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Alexandre de Moraes, Ministro do Supremo Tribunal Federal | Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil
Edição 231

Ordem jaguncial não se cumpre

Um juiz não é a lei, porque, como qualquer outro cidadão, também ele está sujeito à lei

Flávio Gordon
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“Ninguém é obrigado a cumprir ordem ilegal, ou a ela se submeter,
ainda que emanada de autoridade judicial. Mais: é dever de cidadania
opor-se à ordem ilegal; caso contrário, nega-se o Estado de Direito.”
(STF, HC nº 73.454, Rel. Min. Maurício Corrêa, 22/4/1996)

“Dá vontade de mandar uns jagunços pegar [sic] esse cara na marra e colocar num avião brasileiro.” Essa foi a mensagem enviada por WhatsApp pelo juiz Marco Antônio Vargas, do gabinete da presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a Airton Vieira, braço direito de Moraes no STF. A mensagem é parte dos mais de 6 gigabytes de diálogos entre integrantes dos gabinetes de Moraes acessados pelos jornalistas Glenn Greenwald e Fabio Serapião, os quais têm publicado o material a conta-gotas na Folha de S.Paulo, no escândalo apelidado de “Vaza Toga”.

Ocorrida em novembro de 2022, a referida conversa entre os dois juízes tinha por objeto o jornalista Allan dos Santos, alvo já de dois mandados de prisão preventiva expedidos por Alexandre de Moraes, um de outubro de 2021 e outro de agora, dia 14 de agosto de 2024. Allan havia virado tema no grupo de WhatsApp depois de aparecer em vídeos durante manifestação contra cinco ministros do STF, os quais, logo após o resultado da controversa disputa presidencial de 2022, participaram de um evento privado em Nova York, organizado pelo Grupo Lide, de João Doria.

Ecoando a ira do chefe, os dois juízes auxiliares mostravam-se indignados com a recusa da Interpol em incluir o nome de Allan dos Santos no alerta vermelho da entidade e, sobretudo, com a recusa do governo americano em extraditar o jornalista brasileiro, perseguido político de Alexandre de Moraes e seus sequazes. Numa das mensagens expostas pela matéria da Folha de S.Paulo, Marco Antônio Vargas, do TSE, aparece chamando de “sacanagem” a postura da Interpol e do governo dos EUA — que decerto perceberam tratar-se de perseguição política disfarçada de demanda judicial, haja vista não existir crime de opinião e de crítica em contextos democráticos. Em seguida, responde-o Airton Vieira, do STF: “Com certeza. Por isso esse idiota do Allan dos Santos se sente livre para fazer o que faz…”.

Quem é Airton Vieira, juiz que por ordens de Moraes pediu relatórios ao TSE
Airton Vieira, braço direito de Moraes no STF | Foto: Reprodução/YouTube

É na sequência desse diálogo que Vargas profere a frase que já entrou para a história da juristocracia brasileira, por expor a mentalidade autoritária, antidemocrática e obscurantista de seus representantes: “Dá vontade de mandar uns jagunços pegar [sic] esse cara na marra e colocar num avião brasileiro”. É claro que, em se tratando de uma operação de sequestro político em território estrangeiro, a proposta do juiz auxiliar do TSE estava fadada a ficar apenas na vontade. Mas a sua mera expressão num diálogo entre magistrados — cujo mister deveria consistir em operar o direito, não a vingança política e pessoal contra um cidadão — já sugere a perturbadora hipótese de que, em território nacional, essa vontade possa estar sendo satisfeita no caso de outros perseguidos políticos, alvos, portanto, não de ordens judiciais, mas de ordens jagunciais.

