‘Eu estava apenas obedecendo ordens’

A frase “Eu estava apenas obedecendo ordens” tornou-se famosa após a Segunda Guerra Mundial, pois foi frequentemente usada por oficiais e soldados nazistas para justificar sua participação no Holocausto e em outros crimes de guerra.

Essa defesa, também conhecida como cumprimento de “ordens superiores”, foi amplamente utilizada durante os Julgamentos de Nuremberg, em que líderes nazistas de alto escalão foram processados por crimes contra a humanidade. Os réus argumentaram que estavam apenas seguindo as ordens de seus superiores e que não tinham escolha a não ser cumpri-las, já que a desobediência resultaria em punição severa. No entanto, essa defesa foi amplamente rejeitada pelo tribunal, que enfatizou a responsabilidade individual e a digital da moralidade.

Os Julgamentos de Nuremberg marcaram um momento significativo no Direito internacional, pois estabeleceram o princípio de que seguir ordens não absolve os indivíduos da responsabilidade por suas ações. O tribunal deixou claro que existem certas obrigações morais e legais que transcendem as leis nacionais e as ordens superiores. Isso foi particularmente importante no contexto das atrocidades cometidas pelos nazistas, já que a escala e a natureza sistemática do genocídio não poderiam ser justificadas simplesmente transferindo a culpa para autoridades superiores ou para o “contexto”. Os julgamentos destacaram a importância da responsabilidade pessoal, especialmente em situações em que as ordens dadas são manifestamente ilegais ou imorais.

A frase “Eu estava apenas obedecendo ordens” também levanta questões éticas mais amplas sobre a natureza da obediência e os limites da lealdade. Em muitos regimes autoritários, incluindo a Alemanha Nazista, a ênfase na obediência e na lealdade ao Estado muitas vezes levou os indivíduos a cometerem atos hediondos sem questionar a moralidade de suas ações. O regime nazista, através de propaganda e doutrinação, cultivou uma cultura de obediência cega, onde questionar ordens era visto como um ato de traição. No entanto, os Julgamentos de Nuremberg demonstraram que tal obediência não pode ser usada como um escudo contra a culpabilidade e que os indivíduos têm o dever moral de resistir a ordens ilegais ou imorais.

Nesta semana, mais páginas da democracia relativa do Brasil assustadoramente se entrelaçaram com páginas de regimes totalitários na humanidade. 

O que já pode ser considerado um dos maiores escândalos de nossa história, o “Xandão Gate”, ou “Vaza Toga”, como queiram, desnudou em mensagens e áudios o que os brasileiros já imaginam, sem muito esforço, há muito tempo: o Supremo Tribunal Federal e seu puxadinho, o Tribunal Superior Eleitoral. As Cortes foram vergonhosamente usadas como armas políticas, completamente fora de seus ritos e prerrogativas institucionais, e com imenso desrespeito à Constituição.

O jornalista Glenn Greenwald teve acesso a mais de 6 gigabytes de mensagens e arquivos trocados via WhatsApp entre assessores do ministro Alexandre de Moraes que atuam ou atuavam tanto na equipe do STF quanto na do TSE. Em 2022, Moraes era o presidente do TSE, e os relatórios produzidos por esse tribunal teriam sido utilizados para alimentar o inquérito das fake news no STF em casos que teriam, mas não necessariamente, ligações com as eleições presidenciais daquele ano.

O maior volume de mensagens publicado até agora ocorreu entre o juiz instrutor Airton Vieira, assessor mais próximo de Moraes no STF, e Eduardo Tagliaferro. De acordo com a reportagem de Greenwald para a Folha, Airton Vieira enviou, em 6 de dezembro de 2022, uma mensagem a Tagliaferro com um pedido específico: “Vamos levantar todas essas revistas golpistas para desmonetizar nas redes”.

Vieira falava da Revista Oeste.

Em um macabro diálogo — sim, macabro, pois o conteúdo exposto é digno apenas de digitais totalitárias —, os assessores de Moraes debatem um problema. Tagliaferro teria avisado que não havia encontrado nada de errado na Revista Oeste, apenas “publicações jornalísticas”, que “não estavam falando nada”. Sem saber como atender ao pedido do chefe Moraes, ele então pergunta o que deveria colocar no relatório.

