Pular para o conteúdo
publicidade
Ilustração: Shutterstock
Edição 229

Você está atento ao TDAH?

Casos de transtorno do déficit de atenção com hiperatividade estão crescendo entre adultos. Ou não?

Dagomir Marquezi
-

Será que eu tenho TDAH? Será que você, prezado leitor, pode ser diagnosticado como portador de transtorno do déficit de atenção com hiperatividade? Esta é uma lista básica dos sintomas:

  • Desatenção 
  • Hiperatividade 
  • Dificuldade de organização
  • Dificuldade no aprendizado

Todos nós podemos em um momento ou outro ser incluídos entre esses sintomas. Mas ser distraído é uma coisa. Ser diagnosticado com o TDAH é outra, mais séria.

O transtorno do déficit de atenção com hiperatividade foi o tema de capa da revista BBC Science Focus deste mês. O artigo escrito pelo neurocientista Dean Burnett coloca em questão até a possibilidade de o TDAH não ser exatamente uma condição clínica. Existe inclusive o mito de que o TDAH seria uma “desculpa para pessoas preguiçosas”.

Segundo a revista, uma pesquisa no Reino Unido mostra um aumento de 20 vezes no número de diagnósticos de ADHD (como a condição é conhecida em inglês) desde o ano 2000. O número de adultos diagnosticados subiu sete vezes nos últimos dez anos. Entre 2021 e 2022, houve um aumento de 20% na prescrição de remédios para TDAH no Reino Unido. 

Ilustração: Shutterstock

Durante esse período, mais adultos foram diagnosticados do que crianças. A detecção do transtorno é bem mais fácil na infância do que na vida adulta. Quando crescemos, nossa vida se torna mais complexa, e o diagnóstico se esconde nos detalhes. Quando adultos começam a ser diagnosticados em massa com o TDAH, algo está acontecendo.

A matéria da Science Focus cita que de 3% a 5% da população mundial tem TDAH. Essa proporção é reconhecida na população do Brasil também. Serão todos preguiçosos com uma desculpa médica? 

No final de julho, o Congresso e o Senado brasileiros foram iluminados com a cor amarela, como uma forma de lembrar o país da existência do TDAH. Mas o transtorno não tem cobertura do SUS, o que seria uma forma de reconhecimento. 

Superpoder

A jornalista inglesa Kat Brown não acha que o TDAH seja brincadeira e acabou de lançar o livro It’s a Bloody Trend: Undestanding Life as an ADHD Adult (em tradução livre, “É uma tendência, sim: entendendo a vida como um adulto com TDAH”).

Brown tem o transtorno e no seu livro aconselha a quem tiver um diagnóstico já na idade adulta que aceite o fato. E que se perdoe por não ter descoberto a condição mais cedo. Ela entrevistou muita gente com TDAH e nesses depoimentos fica claro que cada caso é um caso. 

Alguns acham mesmo que ter TDAH não é uma “doença”, mas um privilégio, quase um superpoder — a capacidade do seu cérebro de buscar simultaneamente mais saídas e soluções que o de pessoas “normais”. A matéria da Science Focus cita uma corrente que considera que “o TDAH pode incrementar sua habilidade em navegar e interagir com o mundo digital, que é tipicamente construído de múltiplas fontes de atenção chamando a atenção simultaneamente”.

Capa da Science Focus destaca pesquisa sobre TDAH em adultos | Imagem: Divulgação

Kat Brown lembra o lado mais difícil da condição — o de estar ligada a comorbidades. Um TDAH leve pode ser perfeitamente administrado. Mas sua conjunção com outras condições pode complicar e muito a situação: autismo, superdotação, depressão, desordem bipolar etc. Nesses casos, uma orientação profissional é obrigatória.

Um carro a 180 quilômetros por hora

O que provoca o TDAH? Ninguém sabe com exatidão. Segundo a matéria escrita pelo neurocientista Dean Burnett para a Science Focus, “pesquisas mostram que crianças e adolescentes com TDAH possuem as ligações neurais com o córtex (as camadas superiores do cérebro onde os processos cognitivos mais importantes acontecem) mais finas do que a média. Isso prejudicaria “áreas do cérebro muito envolvidas em processos que incluem o autocontrole, o planejamento antecipado, movimentos e reações emocionais. Todas essas coisas são normalmente afetadas pelo TDAH”.

Outros estudos dizem o contrário: o desenvolvimento dos neurônios que ligam as regiões cerebrais podem ter se desenvolvido demais, causando mais ruído no cérebro — o que atrapalha o foco, a concentração e o controle.

