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Cópia dos registros eleitorais presa a uma bandeira da Venezuela, durante marcha convocada pela líder da oposição, María Corina Machado, após a eleição presidencial, em Caracas, na Venezuela (17/8/2024) | Foto: Reuters/Leonardo Fernandez Viloria
Edição 231

Recibo de fraude

A oposição venezuelana comprovou a farsa eleitoral no país porque dispõe dos meios para denunciar as irregularidades. E no Brasil?

Edilson Salgueiro
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Nas ruas acinzentadas de Caracas, milhares de venezuelanos tingem as artérias da cidade com o próprio sangue. Isso é o rastro de violência deixado pelos militares chavistas, munidos de bombas, tanques e fuzis de assalto. Até agora, cerca de 30 pessoas morreram, 200 foram feridas e mais de 1,5 mil estão presas. A revolta da população, que decidiu enfrentar os subordinados do ditador Nicolás Maduro, se deve à fraude descarada observada nas eleições presidenciais, realizadas em 28 de julho.

A mais flagrante das falcatruas veio à superfície no dia seguinte ao pleito, quando o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) — equivalente ao TSE do Brasil — anunciou a vitória do político chavista com 80% das mesas apuradas. Não foram apresentadas sequer as atas eleitorais — documentos similares aos boletins de urna brasileiros, que mostram quantos votos os candidatos receberam em cada urna.

Em comunicado, o presidente do CNE limitou-se a informar que Maduro vencera a disputa com 51,2% dos votos, contra 44,2% do opositor Edmundo González. O restante dos candidatos obteve, ao todo, pouco menos de 5% da preferência popular. “Uma agressão contra o sistema de transmissão de dados atrasou de maneira adversa a divulgação dos resultados”, justificou Elvis Amoroso, seis horas depois do fim da votação.

No mesmo dia, os líderes da oposição tornaram públicas as atas que obtiveram por meio de uma apuração paralela. Essa averiguação é viável porque, ao fim da votação, as urnas venezuelanas imprimem as atas e enviam eletronicamente as respectivas cópias aos partidos políticos e ao CNE. A transmissão dessas informações ocorre através de uma rede criptografada, sem acesso pela internet. Os opositores conseguiram coletar boa parte dessas atas e constataram a derrota do chavismo: quase 70% dos votos para González, contra 30% para Maduro.

Os resultados da apuração paralela estão disponíveis em uma plataforma on-line, com imagens digitalizadas das atas eleitorais. Nos documentos, é possível ver os dados que asseguram sua autenticidade: o número do circuito e da mesa de voto; a data e a hora da emissão dos boletins; e o chamado código “hash”, que é único e não se repete. Este último é uma espécie de RG das atas eleitorais. É impossível fraudá-lo. Além disso, no fim do documento, há um QR code e uma assinatura digital.

Nos documentos, é possível ver informações que asseguram sua autenticidade | Foto: Divulgação/Campanha de Edmundo González
Os resultados da apuração paralela estão disponíveis em uma plataforma on-line | Foto: Divulgação/Campanha de Edmundo González
A esquerda desembarca

Quase um mês depois das eleições, a ditadura venezuelana segue sem divulgar as atas oficiais. Já os documentos apresentados pela oposição foram chancelados por integrantes da comunidade internacional, como a União Europeia (UE) e a Organização das Nações Unidas (ONU).

“De acordo com as cópias das atas, Edmundo González parece ter sido o vencedor das eleições por uma maioria significativa”, disse o chefe da diplomacia da UE, Josep Borrell, na quinta-feira 15. Essa afirmação se baseia em um relatório da ONU, que analisou o material depois de as denúncias se intensificarem.

Borrell acrescentou que o relatório das Nações Unidas reforça a desconfiança sobre a ditadura chavista. “De fato, o documento da ONU constata a falta de transparência do processo e diz que a manobra das autoridades é sem precedentes”, ressaltou.

Da fronteira para cá, os brasileiros assistem atônitos às fraudes no país vizinho. Até mesmo políticos de esquerda e setores da imprensa tradicional passaram a denunciar o escândalo na Venezuela. 

O presidente Lula, por exemplo, mudou o discurso conforme as ilegalidades tornavam-se evidentes. Em 30 de julho, chegou a dizer que não havia anormalidade na reeleição de Nicolás Maduro. Na semana passada, contudo, o petista classificou o chavismo como um “regime desagradável”.

O Grupo Globo também alterou a rota, depois de endossar a reeleição de Maduro com opiniões de especialistas favoráveis ao chavismo. Na mesma linha, os jornais Folha de S.Paulo e Estadão publicaram editoriais para denunciar as fraudes na Venezuela. Sobrou apenas a mídia de esquerda, que não só apoia o chavismo como nega as ilegalidades na Venezuela.

