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Wagner Lenhart, presidente do Instituto Millenium | Foto: Arquivo pessoal
Edição 232

‘A democracia brasileira vive uma crise de legitimidade’

Para Wagner Lenhart, presidente do Instituto Millenium, o equilíbrio entre os três Poderes foi abalado no Brasil pela atuação do Supremo Tribunal Federal

anderson scardoelli
Anderson Scardoelli
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“Estado de Direito”, “liberdades individuais” e “democracia”. Essas são algumas das palavras que saem com facilidade da boca de Wagner Lenhart, presidente do Instituto Millenium, associação sem fins lucrativos que completou a maioridade em 2024. Mais do que expressões ditas em uma entrevista, a defesa irrestrita desses valores é parte da bandeira da instituição.

Gaúcho de Porto Alegre, Lenhart vê em risco o que ele e o instituto sob sua liderança defendem. “Temos um equilíbrio de Poderes que perdeu a essência, não está na sua melhor forma”, diz. “O Judiciário brasileiro, especialmente o Supremo Tribunal Federal, avançou em competências ou atribuições que, num primeiro momento, deveriam ser dos outros dois Poderes.” Para Lenhart, o Brasil, assim como outras nações do mundo, enfrenta uma crise de legitimidade democrática.

Defensor do que chama de “federalismo mais robusto”, com Estados e municípios com maior protagonismo diante da União, ele cobra uma postura mais enérgica por parte do Executivo e do Legislativo brasileiros. De acordo com Lenhart, a tripartição do Poder precisa voltar ao equilíbrio no país — justamente para que um dos Poderes, o Judiciário, no caso, não se sinta mais imponente que os demais.

Lenhart também lamenta a postura adotada até aqui pelo governo brasileiro em relação ao que ocorre com o processo eleitoral venezuelano. “Ser cúmplice de um regime como o de Maduro é muito grave”, afirma. “Mas parte da esquerda aqui no Brasil continua simpática a Cuba. Essa mesma esquerda, apesar de agora estar em cima do muro, continua simpática à Venezuela e a outros regimes autoritários.”

Confira os principais trechos da entrevista.

Wagner Lenhart, presidente do Instituto Millenium, de terno e gravata, em imagem de divulgação da associação
Wagner Lenhart, o gaúcho de Porto Alegre que preside o Instituto Millenium há quatro meses | Foto: Divulgação/Instituto Millenium
Qual é a importância de o Brasil contar com centros de estudos e discussões em favor das liberdades?

No Brasil, a tradição de think tanks, de institutos que propõem ideias, não é tão madura quanto em outros países. No caso do Millenium, o que se procura é justamente ser uma fonte de ideias, de propostas, de boas políticas públicas, para que o Brasil consiga superar os desafios que tem enquanto país. Por aqui, isso se dá claramente com a crença de que a democracia liberal, o Estado de Direito e as liberdades individuais são essenciais para a prosperidade.

Estado Democrático de Direito, liberdades individuais e democracia: como o senhor vê esses valores no Brasil de hoje?

Passamos por grandes desafios, tanto do ponto de vista das liberdades individuais quanto da própria dinâmica democrática. Em primeiro lugar, o que a gente vê hoje no Brasil parece uma crise na legitimidade dessa representação democrática, o que é muito ruim. É importante que a democracia não só tenha instituições sólidas, mas seja vista pela população como algo justo, bem desenhado e que reflete a vontade da maioria. O que se vê hoje — não só no Brasil, mas em outros países — é uma crise de legitimidade.

Como essa crise de legitimidade democrática tem ocorrido na prática?

Uma leitura que eu tenho dessa crise de legitimidade da democracia moderna é que você tem entes políticos centrais cada vez mais poderosos. A União no Brasil e a União dos Estados Unidos, por exemplo, estão cada vez mais fortes. Concentram poder e a tomada de decisão que influencia a vida das pessoas. Isso acaba distanciando as pessoas de onde a decisão é tomada.

Por quais razões há esse distanciamento dos cidadãos com o poder?

As pessoas vivem nas cidades, mas a decisão, na maior parte das vezes, é tomada em Brasília. Parece-me que um caminho para recuperar essa legitimidade da democracia é dar mais protagonismo para os entes subnacionais, sejam eles Estados ou municípios. Seria uma forma de federalismo mais robusto. A retomada de uma democracia mais forte passa por essa descentralização. É o único problema, a única forma de solucionar? Não. Mas é um ponto pouco falado hoje em dia, e vale a pena a gente retomar essa reflexão.

Esplanada dos Ministérios do Distrito Federal, em Brasília | Foto: Erich Sacco/Shutterstock
No Brasil, essa concentração de poder vai além das esferas federais do Executivo e do Legislativo? O Judiciário também é parte desse problema?

Temos um equilíbrio de Poderes que perdeu a essência, que não está na sua melhor forma. O Judiciário brasileiro, especialmente o Supremo Tribunal Federal, avançou em competências ou atribuições que, num primeiro momento, dentro do nosso ordenamento, deveriam ser dos outros dois Poderes. A balança está desequilibrada nesse sentido.