O neurologista Paulo Porto deu a seguinte explicação para Oeste a respeito da ocorrência do TDAH segundo a sua especialidade médica:

“O TDAH é uma hiperestimulação dos circuitos cerebrais. O cérebro funciona no equilíbrio entre dois sistemas de neurotransmissores principais: um é o sistema GABAérgico (que regula o sono, o humor, a ansiedade, o estresse e a excitação neuronal). O outro é o sistema do glutamato. O GABAérgico é inibitório. Ele desacelera a velocidade de funcionamento do cérebro. O do glutamato é um sistema excitatório, que acelera o cérebro. Se houver um predomínio muito importante do glutamato, o cérebro vai estar muito acelerado, e consequentemente a pessoa não presta muita atenção nas coisas. Se você estiver num carro a 180 quilômetros por hora, não vai se lembrar de detalhes da paisagem.”

O fator celular

Nem toda distração é TDAH. Matéria recente de Christina Caron para o New York Times listou alguns desses falsos diagnósticos. Ela cita um estudo de 2017 publicado pelo American Journal of Psychiatry em que 95% das pessoas com 12 anos ou mais que pareciam ter TDAH não tinham.

O uso pesado de drogas foi uma razão óbvia para a falta de atenção. Outra foi a simples falta de horas de sono. Algumas pessoas acham que podem dormir de três a seis horas por dia. Não é o suficiente. Segundo o artigo, adultos precisam de sete a nove horas de sono diários, ou vão ficar obviamente distraídos.

Outra razão não neurológica para o déficit de atenção: o celular. Somos atraídos por uma tempestade de textos, posts, imagens, mensagens, informações. E a culpa não é do celular, mas da nossa indisciplina no seu uso. Vemos nas ruas pessoas atravessando a rua ou dirigindo de olho na telinha. É óbvio que estarão distraídas. 

Foto: Shutterstock

E temos também as condições genéricas de estresse, que nos fazem perder o pé da realidade. A pessoa trabalha dez horas por dia, suporta problemas familiares, lida com uma situação financeira difícil, começa a se alienar naturalmente. E pensa que é TDAH.

O caso Pixar

Ter o TDAH é uma pré-condição de fracasso profissional? Pessoas altamente bem-sucedidas foram diagnosticadas — Will Smith, Justin Timberlake, Emma Watson, Kurt Cobain, Richard Branson, Jim Carrey, entre outros. 

Em certos casos, o TDAH está revelando mais do que a aparência. A falta de atenção de um aluno na escola pode estar refletindo menos uma condição clínica pessoal do que a falência de um sistema educacional burocrático, verticalizado, autoritário, tedioso e inútil.

TDAH tem cura? Não exatamente. Mas pode ser atenuado com intervenções médicas, remédios e terapias

O mesmo pode ser dito de locais de trabalho. Um funcionário pode estar cheio de ideias para melhorar a empresa onde trabalha. Mas um clima burocrático acaba transformando essa criação espontânea de ideias em “distração”. Nesse caso, é o trabalho que está doente, não o empregado.

A produtora Pixar encheu as salas de seus funcionários de distrações — joguinhos, fliperamas, alvos para dardos, imagens diversas, etc. Passagens pela cantina da empresa são estimuladas. E ninguém pode criticar a efetividade no processo de criação da Pixar. A distração, no caso, tem um efeito reverso e estimula a criatividade.

Estúdio da Pixar adota uma nova abordagem para o ambiente de trabalho, promovendo a criatividade e o engajamento dos funcionários | Foto: Divulgação/Oh My Disney
Cortando o açúcar

TDAH tem cura? Não exatamente. Mas pode ser atenuado com intervenções médicas, remédios e terapias. Alguns dos remédios usados são à base de dextroanfetamina (Dexedrina) e metilfenidato (Ritalina). São estimulantes.

O escritor Nick Pettigrew, que tem o transtorno, definiu assim sua relação com remédios para sua condição: “É como se por minha vida inteira eu tivesse uma perna quebrada que jamais se curava. De alguma forma eu consegui chegar aos meus 40 anos lidando com isso. É como usar muletas pela primeira vez. Eu ainda tenho uma perna quebrada, isso não vai se curar, mas me movimentar pelo mundo agora é um pouco mais fácil”.

