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Kamala Harris, candidata presidencial democrata e vice-presidente dos EUA, discursa na Convenção Nacional Democrata (DNC), no United Center, em Chicago, Illinois (22/8/2024) | Foto: Callaghan O'hare/Reuters
Edição 231

A festa do golpe

Kamala Harris ascendeu ao patamar de candidata ao posto mais poderoso do mundo sem um voto sequer

Ana Paula Henkel
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Uma mudança histórica em uma chapa presidencial. Esse foi o pano de fundo da convenção democrata desta semana, que começou na segunda-feira com o presidente Joe Biden “passando a tocha” para a vice-presidente Kamala Harris. O evento democrata terminou nesta quinta-feira à noite, 22 de agosto, com Harris aceitando oficialmente a indicação para a corrida à Casa Branca de seu partido.

É quase desnecessário dizer que o que os democratas fizeram na Convenção Nacional desta semana em Chicago é apenas um simulacro de democracia, uma imitação da emoção e do drama que poderiam ter surgido de um processo deliberativo dos eleitores do Partido Democrata escolhendo seu candidato presidencial. A verdade é que Kamala Harris ascendeu ao patamar de candidata ao posto mais poderoso do mundo sem um voto sequer.

Durante quatro dias, os americanos viram um patriotismo que andava sumido do partido, aplausos, sorrisos, discursos empolgados que falavam mal de Donald Trump e de como ele “destruirá” a América, muita música e uma “alegria contagiante”, como descreveram as hienas do partido espalhadas pela velha imprensa americana. 

No entanto, nada disso foi real. O Partido Democrata armou todas as armadilhas de uma grande convenção de partido político, mas não apresentou nenhuma substância. Nenhum eleitor democrata votou nas primárias para a vice-presidente Kamala, mas os caciques democratas estão seguindo o caminho como se tivesse sido exatamente isso o que aconteceu. Eles até trouxeram o presidente Joe Biden — que até um mês atrás estava “mais afiado” do que nunca e que supostamente seria o chefe do Partido Democrata. Biden discursou tarde na primeira noite da convenção, no que pareceu ser uma mera formalidade. O atual presidente fez um discurso arrastado e raivoso, cheio de mentiras e distorções, e então foi levado para descansar em Santa Bárbara, na Califórnia, pelo resto da semana, tornando-se um presidente em exercício não participante da convenção de seu próprio partido.

Joe Biden, presidente dos EUA, e sua família deixam o palco, após discurso no primeiro dia da Convenção Nacional Democrata (DNC), em Chicago, Illinois (19/8/2024) | Foto: Mike Segar/Reuters

Mas a falsidade dos democratas vai além de apenas imitar um processo democrático depois de executar um golpe contra o presidente em exercício. A equipe de Harris-Walz escolheu basear a campanha da dupla com histórico de políticas radicais em “alegria” — palavra repetida nesta semana ad nauseam pela imprensa. A aura de tudo isso não poderia ser mais falsa e forçada. Ao executar uma campanha quase completamente desprovida de substância política ou de qualquer interação real com a mídia, limitada principalmente a vídeos encenados de Harris e Walz se divertindo ou fazendo discursos lidos em comícios altamente controlados, os líderes do Partido Democrata estão essencialmente executando uma operação psicológica no eleitorado americano.

A campanha encontrou até um nome para a encenação: “Strength Through Joy”, ou “Força Através da Alegria”, numa tentativa de se opor à aura da campanha de Donald Trump (que é baseada na campanha e administração de Ronald Reagan), cuja expressão é “Peace Through Strength”, “Paz Através da Força”.

Mas a incompetência de Harris e de sua equipe vai além da falta de uma agenda política que, até agora, a 75 dias da eleição presidencial, não foi apresentada ao povo americano. “Strength Through Joy”, “Força Através da Alegria”, foi uma organização de lazer operada pelo Partido Nazista por intermédio da Frente Trabalhista Alemã e usada como uma ferramenta para promover as “vantagens do nazismo” para o povo alemão e até internacionalmente. O braço “da alegria” propagandista de Hitler foi usado para facilitar o processo de rearmamento da Alemanha e, por meio de sua estrutura de eventos organizados e promoção de propaganda, também visava prevenir qualquer comportamento dissidente e antiestatal. Em 1939, a “Força Através da Alegria” tornou-se a maior operadora de turismo do mundo.

