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Ilustração: Shutterstock
Edição 231

O Brasil sub judice

Juízes estão decidindo com canetadas únicas e monocráticas temas que não são de sua alçada

Adalberto Piotto
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Na democracia, tudo o que se afasta da política tende ao autoritarismo. E autoritarismo não é democracia. É atropelo das liberdades, a começar pela liberdade do tempo da sociedade para decidir, do tempo do debate, do natural amadurecimento de um tema antes de uma decisão e, o mais importante, do respeito a essa decisão.

E, apesar de imperfeito, é o Congresso Nacional que tem a sagrada prerrogativa para decidir em nome da sociedade. Não bastasse o direito de reclamar e pressionar seus representantes, as eleições são o mais eficiente contrapeso a um Congresso que por acaso venha a se distanciar do interesse público. A cada quatro anos, mudam-se ou se mantêm deputados e senadores de acordo com o voto. Mas e quando juízes não eleitos, garantidos no cargo até os 75 anos, se sobrepõem ao Congresso em decisões sumárias do “cumpra-se” e não reclame, o que fazer?

Plenário da Câmara dos Deputados, do Congresso Nacional, em Brasília (21/8/2024) | Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados

O Brasil dos últimos anos, de intervencionismo e persecução judiciária sem limites, é exemplo bem-acabado — para um fim mal-acabado — do que representa essa subversão institucional de um Judiciário de Cortes superiores autoanabolizado, pretensioso e inconstitucional.

O país está sub judice, vive sub judice, o que é uma forma autoritária de estar sob o poder de decisões precárias do colegiado do Judiciário quando este não deveria ter lugar na discussão. Juízes estão decidindo com canetadas únicas e monocráticas temas que não são de sua alçada, que não deveriam estar nos tribunais porque a Constituição não lhes deu esse direito e tampouco o amparo legal para atuarem. Ainda pior: estão decidindo sem os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Com isso, atrasam a vida do país, criam insegurança jurídica e um terror institucional baseado no temor de uma decisão completamente imprevisível.

Sessão plenária do STF (21/8/2024) | Foto: Fellipe Sampaio/STF

“Sub judice” é uma expressão latina que significa “sob julgamento” ou “sob o juiz”. No Brasil de hoje, é uma simbiose disso: sob julgamento de um único juiz. Porque, se o STF nas suas decisões colegiadas já tem atropelado o Congresso em temas da sociedade no Congresso, como drogas e aborto, a atuação monocrática de magistrados é a versão piorada desse intervencionismo bombadão.

Peguemos o caso recente das emendas parlamentares. Flávio Dino foi ministro da Justiça de Lula e um dos mais politicamente ativos da história da pasta. Chegou ao Supremo Tribunal Federal ainda neste ano para se juntar rapidamente à ala mais política da Corte que deveria, lembremo-nos, ser técnica. No seu curto histórico de “supremo”, já afrontou decisão do Congresso sobre as emendas parlamentares. Sob a alegação de mais transparência, bloqueou a distribuição dos recursos garantidos em lei numa canetada. Um único ministro derrubou o entendimento de um Congresso inteiro. Pode-se discutir o mérito da transparência — sobre o qual tenho toda a anuência — ou o melhor uso do recurso público — um desejo de toda a população —, mas não se pode ver com naturalidade a intervenção pesada de um único juiz se sobrepor à decisão de 513 deputados e 81 senadores eleitos pelo voto. Há, por óbvio, discordância acerca de decisões dos parlamentares e entre eles próprios. Mas concordamos todos que os Poderes são legítimos em defender suas prerrogativas e que não se pode aceitar a intervenção de um no outro. Estamos acompanhados de nada menos que a Constituição Federal nessa empreitada.

Em que democracia uma canetada de um único ministro pode afrontar e modificar a decisão de 513 deputados e 81 senadores no exercício da plenitude de suas prerrogativas legislativas?

Todos defendemos o Supremo, por exemplo, mas os 11 ministros do STF defendem as prerrogativas do Congresso e do Executivo? Não é o que temos visto de forma mais intensa desde 2019, nesta anomalia institucional em que vivemos.