As lições para o Brasil

Lula e a imprensa tradicional não se ativeram a um detalhe importante: a oposição venezuelana, liderada por María Corina Machado e Edmundo González, comprovou as fraudes eleitorais graças às urnas eletrônicas utilizadas naquele país. Na Venezuela, elas imprimem não só as atas (que mostram quantos votos os candidatos recebem em cada urna), como também o recibo do voto (que exibe as informações do candidato escolhido pelo eleitor). Este segundo documento é impresso no instante da confirmação do voto. Serve apenas para o eleitor conferir se o número que digitou é o mesmo do comprovante físico. No fim, o eleitor venezuelano deposita esse recibo do voto numa urna física lacrada, ao lado do equipamento eletrônico.

Um modelo de votação similar, ainda mais seguro e menos suscetível a fraudes, sofreu boicote nas eleições presidenciais brasileiras de 2022. Antigo consenso entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, o aperfeiçoamento das urnas eletrônicas virou objeto de discórdia depois de o então presidente da República e candidato à reeleição, Jair Bolsonaro (PL), defender a pauta.

À época, aliados de Bolsonaro criaram uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para dar mais transparência ao processo eleitoral. A matéria sugeria, por exemplo, a implantação de urnas de segunda geração nas eleições do país — o que possibilitaria a impressão do recibo do voto. Até mesmo siglas de esquerda deram sinal verde para avançar com o texto, como o Partido Democrático Trabalhista (PDT) e o Partido Socialista Brasileiro (PSB).

O modelo sugerido para as eleições brasileiras seria mais seguro porque os eleitores não teriam contato com o recibo do voto | Foto: Divulgação/Justiça Eleitoral/Edição de Arte

Para se ter ideia, a impressão do recibo do voto era defendida por políticos de diferentes matizes ideológicos:

  • Ciro Gomes (PDT), ex-governador do Ceará
  • Carlos Lupi (PDT), atual ministro da Previdência
  • Roberto Requião (Mobiliza), ex-senador pelo Paraná
  • Simone Tebet (MDB), atual ministra do Planejamento
  • Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal
  • Leonel Brizola (PDT), ex-governador do Rio de Janeiro
  • Kim Kataguiri (União), deputado federal por São Paulo
  • Rodrigo Maia (PSDB), ex-presidente da Câmara dos Deputados
  • João Amoêdo, expulso do Partido Novo e ex-candidato à Presidência
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O pessimismo entrou em cena quando o ministro do STF Luís Roberto Barroso, que na época ocupava também a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), decidiu rechaçar a proposta. Conforme reportagem publicada na Edição 69 da Revista Oeste, o magistrado virou entusiasta do atual sistema eletrônico brasileiro. “Já passou o tempo de golpes, quarteladas e quebras da legalidade constitucional”, declarou o ministro, ao justificar sua decisão. “Ganhou, leva. Perdeu, vai embora. Não há lugar no Brasil para a não aceitação dos resultados legítimos das urnas eletrônicas.” Os ministros Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes e Dias Toffoli engrossaram a ofensiva e costuraram um acordo com 11 partidos para barrar a iniciativa.

Opositores de Jair Bolsonaro passaram a falar que o presidente era a favor da volta da cédula de papel, o que não era verdade. Em julho de 2022, por exemplo, Barroso foi interrompido ao afirmar isso durante uma palestra em um evento promovido por estudantes no Reino Unido. “Durante a minha gestão na presidência do TSE eu precisei lidar com a pandemia, precisei oferecer resistência aos ataques contra a democracia, e impedir esse abominável retrocesso que seria a volta ao voto impresso com contagem pública manual, que sempre foi o caminho da fraude no Brasil”, disse o ministro. Da plateia, uma mulher gritou: “É mentira… ninguém falou em contagem manual”.

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O modelo rejeitado para as eleições brasileiras seria ainda mais seguro, porque os eleitores não teriam contato com o recibo do voto. Naquele sistema, impressoras seriam acopladas às urnas eletrônicas, imprimiriam o comprovante físico do voto e depois o depositariam num recipiente lacrado. Isso é possível somente em urnas de segunda e terceira geração. O Brasil ainda utiliza equipamentos de primeira geração.

Amílcar Brunazo, engenheiro especialista em segurança de dados e voto eletrônico, considera as urnas brasileiras ultrapassadas. “O Brasil acabou por produzir um sistema eletrônico de votação que não atende aos requisitos mínimos óbvios de transparência, a ponto de ser considerado inconstitucional quando avaliado por outras Supremas Cortes, como da Alemanha (2009) e da Índia (2014), que não acumulam a administração eleitoral”, observou o especialista, ao criticar a concentração de poder nas mãos do TSE.