A Ritalina é um medicamento utilizado para tratar o TDAH e a narcolepsia. Seu princípio ativo é o metilfenidato, que atua como um estimulante do sistema nervoso central | Foto: Shutterstock

Alguns “remédios” para a condição são surpreendentemente simples. O neurologista Paulo Porto deu o seguinte exemplo no seu depoimento a Oeste:

“Por que temos essa epidemia de TDAH? Primeiro porque nossa alimentação estimula o sistema de glutamato e prejudica o sistema de GABA. Esse fator de alimentação é mais marcante ainda em crianças. A gente ‘cura’ muito TDAH restringindo o açúcar refinado simples. Esse açúcar refinado dá uma recompensa tão grande em termos de dopamina que na interação com o glutamato acelera incrivelmente a velocidade de funcionamento das crianças, ainda em processo de desenvolvimento. Com essa restrição já podemos ter uma melhora de 90% a quase 100% dos quadros de hiperatividade.”

A linguagem biônica

De uma maneira geral, ter TDAH é mais uma questão de adaptação do que de cura. Um exemplo prático foi dado pela escritora (e portadora de TDAH) Kat Brown. Ela editou seu livro sobre o transtorno com a chamada linguagem biônica. 

A linguagem biônica destaca em cada frase a primeira metade das palavras. Isso facilita a leitura para quem tem déficit de atenção, pois deixa a página menos tediosa e faz a pessoa focar a palavra em menos tempo:

Linguagem biônica refere-se a um campo de estudo que integra biologia, eletrônica e computação para criar interfaces avançadas entre sistemas biológicos e dispositivos eletrônicos | Imagem: It’s Not A Bloody Trend: Understanding Life as an ADHD Adult/Kat Brown

A psicóloga e psicoterapeuta Iane Kestelman publicou no site da Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA) algumas dicas do que um portador de TDAH deve buscar no local de trabalho. Elas funcionam para qualquer pessoa, mas são ainda mais fundamentais para quem tem dificuldade de concentração. Exemplos:

  1. Identifique o horário em que você consegue focar melhor.
  2. Use um cronômetro para estabelecer o tempo de cada tarefa.
  3. Tenha à mão objetos que ajudem a relaxar.
  4. Saia para caminhar quanto tiver dificuldade de concentração.
  5. Controle a ansiedade de checar o e-mail, o WhatsApp e as redes sociais o tempo todo. Se necessário, cronometre esses intervalos.
  6. Crie uma lista de tarefas para cada dia.
  7. Crie rotinas para pequenas tarefas.
Afinal, nós todos temos TDAH?

Pense em situações clínicas relativas. Você não “tem” colesterol alto, hipertensão etc., escreveu o psiquiatra Paulo Mattos no seu livro No Mundo da Lua. São condições mutáveis, controláveis. “Chamamos isso de uma doença dimensional, em oposição às doenças que ou nós temos ou não temos, como câncer, HIV, entre outras.”

“Os estudos de genética demonstram que o TDAH é o extremo de traços encontrados na população em geral”, definiu o doutor Mattos. “Poderíamos dizer que não se trata de ter ou não ter TDAH, mas simplesmente de quanto TDAH cada um de nós tem.” 

P.S.: Entrevistei, em companhia da repórter Camila Abdo, o especialista no assunto Yuri Maia, diagnosticado com TDAH aos 7 anos de idade. A entrevista, feita para o programa OesteCast, esclareceu muitos pontos dessa condição.

YouTube video

@dagomir
dagomirmarquezi.com

Leia também “A tela azul da morte”

2 comentários
  1. Dario Palhares
    Dario Palhares

    O TDAH surgiu, estranhamente, junto com a ritalina e outros medicamentos. Uma condição milenarmente inexistente, mas que agora pipoca em cada canto, aos montes? Em saúde mental, a doença e a normalidade são gradações quantitativas, e não qualitativas. O que esses rótulos fazem é patologizar o normal, aumentando a base de usuários de psicotrópicos. Pois os budistas, os ióguins sempre falaram em ‘dominar a mente’. Ao final de aulas de ioga, sempre há uma pequena meditação. Porque a mente, a atenção, o foco são atitudes que nossa vontade pode controlar, chegando a extremos como os budistas que se imolaram no fogo e não moveram um músculo. De todos esses quantos adultos com TDAH, quantos estão buscando exercitar os músculos e o controle da mente? Ou quantos estão simplesmente comprando uma pílula de um super-eu, com sabe-se lá quais consequências de longo prazo?

  2. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Artigo interessante e esclarecedor.

Anterior:
‘O PT já quebrou o país uma vez e pode quebrar de novo’
Próximo:
Como as escolas estão sexualizando a infância
Newsletter

Seja o primeiro a saber sobre notícias, acontecimentos e eventos semanais no seu e-mail.