Cartaz do Terceiro Reich/Era Nazista para um concerto da Nationalsozialistisches Reichs-Symphonie-Orchester, a Orquestra Sinfônica do Estado Nacional Socialista, fundada por Franz Adam e organizada pela Deutsche Arbeitsfront e Kraft durch Freude (“Força Através da Alegria”), no Museu da Cidade de Munique (2014) | Foto: Wikimedia Commons

Harris também explorou consistentemente uma fixação dos democratas: a agenda identitária para retratar oponentes como extremamente racistas. Os democratas de 2024 possuem uma verdadeira obsessão com gêneros, orientações ou escolhas sexuais, falsas minorias e, claro, a cor da pele das pessoas. E eles adoram chamar as pessoas daquilo que eles são.

Em 2018, ainda como senadora, Harris acusou agentes federais que prestavam depoimentos no Congresso e protegiam as fronteiras do país de usar “as mesmas táticas de intimidação da Ku Klux Klan”. Depois de fazer Ronald Vitiello, diretor da divisão migratória da Polícia de Fronteiras (Immigration and Customs Enforcement — ICE), descrever as táticas usadas pela Ku Klux Klan como uma operação terrorista doméstica, Harris perguntou se ele “via algum paralelo” entre a KKK e o ICE.

O problema é que “fatos são coisas teimosas”. Ao contrário do que os desmiolados tentam empurrar, a história do Partido Democrata até o século 20 é uma história praticamente ininterrupta de roubo, corrupção, intolerância e racismo. 

Kamala Harris, candidata presidencial democrata e vice-presidente dos EUA, comemora com seu marido, Doug Emhoff, após seu discurso de aceitação, no quarto dia da Convenção Nacional Democrata (DNC), no United Center, em Chicago, Illinois (22/8/2024) | Foto: Brendan Mcdermid/Reuters

Os democratas sempre foram o partido da escravidão, e a mentalidade escravagista continua a moldar as políticas dos líderes democratas hoje, até para usar as minorias apenas como massa de manobra e manutenção de poder político. A questão não é que os democratas inventaram a escravidão, que é uma instituição antiga que antecede em muito a América. Em vez disso, democratas inventaram uma nova justificativa para a escravidão — a escravidão como um “bem positivo”. 

Hoje, a imprensa militante e os “especialistas” tentam esconder a cumplicidade dos democratas na escravidão nos EUA, culpando o “Sul” pela nefasta prática. Essas pessoas teceram todo um fio que tenta retratar de maneira simplista a batalha da escravidão como uma batalha entre o Norte antiescravagista e o Sul pró-escravidão. E, claro, isso beneficia os democratas no atual cenário político, uma vez que a principal força do Partido Democrata está atualmente no Norte, e a do Partido Republicano, no Sul.

A verdade, no entanto, é que, após a guerra civil, foram os republicanos que acabaram com a escravidão e baniram a prática permanentemente por meio da Décima Terceira Emenda. Os democratas responderam agressivamente se opondo à emenda, e um grupo de membros do partido planejou e assassinou Abraham Lincoln, o homem que consideravam responsável pela emancipação dos negros. Os republicanos aprovaram, então, a Décima Quarta Emenda, garantindo aos negros direitos iguais perante a lei, e a Décima Quinta Emenda, que deu aos negros o direito de votar. Tudo isso com a violenta oposição dos democratas.

Slide de 4″x3″, que retrata John Wilkes Booth se inclinando para atirar no presidente Abraham Lincoln, enquanto este assiste a Our American Cousin, no Ford’s Theater, em Washington, D.C. (14/4/1865) | Foto: Wikimedia Commons

Os votos de homens anteriormente escravizados ajudaram a dar ao Partido Republicano o controle da legislatura do estado do Mississippi, o que fez de Hiram Rhodes Revels o primeiro afro-americano no Senado dos Estados Unidos. Em 1870, a Carolina do Sul elegeu diretamente Joseph Rainey, outro afro-americano, também pelo Partido Republicano, para a Câmara dos Representantes dos EUA. 

