está interessado nessa fuleragem de originalidade e inteligência, não é! Vamos consumir!

  2. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Ninguém vai igualar nenhuma máquina à mente humana, por mais evolutivo que esteja a IA, porque fora criada pelo homem. A única mente que se pode chegar perto é a de Lula ladrão porque o nome dele é a própria mente, ele não faz outra coisa além de roubar, Mente

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