Após essa troca de mensagens, informa a matéria da Folha, o juiz auxiliar do STF teria ainda mandado um último áudio sobre o tema, demonstrando toda a sua irritação pelo fato de o governo americano não se comportar como os jagunços imaginários fantasiados por seu colega de toga. “Se eles quiserem te mandar embora porque não gostaram dos seus olhos, eles inventam um pretexto qualquer e colocam você no primeiro avião de volta e deportam, extraditam, dão pé no traseiro, o nome que você quiser, mas eles fazem o que eles bem entenderem com quem eles quiserem. Do contrário, não há governo no mundo que determine o que eles têm que fazer” — exasperou-se Airton Vieira. Na verdade, o braço direito de Moraes no STF apenas projetava na Justiça americana, como se fora ela uma casa da mãe Joana institucional, o seu próprio comportamento e o do seu superior, todo baseado em “cisma” (como demonstra a primeira reportagem da série Vaza Toga), jeitinhos, informalidade e “criatividade” na fabricação de provas contra os seus alvos políticos, a exemplo desta Revista Oeste.

Outro que a juristocracia nacional quis converter em jagunço foi Elon Musk. Mas, para o azar deles, e na contramão da atitude da maioria das outras redes sociais (cujos donos e diretores aquiesceram com a jagunçagem), Musk recusou-se a cumprir ordens de censura que violam as leis brasileiras e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Como se sabe, essa recusa resultou na decisão do X de encerrar as suas atividades no Brasil, depois que Alexandre de Moraes — também de maneira abusiva e ilegal — ameaçou prender uma representante da rede social no Brasil.

Musk se recusou a cumprir ordens de censura que violavam as leis brasileiras e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, levando o X a decidir encerrar suas operações no Brasil | Foto: Shutterstock

Em resposta à violência política perpetrada pelo magistrado brasileiro, Musk manifestou-se por meio do seguinte tuíte, publicado no perfil de Relações Governamentais Globais do X no dia 17 de agosto:

“Noite passada, Alexandre de Moraes ameaçou nosso representante legal no Brasil com prisão se não cumprirmos suas ordens de censura. Ele fez isso em uma ordem secreta, que compartilhamos aqui para expor suas ações. Apesar de nossos inúmeros recursos ao Supremo Tribunal Federal não terem sido ouvidos, de o público brasileiro não ter sido informado sobre essas ordens e de nossa equipe brasileira não ter responsabilidade ou controle sobre o bloqueio de conteúdo em nossa plataforma, Moraes optou por ameaçar nossa equipe no Brasil em vez de respeitar a lei ou o devido processo legal. Como resultado, para proteger a segurança de nossa equipe, tomamos a decisão de encerrar nossas operações no Brasil, com efeito imediato. O serviço X continua disponível para a população do Brasil. Estamos profundamente tristes por termos sido forçados a tomar essa decisão. A responsabilidade é exclusivamente de Alexandre de Moraes. Suas ações são incompatíveis com um governo democrático. O povo brasileiro tem uma escolha a fazer — democracia ou Alexandre de Moraes.”

Diante da decisão, os porta-vozes de Alexandre de Moraes na imprensa amestrada começaram a martelar os slogans habituais, dando vazão a uma Muskfobia que viceja amplamente entre as forças de esquerda de todo o mundo (ver, por exemplo, o que se passa no Reino Unido), todas elas francas apologistas da censura às redes sociais — a bandeira que hoje une globalmente os esquerdistas mundo afora.

Na GloboNews, por exemplo, recorreu-se naturalmente aos xingamentos ginasianos contra Musk, que constituem o máximo do que podem conceber aquelas cabecinhas ocas e alminhas histéricas, e segundo os quais, na melhor das hipóteses, o bilionário mais produtivo e inventivo do planeta não passa de um “menininho mimado” e, na pior das hipóteses, de um líder global da “extrema direita” — tese defendida, entre outros, pela blogueira antibolsonarista Daniela Lima. Como já disse celebremente Tom Jobim: no Brasil, o sucesso é uma ofensa pessoal.