Vieira responde com a naturalidade de um stalinista: “Use a sua criatividade… rsrsrs”. E foi além: “Pegue uma ou outra fala, opinião mais ácida e… O Ministro entendeu que está extrapolando com base naquilo que enviou…”.

“Vou dar um jeito rsrsrs”, disse Tagliaferro.

‘Vou dar um jeito rsrsrs’

Tagliaferro, assim como Moraes — que já demonstrou absoluta obsessão pela perseguição a Filipe Martins e Daniel Silveira, por exemplo —, lembra uma figura-chave na execução das políticas opressivas de Stalin: Lavrentiy Beria, que se tornou chefe da NKVD (a polícia secreta soviética) em 1938.

Beria era notório por sua crueldade e desempenhou um papel central nos expurgos e execuções em massa. Ele é frequentemente lembrado por sua declaração arrepiante, que repetia com orgulho: “Mostre-me o homem e eu encontrarei o crime”. Isso expõe a natureza arbitrária e brutal do regime de Stalin, onde a culpa muitas vezes era determinada não por provas, mas pelos caprichos daqueles no poder. O mandato de Beria foi marcado por um terror generalizado, enquanto ele orquestrava prisões em massa, extraía confissões sob tortura e conduzia julgamentos públicos para denunciar e punir supostos inimigos do regime.

Sob a direção de Beria, a NKVD operava com quase total impunidade. Os informantes eram incentivados a denunciar vizinhos, colegas e até mesmo familiares, fomentando uma cultura de paranoia e traição. A polícia secreta empregava uma variedade de técnicas coercitivas para extrair confissões, incluindo tortura física, intimidação psicológica, prisões e ameaças contra entes queridos. As acusações feitas contra indivíduos muitas vezes eram fabricadas, e muitas confissões eram obtidas sob coação. 

À Folha, Tagliaferro disse que não se manifestará sobre o caso e que “cumpria todas as ordens que me eram dadas”, e não se recorda de ter cometido qualquer ilegalidade.

O grito dos covardes

Nos anos desde a Segunda Guerra Mundial, a defesa de “apenas obedecendo ordens” foi invocada em vários outros contextos, mas tem sido consistentemente recebida com ceticismo. O legado dos Julgamentos de Nuremberg continua a influenciar o Direito internacional e os direitos humanos, reforçando a ideia de que os indivíduos devem ser responsabilizados por suas ações, independentemente das ordens que recebem. Esse princípio tem sido crucial para evitar a recorrência de atrocidades e para promover a ideia de que a responsabilidade moral não pode ser abdicada diante da autoridade.

Quem se esconde atrás da “obediência” é tão abominável quanto aquele que emite as ordens

A frase “Eu estava apenas obedecendo ordens” é o grito dos covardes e não passa de um refúgio dos fracos, onde pessoas se escondem atrás de uniformes, togas e títulos para justificar atos abomináveis. Essa desculpa nojenta foi usada para justificar os piores crimes da humanidade, e continuar a aceitá-la é permitir que o mal floresça sob o manto da obediência.

Em um mundo onde a injustiça ainda se esconde atrás de leis e autoridades, “Derrotamos o Bolsonarismo”, “Perdeu, Mané”, e agora “Vou dar um jeito” dão as mãos para “Mostre-me o homem e eu encontrarei o crime”. Algo digno dos verdadeiros antidemocráticos.

Nos dias de hoje, essa desculpa repugnante precisa ser esmagada sem piedade. Não há espaço para subterfúgios quando vidas estão em jogo, quando direitos estão sendo pisoteados. Quem se esconde atrás da “obediência” é tão abominável quanto aquele que emite as ordens. A responsabilidade é intransferível, e a história já provou que aqueles que seguem cegamente as ordens de tiranos são os primeiros a pagar o preço quando o ciclo de destruição finalmente se fecha. 

E a história também nos mostra que eles, os infames ciclos de destruição, sempre se fecham. Sempre.

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