“Para aquele que conquistou sua mente,
a mente é a melhor amiga,
mas para aquele que falhou em fazê-lo,
a mente é o maior inimigo.”
(Kṛṣṇa Dvaipayana Vyāsa, Bhagavad Gita)
No dia 5 de junho, dois astronautas americanos — Sunita “Suni” Williams e Barry “Butch” Wilmore — partiram para uma missão inédita de oito dias. Ela tem 58 anos, ele tem 61.
A missão consistia em pilotar uma nave Boeing Starliner até a Estação Espacial Internacional, a ISS, em órbita. Era a estreia da Starliner em um voo tripulado. Em termos espaciais, Barry e Sunita estavam fazendo um test drive, quase um bate e volta na ISS. Eles deveriam estacionar lá, esperar oito dias e trazer a nave de volta à Terra.
Mas a Starliner deu problemas. O sistema de propulsão teve um vazamento de gás hélio. Cinco dos 28 propulsores deixaram de funcionar corretamente. Barry e Sunita conseguiram chegar à estação em segurança no dia 6 de junho e foram recebidos pelo resto da tripulação a bordo, outros quatro astronautas americanos e três russos. A alegria deles ao chegar é evidente:
Então eles ficaram sabendo que não poderiam retornar na Starliner no prazo inicial de oito dias. A princípio, gostaram de adiar a volta. “Não estou reclamando”, declarou Sunita quando soube da novidade. “Butch não está reclamando que nós vamos ficar aqui por um par de semanas a mais.” O par de semanas está para completar três meses até esta edição. E vai continuar até o ano que vem.
Em qualquer situação é uma mudança e tanto. Imagine você indo passar oito dias fora e descobrindo que vai ter que ficar até fevereiro de 2025. Isso mexe com toda a sua vida e a de sua família.
100 milhões de fragmentos
Suni e Butch vão enfrentar problemas médicos que tendem a se agravar com o tempo. A falta de gravidade vai fazer com que seus músculos atrofiem. Outro problema é a exposição à radiação solar. No espaço, eles não contam com a proteção da atmosfera terrestre. No campo da ficção, foi a exposição à radiação que transformou os quatro astronautas no Quarteto Fantástico, dos quadrinhos Marvel.
Claro que ninguém espera que Butch Wilmore vá ganhar a capacidade de esticar seu corpo como o Mister Fantástico ou que Suni Williams consiga se tornar invisível como Sue Storm. Mesmo porque o Fantastic Four enfrentou fictícios “raios cósmicos” radiativos, mais uma invenção do mestre Stan Lee. Mesmo assim, todo cuidado é pouco. E existem outros perigos.
No dia 25 de junho, por exemplo, o satélite russo Resurs-P1 se fragmentou em mais de cem pedaços, provocando um alerta de segurança a bordo da estação espacial. Todos correram para suas respectivas naves e se prepararam para escapar caso a ISS fosse atingida pelos destroços.
A Nasa calcula que existam mais de 25 mil pedaços de destroços maiores que 10 centímetros circulando em órbita em altíssima velocidade. Se forem contados os fragmentos com menos de 10 centímetros, esse número ultrapassa os 100 milhões. Como se não bastasse o risco natural, Rússia, China e Índia decidiram atacar seus próprios satélites para treinar tiro ao alvo no espaço.
Maratona espacial
Williams e Wilmore treinaram para essa missão mais do que Neil Armstrong, Buzz Aldrin e Michael Collins se prepararam para o primeiro pouso na Lua. São dois veteranos muito bem treinados. Especialmente Suni.
Sunita Williams nasceu em Euclid, no estado de Ohio, em uma família de indianos e eslovenos. Foi piloto de teste da Marinha americana e já voou mais de 3 mil horas em 30 tipos diferentes de aviões. Astronauta desde 1998, já soma 404 dias no espaço, incluindo a atual missão. Casada (com o policial Michael J. Williams), se tornou a mulher que passou mais tempo fora da nave em órbita. Foram 50h40, em sete “passeios” no vácuo.
Em 2007, Suni foi a primeira pessoa a participar de uma corrida no espaço. Enquanto se desenrolava a famosa Maratona de Boston na Terra, Suni corria a mesma distância numa esteira a bordo da ISS. Sua marca foi de 4h24 (o vencedor em Boston foi um queniano que completou o circuito em 2h14). Em 2012, um novo feito de Sunita: ela cumpriu uma prova de triatlo ocorrida em Malibu, na Califórnia, usando a esteira, uma bicicleta física e aparelhos de musculação para simular a natação.
Suni segue a religião hinduísta e já levou uma edição do livro sagrado Bhagavad Gita à ISS em 2006. Tem também uma forte ligação com a Eslovênia, terra dos seus ancestrais, onde se tornou uma espécie de ídolo.
Barry Wilmore é casado, tem duas filhas, nasceu no estado de Tennessee e também veio da Marinha. É especialista em pouso e decolagem em porta-aviões. Participou de combates nos céus do Iraque e da Bósnia durante os anos 1990. Segundo o New York Times, foi aceito como astronauta em 2000. Participou de duas missões e passou um total de 261 dias no espaço — e contando.
Um zumbido misterioso
O desenho da Boeing Starliner, também conhecida como CST-100, é bastante parecido com o da nave Apolo, que levou os primeiros humanos à Lua em 1969.