Já no Estadão — jornal que parece sofrer de alergia à firmeza moral, jamais conseguindo sustentar por muito tempo suas posições esporadicamente corretas contra a juristocracia nacional —, o que se viu foi a insistência numa conhecida frase feita: “Ordem judicial se cumpre”. Aparecendo em editorial intitulado “Musk brinca com o Brasil”, e repetido automaticamente à guisa de argumento, o chavão revela-se, de fato, como o suprassumo da banalidade do mal celebremente descrita por Hannah Arendt. Isso porque, segundo o editorial, tudo o que uma vítima do estado de exceção pode fazer legitimamente é recorrer à Justiça desse próprio estado de exceção. Assim é que, ainda segundo o editorialista, a única atitude séria da parte de Elon Musk deveria ser a de cumprir ordens jagunciais e se tornar cúmplice da violação de direitos humanos fundamentais de cidadãos brasileiros. Um primor de discernimento moral, não é mesmo?

Notícia publicada no Estadão (2/7/2024) | Foto: Reprodução/Estadão

Como bem resumiu o jurista Andre Marsiglia:

“Impressiona que pessoas esclarecidas digam que Musk sairá do país por birra, ou porque quer. O processo sigiloso que ele expôs há alguns dias é juridicamente irregular do início ao fim: (1) a Corte mandou a citação ao e-mail errado, (2) em contrariedade à CF, a Corte pressupõe má-fé da empresa, e não boa-fé, (3) mesmo o artigo 774 do CPC prevendo que descumprimento de ordem judicial deva ser punido com multa, a Corte ameaça o representante com prisão e (4) afastamento da empresa, em violação ao princípio constitucional da livre-iniciativa. E tudo isso para que se cumpra uma decisão voltada a derrubar perfil e obter dados de usuários, em contrariedade ao Marco Civil da Internet. Agora imagine quantas decisões como essa chegam ao Twitter o dia todo. Imagine se há estabilidade jurídica e financeira para empreender no país.”

As empresas que atuam no Brasil são obrigadas a respeitar as leis brasileiras, mas não as vontades políticas de um ou mais magistrados ideológicos que se acham acima das leis

Ao fim e ao cabo, poder-se-ia até admitir que o X desobedeceu às ordens da Justiça, mas não que desobedeceu às leis brasileiras. Porque, obviamente, as ordens de um determinado juiz não se confundem automaticamente com a lei. Um juiz não é a lei, porque, como qualquer outro cidadão (e, por dever funcional, até um pouco mais), também ele está sujeito à lei. Daí que, se a própria ordem judicial é contrária à lei, aquele que a descumpre não está infringindo a lei, mas precisamente o contrário. Sim, as empresas que atuam no Brasil são obrigadas a respeitar as leis brasileiras, mas não as vontades políticas de um ou mais magistrados ideológicos que se acham acima das leis. Contrariamente ao que sugerem os passadores de pano midiáticos, não se deve cumprir uma ordem judicial ilegal. E, sobretudo, trata-se de um princípio elementar de Justiça afirmar com todas as letras, como fez Elon Musk: ordem jaguncial não se cumpre.

Leia também “As raízes filosóficas e espirituais do wokeísmo”

5 comentários
  1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    O cumpridor da ordem ilegal também é responsável pelo ato fora da lei executado.

  2. Lafaiete Nogueira De Marco
    Lafaiete Nogueira De Marco

    Ainda sobre Tom Jobim: “… é a lama, é a lama”.

  3. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Não apenas o ditador Alexandre de Moraes deve ser destituído do seu cargo de ministros mas, praticamente todos os ocupantes da mais alta corte de justiça do país.
    Com esta ação, os inúmeros processos secretos de Alexandre seriam anulados e devolveria ao STF suas funções constitucionais e o país começarei a respirar democracia novamente.

  4. MNJM
    MNJM

    Artigo excelente. Expôs muito bem o lixo do STF e o abuso autoritário de um ministro.

  5. Teresa Guzzo
    Teresa Guzzo

    Artigo sensacional de Gordon, esse entrará para a história do jornalismo brasileiro.

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