Com o Judiciário avançando sobre competências que deveriam ser dos outros dois Poderes da República, o que deve ser feito a partir de agora?

O Executivo e o Legislativo precisam fazer uso de suas esferas de atuação para retomar o equilíbrio. Porque, sem dúvida, hoje descalibrou esse equilíbrio dentro da Constituição. Nesse sentido, é importante lembrar que, quando se constituiu esse conceito de tripartição do Poder — doutrinariamente com Montesquieu e na prática com a Constituição norte-americana de 1787 —, pensou-se especialmente no modelo dos Estados Unidos, para você de fato ter uma separação, e essa separação limitar o poder.

“A Venezuela não virou um governo autoritário em 2024. Esse foi apenas o ano em que ficou impossível não ver isso”

O senhor se preocupa com a situação atual do país?

A grande preocupação, e aí falando um pouco desse momento da construção dos Estados Unidos, é que a separação de Poderes foi implementada como uma forma de limitar o Poder. Os Pais Fundadores dos EUA entendiam que o Poder é perigoso, sendo ainda mais perigoso quando concentrado. Por isso, a ideia de ter mecanismos constitucionais para limitar o Poder é fundamental.

No dia a dia, como se dá essa descalibração entre os Poderes do Brasil?

Do ponto de vista da separação dos Poderes em si, especialmente nos últimos anos, a gente viu um dos três Poderes — o Judiciário, no caso — se colocar em muitos momentos acima dos outros ou entrar em competências que tradicionalmente não seriam dele.

Ministros Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e André Mendonça, durante sessão plenária do Supremo Tribunal Federal — Brasília, 6/4/2022 | Foto: Nelson Jr./SCO/STF
Ministros Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e André Mendonça, durante sessão plenária do Supremo Tribunal Federal, em Brasília (6/4/2022) | Foto: Nelson Jr./SCO/STF
O senhor tem dado os Estados Unidos como exemplo. Por lá, a eleição para deputado federal ocorre por meio do voto distrital. Qual é sua opinião a respeito desse modelo? Esse formato poderia ser adotado no Brasil?

O voto distrital tem algumas vantagens interessantes, inclusive a de aproximar o eleitor do político eleito. Acaba dando, justamente, mais legitimidade democrática, porque a pessoa vai ser eleita por uma determinada localidade, por um determinado distrito. E o povo saberá a quem cobrar. Facilita a prestação de contas do representante para os seus representados. Fora que torna o processo eleitoral mais barato. Hoje, por exemplo, quando um candidato a deputado vai fazer campanha no Brasil, ele tem que buscar votos pelo Estado inteiro. Quando você tem um distrito, isso gera uma potencial economia no custo da campanha.

Qual é o posicionamento do instituto e do senhor diante do fato de alguns candidatos e partidos políticos brasileiros defenderem a ditadura venezuelana?

A Venezuela não virou um governo autoritário em 2024. Esse foi apenas o ano em que ficou impossível não ver isso. Por isso, muitos atores políticos aqui no Brasil que defendem a Venezuela, e sabem há muito tempo que a Venezuela não é uma democracia, estão agora ou se posicionando de maneira contrária ou ficando mais em cima do muro. Essas pessoas precisam ser cobradas por essa posição. Não basta, se você acredita de fato na democracia e na liberdade, defendê-la só dentro do seu país. Você também tem que defender a democracia no exterior.

Como o senhor vê o fato de, até o momento, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil não ter cravado que houve fraude na eleição em que o ditador Nicolás Maduro foi declarado “vencedor” na Venezuela?

Ser cúmplice de um regime como o de Maduro é muito grave e faz questionar se, de fato, a democracia e as liberdades são importantes para essas pessoas. Gabriel Boric, o presidente do Chile, que é assumidamente de esquerda, tem sido crítico do regime venezuelano há muito tempo. Trata-se da posição de uma esquerda mais moderna, que não aceita e não faz concessões ao autoritarismo. Mas parte da esquerda aqui no Brasil continua simpática a Cuba. Essa mesma esquerda, apesar de agora estar em cima do muro, continua simpática à Venezuela e a outros regimes autoritários. O ideal seria o Brasil se posicionar junto com a maior parte dos países das Américas e de outras nações do mundo civilizado que se posicionaram de forma firme, dado todo o fluxo de informações que chegaram do processo eleitoral venezuelano. Mas, infelizmente, o Brasil preferiu ficar em cima do muro.

Caracas/Venezuela - 30/05/2024 - Presidente da Venezuela Maduro reunido com seu Conselho de Justiça pede punição a oposição ao seu Governo. Foto: RS via Fotos Públicas
Nicolás Maduro, ditador venezuelano que conta com apoio de parte da esquerda brasileira | Foto: RS/Via Fotos Públicas

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1 comentário
  1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Concordo com as mesmas ideias, voto distrital e descentralização de Brasília, que na minha opinião, foi um erro ter sido implementada no meio do nada, sem povo.

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