Flávio Dino, no evento Leis e Likes: Papel do Judiciário e Influência Digital (21/8/2024) | Foto: Fellipe Sampaio/STF

Outro exemplo que assombra os brasileiros envolve o ministro Cristiano Zanin, um dos ministros do STF indicados por Lula. O caso é o da decisão do Congresso Nacional que em votação decidiu manter a desoneração da folha de pagamentos de prefeituras de municípios com até 156 mil habitantes e de empresas de 17 setores da economia. O governo federal, que defendia a reoneração imediata, perdeu no Congresso. É do jogo. Inconformado, o presidente Lula vetou parte da decisão. Também é do jogo. O Congresso respondeu e derrubou os vetos. Até aí, viva a democracia e a independência dos Poderes. Mas, e sempre existe um “mas” nas democracias relativas, o governo não aceitou perder e recorreu a outro indicado no Supremo Tribunal Federal que, numa decisão monocrática, reinstituiu a reoneração. Em que democracia uma canetada de um único ministro pode afrontar e modificar a decisão de 513 deputados e 81 senadores no exercício da plenitude de suas prerrogativas legislativas?

No Brasil do tapetão de Lula e do STF, sim, isso acontece.

Nesta semana, o Congresso voltou a aprovar a desoneração plena em 2024 e uma reoneração paulatina até 2027 que, ao menor sinal de muitas demissões, pode voltar. O governo que deveria se concentrar em ser responsável com as contas públicas para não depender da arrecadolândia do ministro Haddad não levou tudo, mas conseguiu tumultuar o jogo com reforço do STF.

desoneração da folha
O presidente Lula na posse de seu advogado Cristiano Zanin como ministro do STF (3/8/2023) | Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Em 2019, ainda no governo Bolsonaro, o Ferrogrão foi outra vítima do ativismo do Supremo na política e na economia do país. O projeto de 900 quilômetros e R$ 24 bilhões de investimento na estrada de ferro entre Sinop, em Mato Grosso, e o Porto de Miritituba, no Pará, para o escoamento mais eficiente e viável da produção do competente agronegócio brasileiro do Centro-Oeste, com economia calculada em quase R$ 20 bilhões no custo do frete, foi paralisado por uma decisão liminar concedida pelo ministro Alexandre de Moraes, a pedido do Psol. O projeto vinha desde a gestão Temer, e o governo federal havia aprovado no Congresso uma lei que permitia a passagem dos trilhos pelo Parque Nacional do Jamanxim, ao lado de uma estrada que já existe. A minoria do Psol perdeu a votação, mas numa nova subversão da democracia representativa conseguiu uma decisão sumariamente paralisante da obra no Supremo, sob questionáveis alegações ambientais e de proteção aos indígenas, visto que a linha férrea contornará 53 quilômetros de uma reserva indígena. A decisão notoriamente precária, porque monocrática, de um único ministro que não pode governar, motivada por um partido nanico, se sobrepôs à decisão de um governo que deve executar e à aprovação do Congresso que já havia legislado sobre o assunto. O caso, parado desde 2021, ainda aguarda decisão final.

Veja que os exemplos são fartos em demonstrar que o Supremo Tribunal Federal está na vida política do país como jamais deveria estar. Nesta semana, os brasileiros foram surpreendidos por uma foto em que estavam todos os ministros do STF, representantes do governo Lula e os dois presidentes das Casas do Congresso dentro do Supremo, que agia como mediador de mais uma contenda, mas já tendo tomado lado. Era a busca por um consenso em relação ao bloqueio da distribuição das emendas. O pecado original do ativismo de Flávio Dino em se imiscuir num assunto sagrado para a Câmara no Senado foi entendido pelos parlamentares como mais uma dobradinha entre o Palácio do Planalto e os aliados políticos na Corte, o consórcio Lula-STF. A solução provisória encontrada é prova disso: as emendas Pix continuam impositivas, mas terão maior compromisso com a transparência — o que não é ruim —, mas deverão priorizar obras inacabadas, as que o governo federal não consegue terminar justamente porque gasta demais. E olha que se trata do mesmo governo que está enrolado no TCU com a acusação de favorecimento político no repasse de R$ 1,4 bilhão a apenas seis prefeituras de aliados: Araraquara, Mauá, Diadema, Hortolândia, Cabo Frio e Belford Roxo.

Almoço institucional com os ministros do STF e representantes dos Poderes Legislativo e Executivo (20/8/2024) | Foto: Gustavo Moreno/STF

O Brasil resiste, apesar de ver sua democracia afrontada pelo que Raymundo Faoro chamou de “os donos do poder”. Não costumava ser assim desde a redemocratização, nos anos 1980. Até outro dia, quando se pretendia empreender ou aprovar um projeto no país, empresários, investidores e autores de ideias recorriam ao Executivo e ao Congresso. Havia debate, escrutínio público, pesquisas de opinião e o saudável barulho da democracia. Hoje, se o STF discordar, às vezes um único ministro, nada anda.