A falha dos sistemas de propulsão da Starliner é mais um golpe na imagem da gigante Boeing, que já vinha enfrentando problemas nos seus aviões comerciais. A Boeing já perdeu mais de US$ 1,4 bilhão no projeto, que dura mais de uma década.
Anteriormente, a Starliner havia apresentado problemas em dois testes sem tripulação. No primeiro, em 2019, errou a órbita e não conseguiu chegar à ISS. Em 2023, foram achados graves problemas na fiação elétrica e nos paraquedas usados no pouso. Um zumbido alto e insistente também provocou o adiamento de um voo.
“A Boeing está em um momento real de transição”, declarou o jornalista Micah Maidenberg no podcast The Journal, do Wall Street Journal. “Eles têm um novo CEO. Há problemas e desafios reais em outras partes da empresa. Quer dizer, acho que o objetivo da Boeing antes desse voo era fazer isso, obter a certificação Starliner para operações regulares pela Nasa, voar nas seis mudanças de tripulação que eles têm contrato para voar. Depois [do que aconteceu], é difícil dizer.”
O valor da ação da Boeing reflete este momento difícil da companhia: ela terminou 2023 valendo US$ 260, e agora está em US$ 173.
Duas visões empresariais
No início de setembro, a Boeing Starliner vai ser desligada da ISS e voltará à Terra por controle remoto. Em 24 desse mesmo mês, chegará o resgate para Suni e Butch.
E, já que o veículo da Boeing falhou, quem surgiu para salvar os astronautas? A empresa SpaceX, de Elon Musk. Aquele mesmo que está sendo linchado pela mídia internacional.
No sábado, 24 de agosto, o administrador da Nasa, Bill Nelson, anunciou que não arriscaria trazer os dois astronautas com a Starliner que os levou. Eles vão pegar carona numa nave SpaceX Dragon Crew que estava programada para levar quatro astronautas até a ISS em setembro. Agora irão só dois, que retornarão em fevereiro do ano que vem com Suni e Butch.
A Nasa desistiu de fazer seus próprios foguetes e naves e “privatizou” o setor em 2014. Para desenvolver novas naves, entregou US$ 2,6 bilhões para a SpaceX (que ainda era meio iniciante) e US$ 4,2 bilhões para a Boeing, que já tinha seis décadas de experiência no setor. Resultado: a gigante Boeing falhou. E a ágil SpaceX não tem falhado.
São dois modelos de empresas, com duas mentalidades. A Boeing ficou pesada e burocrática. A SpaceX é ágil e pensa à frente do seu tempo. Isso fica claro até no design da Dragon.
Sonhando com a Lua
Apesar da lotação máxima, não deverá faltar suprimentos nesses oito meses de espera. A gerente de programação da Nasa, Dana Weigel, disse que recentemente uma carga com 3,7 mil quilos de equipamentos e mantimentos, incluindo café, laranjas, cenouras, maçãs, grapefruits e amoras, foi enviada à ISS. “Ninguém vai passar por uma dieta ou restrição de calorias”, declarou Weigel.
“Estamos bem ocupados por aqui”, disse Suni na última coletiva de imprensa transmitida da ISS, em julho. Ela está consertando um sistema que transforma a urina dos astronautas em água, trabalhando em sequenciamento genético e experimentando algo misteriosamente chamado de “microscópio lunar”.
Wilmore, por sua vez, está inspecionando o encanamento da estação e ajudando no projeto (chamado Veggie) de cultivar algumas plantas a bordo (como rabanetes).
O sonho dos dois e de todos os astronautas da Nasa tem data marcada: 2026. Será quando o programa Artemis deverá levar os humanos à Lua para o início da construção da base permanente. “Eu ia amar ir para a Lua”, disse Sunita. “Acho que isso está em nossa alma. Mas eu também sei que temos astronautas realmente bons e que talvez esteja na hora de pendurar minhas chuteiras voadoras.”
‘Esse é seu lugar feliz’
Para nós, não astronautas, acostumados aos confortos da vida urbana, passar oito meses numa estação espacial, sem conseguir tomar um banho direito, com dificuldades técnicas para tarefas simples como defecar ou assoar o nariz, pode parecer insuportável.
Mas pense em dois seres humanos vivendo meses nesse mundo paralelo, flutuando para se deslocar, explorando além da fronteira da ciência conhecida, observando a dança das constelações ao redor de seus olhos. Michael, o marido de Suni, encarou o adiamento do retorno com naturalidade: “Esse é seu lugar feliz”. “É um grande lugar para estar, um grande lugar para viver, um grande lugar para trabalhar”, declarou Butch sobre a ISS em coletiva para a imprensa.
Deve haver, claro, momentos de depressão, irritação, atrito, frustração e especialmente de saudade a bordo de uma estação espacial. A ISS está tecnologicamente ultrapassada, vivendo seus últimos cinco anos de vida útil. As imagens do seu interior mostram tediosos corredores brancos com cabos pendurados pelas paredes. É preciso muito domínio da mente para não enlouquecer num ambiente desagradável como esse.
Em compensação, o sol nasce e se põe 16 vezes a cada 24 horas na janela da estação, a 400 mil metros de altitude.
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Interessante.
São mais que preparados para enfrentar essas adversidades. A Suni parece um peixe de coral em águas claras e límpidas de tão adaptada ao espaço. Ademais, devem estar aliviados em chegar com segurança a ISS! São seres humanos que fazem a diferença para o desenvolvimento da humanidade. Irão tirar de letra esse infortúnio. Torço por eles e por todos os astronautas da ISS.
excelente matéria. Parabéns!