O Brasil ainda utiliza equipamentos de primeira geração | Foto: Divulgação/Justiça Eleitoral
O modelo rejeitado para as eleições brasileiras seria mais seguro porque os eleitores não teriam contato com o recibo do voto | Foto: Divulgação/Justiça Eleitoral
A Argentina, por exemplo, passou a utilizar as urnas de terceira geração | Foto: Reprodução/Wikimedia Commons

A Justiça Eleitoral, formada pelo TSE e pelos Tribunais Regionais Eleitorais, é responsável pela organização, fiscalização e realização das eleições; regulação do processo eleitoral; análise das contas dos partidos e dos candidatos; controle do cumprimento da legislação; e julgamento dos processos relacionados às eleições.

O Brasil segue na vanguarda do atraso, com processos eleitorais ineficientes e urnas obsoletas

Em razão da quantidade de atribuições do TSE, o engenheiro Carlos Rocha, formado no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), defende a descentralização dos poderes. “Não é crível que a autoridade eleitoral cuide de tudo”, afirmou. “A democracia brasileira não pode continuar a depender de um pequeno grupo de técnicos do TSE, que têm o controle absoluto sobre o sistema eletrônico de votação, de todos os códigos e chaves de criptografia.”

Ainda de acordo com o engenheiro do ITA, que liderou o desenvolvimento e a fabricação das urnas eletrônicas nos anos 1990, é fundamental aprimorar o processo eleitoral brasileiro. “Quem realiza as eleições não pode certificar os equipamentos, auditar os resultados e julgar os eventuais desvios”, argumentou.

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Na maioria dos países que adotaram o voto eletrônico, as urnas de primeira geração foram abandonadas por falta de segurança. A Argentina, por exemplo, passou a utilizar as urnas de terceira geração, e o Equador, as de segunda geração. No Paraguai, ocorreram experiências com as urnas eletrônicas brasileiras entre 2003 e 2006. Esses testes fracassaram, e as autoridades daquele país proibiram o uso dos equipamentos antigos por causa do baixo nível de confiabilidade. Até mesmo Butão e Bangladesh, que utilizavam as urnas de primeira geração, passaram a substituí-las gradualmente. E o Brasil segue na vanguarda do atraso, com processos eleitorais ineficientes e urnas obsoletas. É pior que a Venezuela, porque a oposição daquele país dispõe dos meios para denunciar fraudes eleitorais. Aqui, não.

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5 comentários
  1. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Ditaduras nunca serão favoráveis a qualquer tipo de auditagem.
    A transparência do processo eleitoral brasileiro com urnas desenvolvidas há mais de 30 anos é o mesmo que eu jogar game em um ATARI desta mesma geração de urnas eletrônicas.
    O TSE defende com unhas e dentes as atuais urnas pelas mesmas razões de Lula afirmar que na Venezuela tem mais eleição que no Brasil. Nicarágua, Colômbia, México, Rússia, Irã, Coréia do Norte também tem eleições… todas fraudadas. Os cubanos nem sabem o que é eleição e conhecem apenas quem será o ditador da vez.
    O ponto referente a auditagem é outro entrave da “justiça” eleitoral, uma jabuticaba brasileira, onde o TSE pode tudo.
    Na empresa em que trabalho eu me declaro impedido de auditar o meu próprio trabalho para que não pairem dúvidas sobre o processo.

  2. José Carlos dos Anjos Faria
    José Carlos dos Anjos Faria

    Imaginem só, se com urnas auditaveis mesmo assim na Venezuela a extremo esquerda ditadora “venceu” através da fraude. É muito fácil entender como um descondenado “venceu” no Brasil as eleições de 2022. Aqui as urnas são de primeira geração, ou seja, não auditaveis.

  3. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Este vídeo de Ciro Gomes, Rodrigo Maia, Simone Tebet, etc, simboliza bem a cara de pau dessas figuras.

    E, concordo com o engenheiro do ITA, precisa descentralizar, delegar aos estados a votação, e não centralizar nos parasitas de Brasília.

    E mais, após 2022, comecei a observar as eleições no exterior, e NENHUM tem urna eletrônica.
    Argentina, Equador, México, EUA, Portugal, Inglaterra, Alemanha, Itália, Espanha, França, e tantos outros.

    O sistema brasileiro atual de votação é o que a cúpula do poder em Brasília deseja somente, para manipular a seu favor.

  4. Alain Gerard Leuba
    Alain Gerard Leuba

    A Venezuela dispõe dos meios para denunciar fraudes. Aqui, não
    Mais é isso que era o objetivo (poder fraudar a vontade) dessa banda do TSE de non acatar o pedido do Bolsonaro

  5. Leonardo Abreu
    Leonardo Abreu

    Congressistas, vamos resolver isso. A insegurança das urnas eletrônicas foi o estopim de tudo que aconteceu na balbúrdia de 8 de janeiro.

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