Tudo depende de um juiz no Brasil sub judice que pretende impor o silêncio do cumpra-se. A Constituição, que prevê a independência dos Poderes, para eles vem depois e não parece ser imprescindível.

Leia também “Um basta ao arbítrio e à insegurança jurídica”

11 comentários
  1. Eloisa Moreira Alves
    Eloisa Moreira Alves

    Se sacudirmos esta foto, a massa ficará mais uniforme e mais apodrecida, pois, todos são farinha do mesmo saco.

  2. Antonio Carlos Neves
    Antonio Carlos Neves

    Piotto é muito bom te ouvir e ler teus artigos sempre nos transmitindo as investidas da Alta Corte do Judiciário com o conhecimento que somente grandes e honestos juristas nos transmitem.
    Dai, considero importante que você sugira que o “programa revista oeste sem filtro”, entreviste por 1 hora juristas como Nelson Jobim, Michel Temer, e outros que vem defendendo o trabalho ditatorial de Alexandre de Moraes. Jobim disse, e depois desdisse o que disse, sobre o STF e Alexandre de Moraes e Temer que parecia ser um bom consultor de Bolsonaro, em recente entrevista à Jovem Pan quando perguntado pelo entrevistador Luis Felipe Dávila sobre Alexandre de Moraes, disse ter enorme competência e foi o responsável por salvar nossas eleições em 2022. Desculpe minha indignação Piotto, mas qual foi o cagaço desses 2 competentes juristas?. Com certeza você rapidamente desejaria saber porque assim se manifestam, ou, se interpretam que o “malfeitor”,”facista” Bolsonaro não queria que tivéssemos eleições. Lembre -os que Bolsonaro disse diversas vezes que passaria a faixa presidencial para o vencedor, com eleições transparentes e auditáveis, o que não ocorreu, e você com certeza sabe porque.

  3. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Tanto Flavio Dino, quanto Cristiano Zanin, são dois malandros. Comparsas da quadrilha petista.

  4. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    O Brasil nunca foi uma democracia e hoje sob a tutela ilegal do STF fica ainda pior.
    Piora a vida das empresas e pessoas. afasta os investimentos e coloca o país a beira do precipício.

  5. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    Incrível como o congreso é submisso aos demais poderes.

  6. MNJM
    MNJM

    Excelente texto. STF uma Instituição decadente, falida, atuando politicamente, quando deveria ser técnica e cumprir a Constituição. Pior colegiado que o STF já teve, parece até um partido político. .Vergonhoso.

  7. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    A situação do país de estar nessa situação atualmente, infelizmente, é por culpa da Constituição de 1988. Deu poderes demais ao STF sem mecanismos mais eficientes e eficazes de controle.

  8. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Toda essa situação é culpa, infelizmente, da Constituição de 1988. Deu poderes demais ao STF sem meios mais eficazes e eficientes de controle.

  9. Vitor Hugo Stepansky
    Vitor Hugo Stepansky

    Só na Venezuela e na Coréia do Norte o Maduro e o King Jon IL tem tanto poder quanto o ministro Alexandre de Moraes na ” democracia” à brasileira. Só o Senado da República poderia dar um basta nesta ditadura. Mas infelizmente o Rodrigo Pacheco tem outros interesses através de seu escritório de advocacia e muitos senadores o rabo preso na justiça…

  10. André Luiz Nascimento Santos
    André Luiz Nascimento Santos

    PIOTTO: o Brasil está “sub judice” ou “sequestrado”?

    1. Wilton Lázaro de Araújo
      Wilton Lázaro de Araújo

      Que situação de.”merda ” estamos vivendo neste país. Não há outro adjetivo para inserir. Os políticos desta casta, infelizmente são escolhidos pelo povo que merecem o escárnio desta situação nefasta que nos encontramos. O povo vota pelo sentimento e não pela razão. É esta fotografia que temos na câmera e no senado, salvo algumas exceções, mas são vozes que amanhã podem estar atrás das grades por enfrentar o sistema chamado “establichement”…é o poder podre. Mudar tudo isto só com derramamento de sangue. Se ditaduras como Venezuela, Coreia do Norte e Nicarágua não conseguiram, então nós aqui muito menos. A esperança eram os melancias que o dinheiro comprou.

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