A Ku Klux Klan, criada exatamente pelos democratas, reagiu com manifestações noturnas aterrorizantes com homens encapuzados e tochas de fogo nas casas dos eleitores negros. Em todo o Sul, o linchamento e a intimidação eram predominantes. A KKK usou sigilo, intimidação, violência e assassinato para impedir que homens negros anteriormente escravizados votassem. Homens brancos que porventura usassem seus cargos e profissões para ajudar negros e seus apoiadores também viraram alvos do terror da KKK. Tudo para que a plataforma de Era da Reconstrução, que também visava dar aos negros direitos sociais, políticos e econômicos, não avançasse.

Depois que a Reconstrução terminou, em 1877, as legislaturas estaduais lideradas pelos democratas foram capazes de implementar as Leis Jim Crow, que garantiam a superioridade dos brancos e a segregação dos negros. Os eleitores negros foram intimidados ou simplesmente impedidos de ter um registro para votar. As novas leis colocaram obstáculos quase intransponíveis na forma de votar e de viver livremente para os negros.

A Ku Klux Klan inicial se desfez na década de 1870, em parte por causa de leis federais, mas também porque seus objetivos foram alcançados nos estados comandados pelo Partido Democrata. A organização seria revivida no início do século 20, com seu retrato falsamente heroico no filme O Nascimento de uma Nação (The Birth of a Nation), aclamado pelos democratas.

A Ku Klux Klan em Muncie, Indiana, EUA (1922) | Foto: Wikimedia Commons

Atualmente, muitos democratas se defendem dizendo que a escravidão acabou em 1865 e que, por isso, não podem ser colocados no balaio da culpa pelos erros pré-guerra do Partido Democrata. Porém, a digital segregacionista do partido vai do apoio à escravidão à cumplicidade na Ku Klux Klan. A organização fundada por um grupo de ex-soldados confederados teve como seu primeiro grande líder um general confederado que também foi delegado na Convenção Nacional Democrata.

Por mais que Harris repita sem parar que os republicanos são misóginos, curiosamente, o Partido Republicano não é apenas o partido dos direitos dos negros, mas também dos direitos das mulheres

A KKK, como mostra a história, logo se espalhou do Sul para o Centro-Oeste, e o Oeste e se tornou, nas palavras do historiador Eric Foner, “o braço terrorista doméstico do Partido Democrata, que na década de 1880 inventou a segregação e as Leis Jim Crow, que duraram até a década de 1960”. Líderes democratas, incluindo pelo menos um presidente, dois juízes da Suprema Corte e inúmeros senadores e congressistas eram membros da Klan. O último deles, Robert Byrd, morreu em 2010 e foi elogiado pelos ex-presidentes Barack Obama e Bill Clinton.

E, por mais que Harris repita sem parar que os republicanos são misóginos, curiosamente, o Partido Republicano não é apenas o partido dos direitos dos negros, mas também dos direitos das mulheres. Os republicanos incluíram o sufrágio feminino em sua plataforma em 1896. Em 1916, o partido teve um apoio excepcional defendendo o direito de voto para as mulheres e, depois que os republicanos recuperaram o controle do Congresso, a Décima Nona Emenda concedeu o sufrágio feminino, e o voto feminino foi finalmente aprovado em 1919, sendo ratificado pelos estados no ano seguinte. A primeira mulher eleita para o Congresso foi a republicana Jeannette Rankin. 

A festa da democracia do Partido Democrata desta semana foi encerrada com 100 mil balões caindo do teto do United Center, em Chicago, sob muitos aplausos. Agora, Kamala Harris pisa oficialmente na realidade de entrevistas e debates com Donald Trump. E cabe ao povo americano chancelar ou não o golpe dado em Joe Biden e nos eleitores do partido nas primárias.

Comemoração após o discurso de Kamala Harris, candidata presidencial democrata e vice-presidente dos EUA, no quarto dia da Convenção Nacional Democrata (DNC), no United Center, em Chicago, Illinois (22/8/2024) | Foto: Mike Segar/Reuters

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11 comentários
  1. Vanessa Días da Silva
    Vanessa Días da Silva

    Os eleitores democratas usam como argumento único o fato de estarem votando em uma mulher negra. Não há propostas. Nada.

  2. Fausto Góes Fontes Neto
    Fausto Góes Fontes Neto

    Aula de história!

  3. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Obrigado Ana pela aula de história sobre os partidos Democrata e Republicano. Orgulho de ser assinante da Revista Oeste onde a verdade e os fatos prevalecem. Sempre.

  4. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Muito bom, Ana.
    Essa Kamala, pela cara dela já se nota que peça boa não é.

  5. Lauro Patzer
    Lauro Patzer

    Quando uma esquerda radical se instala nos Estados Unidos, o mundo inteiro é prejudicado, por se tratar de um país referencial.

  6. Matias ALEGRUCCI Figueiredo
    Matias ALEGRUCCI Figueiredo

    Brilhante.
    ]

  7. NILSON OCTÁVIO
    NILSON OCTÁVIO

    Os comentários aqui digitados estão tão bons quanto teu maravilhos e precioso texto.

  8. Paulo Drummond
    Paulo Drummond

    “Joy” é o disfarce grosseiro, tosco para as gargalhadas psicóticas daquela perigosíssima comunista. Como se não bastasse, seu par é tão doente quanto e favorável à cizânia recheada de violência subsidiada, organizada ou não. Torçamos pra que o bom senso prevaleça acima das clássicas manipulações das máquinas e das pessoas. Torçamos pra que a união de RFKjr a Donald Trump seja um reforço ao pilar democrático tão fragilizado na maior (há quem diga que é a India) democracia do mundo.

    Pra nós, de Pindorama, a assunção da cacarejante Harris é um mau presságio. Ainda que se diga por aqui que não votamos aí, sabemos que o bater de assas de uma borboleta em LA pode desencadear uma queimada de proporções bíblicas no cerrado.

  9. Silas Veloso
    Silas Veloso

    Brilhante artigo político-histórico!

  10. Lauro Patzer
    Lauro Patzer

    Aqui temos o braço propagandístico do consorciado ao STF/TSE uma pessoa agraciada pela soltura da cadeia de Curitiba e promovido a candidato à presidência da República. Aqui temos também o braço da Venezuela onde os “Maduros” locais se comunicam e se aconselham com o Maduro de Caracas. Aqui como lá as togas fazem o mesmo jogo político. Aqui o presidiário foi eleito e lá ele foi reeleito sob a bênção dos “Superiores”, dizendo que a eleição foi legal e que não não há necessidade da demonstração de atas, mesmo que a Lei o exija. Parece que o espectro da esquerda nos Estados Unidos, conforme o artigo da Ana Paula Henkel, também atropela as regras convencionais às convenções eleitorais. O que está acontecendo? Simples, um choque entre o mundo da razão, da Lei e da Ética contra o mundo do grito, da emoção raivosa e da força, se tornaram evidentes. Onde a força se sobrepõe à Lei há duas atitudes aos opositores: ajoelharem-se rendidos ou reagirem com o direito a grandes manifestações de ruas. As consequências que vemos na Venezuela são as mesmas que vimos aqui com os prisioneiros políticos do 8 de janeiro. Todo poder totalitária é adepto da engenharia semântica dizendo-se defensor da “Estado Democrático de Direito”. Um poder que vive detectando golpes e vai à cata de celulares e de passaportes. Como o poder aqui também é totalitário ele conta com a força ao seu lado. Que “democracia” é essa que coleciona prisioneiros políticos, protegidos pela censura e pela polícia de Estado?

  11. Bianca Diamante Waisberg
    Bianca Diamante Waisberg

    Semanalmente, Ana Paula nos presenteia com uma aula de História ao conectar fatos atuais com os ocorridos no passado. Já dizia Burke “quem não conhece a própria história, está fadado a repetí-la”; portanto, obrigada Ana, por abrir nossos olhos!

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